domingo, 28 de novembro de 2010

Catatau barrocobabélico

Por Nicole Cristofalo e André Dick


O livro Catatau, de Paulo Leminski, que está sendo relançado pela Iluminuras, mostra o quanto seu autor estava próximo do Barroco – que tem seu ponto de força, no Brasil, na obra de Haroldo de Campos. Isso percebemos não apenas pelo ensaio ausente nas edições anteriores de Catatau, “Uma leminskíada barrocodélica”, de Haroldo, mas em sua principal condição de romance experimental. Veremos, primeiro, como Alejo Carpentier trata do Barroco e do Realismo Maravilhoso e depois da obra em si, de Leminski, que ganha agora sua quarta edição (a primeira, de 1975, era da Grafipar; a segunda, de 1989, da Sulina; e a terceira, de 2004, em edição crítica e anotada acompanhada de iconografia, da Travessa dos Editores).


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Alejo Carpentier inicia seu ensaio referencial sobre o Barroco e o Realismo Maravilhoso apontando os conceitos equivocados que os dicionários se utilizam para definir o termo “Barroco”, com associações de ideias empobrecedoras (o Barroco como “amanerado” e, até mesmo, “decadente”), e concorda com a teoria de Eugenio d’Ors de que o barroquismo é uma constante humana, ideia que irá desenvolver ao longo de seu ensaio.
Afirma que o barroquismo esteve presente em diversos momentos das artes humanas, e em diversos países. Para exemplificar, cita as esculturas indianas, a cidade de Praga, assim como as esculturas do “Puente Carlos” e as figuras religiosas daquele país. No campo da música, menciona “A flauta mágica”, de Mozart. O estilo gótico é utilizado para se definir a diferença entre constante humana e “los estilos históricos”, pois, segundo Carpentier, seria inadequado se construir uma catedral gótica nos dias de hoje, enquanto é perfeitamente possível existir uma escrita barroca em qualquer momento histórico:

toda la literatura irania, incluyendo ese monumento de la épica que es el Libro de los reyes, de Firdusi, es barroca, saltando los siglos, nos encontramos em España con esas cumbres del estilo barroco em literatura, que son Los Sueños de Quevedo, Los autos sacramentales de Calderón, la poesía de Góngora toda, la prosa toda de Gracian. Y la prueba de que hay ahí un espíritu barroco, es que el contemporáneo de algunos de los autores que acabo de citar, Cervantes, no nos resulta barroco.


Segundo Carpentier, os autores podem ser barrocos em apenas alguns de seus escritos, não necessariamente se tornando barroca toda a sua obra - o que pode ser destacado em Paulo Leminski, cuja poesia não tem sinais evidentes do Barroco, no sentido das imagens (depois de Catatau, apenas Metaformose se incluiria nesse campo; como escreve Décio Pignatari, na orelha da terceira edição de Catatau, Leminski primeiro “fez o grande, o difícil, o vertical - esta obra que lhe tomou oito anos de dedicação, fervor e sofrimento”). Carpentier prossegue, citando autores que ele considera barrocos em diversos países: Ariosto, com Orlando furioso, Shakespeare, com Júlio César e o quinto ato de Sonho de uma noite de verão, Rabelais e sua obra.
Ele também compara o Romantismo com o Barroco, descrevendo características que aproximam o primeiro estilo do segundo, como o Enrique de Ofterdinger, de Novalis, o segundo Fausto, de Goethe, e as Iluminações, de Rimbaud. Além da obra de um dos autores mais admirados por Carpentier: Os cantos de Maldoror, de Lautréamont.
Ao mesmo tempo, afirma que “El academicismo es característico de las épocas asentadas, plenas de sí mismas, seguras de sí mismas. El barroco, em cambio, se manifiesta donde hay transformación, mutación, innovación”. A América seria genuinamente um continente barroco por conta de sua “simbiosis, de mutaciones, de vibraciones, de mestizajes”, sua “criolledad”. Tal espírito criolo seria também Barroco por possuir a consciência de ser algo novo. Carpentier cita as cosmogonias americanas contidas no Popol Vuh, e os livros de Chilam Balam, nos quais “todo lo que se refiere a cosmogonía americana – siempre es grande America – está dentro de lo barroco”. O autor considera a arquitetura asteca como barroca por seus ornamentos por seus ornamentos e o “temor a la superficie vacía”. O Popol Vuh seria barroco por sua riqueza de linguagem e a “policromía de las imagens”. Carpentier oferece, igualmente, como exemplos de Barroco, a Igreja de Tepoztlán, no México, e a fachada de São Francisco de Ecatepec de Cholula. Hibridez de linguagens e signos que Haroldo de Campos investiga tão bem em seu recente O segundo arco-íris branco, no qual apresenta análise sobre, entre outros, Lezama Lima, Sor Juana Inés de la Cruz, Severo Sarduy, Néstor Perlongher e Julio Cortázar.


No decorrer de seu ensaio, Carpentier ainda procura definir o Realismo Maravilhoso, primeiramente, por meio do termo “maravilhoso”: “todo lo insólito, todo lo asombroso, todo lo que se sale de las normas establecidas es maravilloso”. Desta forma, o autor refere-se a esculturas e pinturas de deuses greco-romanos, ora disformes, ora torturados ou com cabelos de cobras. Assim, “lo feo, lo deforme, lo terrible, también puede ser maravilloso. Todo lo insólito es maravilloso”. Importante mencionar que Carpentier distingue o Realismo Mágico do Realismo Maravilhoso, pois o primeiro trata de imagens inverossímeis, trazidos a uma atmosfera onírica, enquanto que o Surrealismo se diferencia do Realismo Maravilhoso por ser um “misterio fabricado”, um “maravilloso fabricado premeditadamente”. É interessante citarmos Irlemar Chiampi, quando ela trata do termo Realismo Mágico, que é empregado a partir da consciência do narrador de se ter uma “nova atitude (…) diante do real” e afirma que “os impasses analíticos e conceituais registráveis” provêm da “compreensão inadequada das teses culturalistas de Carpentier, que desliza frequentemente para o enfoque temático, obrigando o analista à tarefa inútil (literariamente falando) de definir o grau de representatividade do referente extratextual”, como é o caso da ligação entre América Latina e Realismo Maravilhoso. A América Latina seria rica em elementos maravilhosos, como o fato de o Haiti ter, como rei, um escravo cozinheiro que constrói uma fortaleza que poderia ser autossuficiente por dez anos, além de os escravos daquele país poderem se metamorfosear em animais. Assim como ao feito de Juana de Azurduy, que adentra uma cidade da Bolívia com o objetivo de resgatar a cabeça de seu amado, exposta na Praça Maior, Carpentier também refere-se a um encontro que teve com um poeta analfabeto, mas que soube recitar de cor a Canção de Rolando, a história de Carlos Magno e os Pares da França, como acontecimentos maravilhosos.
Portanto, para Carpentier, a realidade latino-americana é, além de maravilhosa, também barroca. E, se é possível realizar uma escrita barroca hoje em dia, virá dos autores que neste continente vivem. Como afirma Néstor Perlongher, o neobarroco é “uma arte furiosamente antiocidental, pronta a se aliar, a entrar em misturas 'bastardas' com culturas não ocidentais”.

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São essas misturas que fazem de Catatau o romance como um gênero inacabado, em constante transformação e revitalização, e faz da teoria de Mikhail Bakhtin uma das mais profícuas para a análise literária - por sua linguagem maravilhosa. Como assinala Bakhtin, a “ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada, e não podemos ainda prever todas as suas possibilidades plásticas”, ao contrário da epopeia, por exemplo, “gênero já profundamente envelhecido”. Ainda assim, o romance precisa ser, no mundo contemporâneo, aquilo que a epopeia foi para o mundo antigo. Para Bakhtin, o romance

é expressão da consciência galileana da linguagem que rejeitou o absolutismo de uma língua só e única, ou seja, o reconhecimento da sua língua como o único centro semântico-verbal do mundo ideológico e que reconheceu a pluralidade das línguas nacionais e, principalmente, sociais, que tanto podem ser ‘línguas da verdade’, como também relativas, objetais e limitadas de grupos sociais, de profissões, de costumes.


Neste universo galileano, a multiplicidade acaba fazendo parte intrínseca do desenvolvimento histórico do romance, na presença do plurilinguismo. O texto romanesco compreende um universo que não está nem acabado nem fechado, exatamente como o conceito de Barroco indica – e Catatau, de Leminski, é exemplo claro disso. Segundo Giorgio Agamben, em Infância e história, “Babel, ou seja, a saída da pura língua edênica e o ingresso no balbuciar da infância (quando, dizem-nos os linguistas, a criança forma os fonemas de todas as línguas do mundo), é a origem transcendental da história”.
Bakhtin pondera que o romance é o único gênero em evolução, refletindo, “mais substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente a evolução da própria realidade”, o que se fecha com o conceito de “obra de aberta” suscitado por Haroldo de Campos, que remete ao Barroco, com sua mistura complexa de linguagens e gêneros:

O romance antecipou muito, e ainda antecipa, a futura evolução de toda literatura. Deste modo, tornado-se o senhor, ele contribui para a renovação de todos os outros gêneros, ele os contaminou e os contamina por meio de sua evolução e pelo seu próprio inacabamento.

O fato de ser considerada uma obra barroca faz com que o livro Galáxias, de Haroldo de Campos, seja mais parecido com Prosa do observatório, de Cortázar, embora não se aproximem em objetivos. Terminada em 1971, ao contrário das Galáxias, de Haroldo de Campos, cuja versão definitiva só foi lançada em 1984 (outra versão, quase terminada, foi lançada em 1976, em Xadrez de estrelas), a obra de Cortázar talvez tenha começado a ser escrita no mesmo período que a de Campos (meados dos anos 60), daí dialogarem tanto com Joyce, que estava sendo trazido pelas vanguardas latino-americanas: a própria poesia concreta, lançada em São Paulo, em 1956, e pela figura do mexicano Octavio Paz.
Fixemo-nos no romance que introduziu Leminski na literatura. Catatau apresenta uma linguagem em estado de “realismo maravilhoso”, para utilizar a ideia de Carpentier, ou seja, uma linguagem que lida, em alta voltagem, com o instigante universo da hibridez, da Babel de línguas. O Barroco plurilíngue faz parte indispensável dessa obra de Leminski. Não só no que corresponde ao universo de trabalho com as línguas e linguagens, mas porque sustenta uma consistente configuração de experimentalismo, primordial para a concreção de vanguarda entre meados dos anos 50 e os anos 70, no Brasil.


Nele, Renatus Cartesius (que é, na verdade, René Descartes), filósofo das ideias claras e verdades incontestáveis, inventor da geometria analítica, tenta se enquadrar na realidade tropical, inválida para seus esquemas matemáticos e europeus, em sua viagem ao Brasil, na embarcação de Maurício de Nassau, em viagem à Recife dominada pelos holandeses. Uma ideia obviamente fantasiosa: Descartes realmente fez parte da Companhia de Nassau, mas na Europa, conforme estudos históricos. Leminski, num caminho borgiano, imagina sua vinda ao Brasil.
No ensaio “Uma leminskíada barrocodélica”, Haroldo escreve que o personagem entra “a gosto ou a contragosto, no seu sonho psicodélico. Melhor dizendo, barrocodélico, pois de um cometimento neobarroco, de um ensaio de liquefação do método e de proliferação das formas em enormidades de palavra, é que se trata”. Os trópicos brasileiros representam o maravilhoso, o novo, o imprevisto, na mente de Descartes, e suas paisagens, híbridas, assim como sua linguagem não linear, representam a desconexão do pensamento europeu, o “barrocobabélico”. Como escreve Paulo Leminski, em “Descordenadas artesianas”, texto que acompanha Catatau, seu livro representa “o fracasso da lógica cartesiana branca no calor, o fracasso de leitor em entendê-lo, emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trópico”. E salienta que o conto do qual Catatau surgiu, “Descartes com lentes”, “era um esquema: trazia em si um princípio de crescimento, uma lei e uma necessidade de expansão, como uma alegoria barroca”.
Observemos alguns fragmentos do raciocínio de Cartesius/Descartes em Catatau, em que a linguagem sofisticada, científica, mescla-se com um “revestimento grotesco”, popular, numa mistura de linguagens provando ser plurilíngue e barroco, no sentido da hibridez de linguagens e gêneros, o romance de Leminski:

Não sou máquina, não sou bicho, sou René Descartes, com a graça de Deus. Ao inteirar-me disso, estarei inteiro. Fui eu que fiz esse mato: saiam dele, pontes, fontes e melhoramentos, périplos bugres e povoados batavos. Eu expendo Pensamentos e eu extendo a Extensão!

Uma parassanga são três mil palmos, cada palmo – vinte dedos, cada dedo – seis unhas, cada uma – um cílio em pé perante o impecilho, cada cílio – dois pêlos de cilício, cada silêncio – um utensílio: uma paranga (...) Quantos anjos na ponta de uma agulha? Quem pôs a luz no cu do vagalume? Quantos insetos numa caçarola? Quantas flechas no teu corpo?


Isso tudo, para Leminski, é “apenas o contexto para uma aventura textual, que parte de James Joyce e da macarrônica, donde Joyce partiu, de Rosa, de Haroldo de Campos, da poesia concreta e da oralidade humorística de Mad e de Pasquim”. Os conflitos existentes no discurso do “Descartes abrasileirado” faz com que, segundo Leminski, o Catatau tenha “duas camadas geológicas nítidas. Uma, o contexto, que é exato, escrito em português seiscentista, e outra, o desbunde, o delírio cartesiano (a maior parte do livro), quando o filósofo pira”. Discursos que, como vimos, obviamente se cruzam dentro da sua narrativa um tanto picaresca (como a da personagem Dom Quixote, de Cervantes), em que Descartes/Cartesius, ao refletir sobre o novo mundo que o cerca (tropical e infestado de coisas novas), acaba enlouquecendo linguisticamente, misturando um português nobre a uma linguagem vinda do povo, dominada por expressões vulgares, embrutecida. Ela passa por uma “mestiçagem linguística”. Numa comparação com o Dom Quixote, em Catatau a “oralidade é introduzida no tecido discursivo enobrecido” do grande filósofo, voltado aos ideais matemáticos.
O romance de Leminski, como as Galáxias, de Haroldo de Campos, também brinca com a profusão de línguas (sobretudo, o latim) dentro do discurso romanesco imposto por Cartesius/Descartes, apostando na multiplicidade, na diversidade, em suma, no aspecto plurilíngue da narrativa, que atinge seus excessos de maneira calculada:

Ficou louco de falar latim em Thule, alter non datur. É para quem pode, para quem quer – não há mais mérito nem remédio: alhures dizem a realidade, latim fala a verdade. Pura expressão do vocábulo. Faço o possível para falar um latim plausível: plaudite, a posteriori. (...) A fonte emite lucis auras in aquis com exatidão e pontualismo até a mais insubstituível exaustão (...).


Leiamos um fragmento em que o conflito entre o raciocínio científico de Cartesius/Descartes, permeado pelo latim (discurso de leituras), inadequado à nova realidade tropical, e o raciocínio popular soa claramente:

Cultivo, sobretudo, o latim. Sem latim, isso não dá certo, o gesto não tem mais rejeito. Recito, bis dat Qui cito citat: data venenia, facta venia! Mundo fazendo fidusca, faço figa: a coisa toma jeito passada em latim, à milanesa. Latim, tudo, que sei? Poucos falam latim, reis falam. Dizem: ita. Ita. Sic, sic. É ita e sic. Latim domina os elementos, denomine os elementos do latim. Pensa que é o que de mim? O que é que eu não disse, nisso? (...) Faço o possível para falar um latim plausível: plaudite, a posteriori. (...) A fonte emite lucis auras in aquis com exatidão e pontualismo até a mais insubstituível exaustão.

Leminski considerava seu texto “um parque de locuções populares, idiotismos da língua portuguesa, estrangeirismos”. Para o autor, seu “polilinguismo é o reflexo do polinguismo do Brasil de então onde se praticavam as línguas mais descentradas: o tupinambá da Costa e centenas de idiomas gês/tapuias, dialetos afrôs, português, espanhol (...)” – a plena diversidade do Barroco.


Cabe, assim, nesse romance de Leminski, a observação de Bakhtin de que o romance seria uma diversidade social de linguagens organizadas, por vezes de línguas, por outras de individuais, em que há uma estratificação interna de uma língua nacional em dialetos sociais, em cada momento dado de sua existência histórica.
Sendo Descartes o narrador da obra de Leminski, percebe-se que seu discurso, fator de estratificação da linguagem, é uma introdução ao plurilinguismo. O romance de Leminski seria o local onde o “diálogo de vozes” nasce espontaneamente do “diálogo social das línguas”, em que a enunciação de outrem começa a soar como língua socialmente alheia e, finalmente, em que orientação do discurso para as enunciações alheias passa a ser “a orientação para as línguas socialmente alheias, nos limites de uma mesma língua nacional”. Como observa Bakhtin,

Durante sua existência histórica, sua transformação plurilíngue, a língua está cheia destes dialetos potenciais: eles se entrecruzam de múltiplas formas, não se desenvolvem até o fim e morrem, mas alguns florescem e transformam-se em linguagens autênticas. Repetimos: a língua é historicamente real, enquanto transformação plurilíngue, fervilhante de línguas futuras e passadas, de linguagens aristocráticas afetadas que estão morrendo, de parnevus linguísticos, de incontáveis pretendentes a ela, de maior ou menor sucesso, de maior ou menor envergadura de alcance social, com uma ou outra esfera ideológica de aplicação.

O romance, tão experimentado e imaginado por Bakhtin, em sua permanente evolução, para o bem das línguas, em sua multiplicidade infinita de caminhos e transformações, e em seu diálogo de linguagens, na ampliação do espaço de seu universo literário, talvez seja aquilo que Leminski diz sobre seu Catatau: “É uma máquina muito simples e muito complicada. Não tem segredos. E tem todos que são os da linguagem”. Ou, como sustenta Julio Cortázar: “O romance é a mão que sustenta a esfera humana entre os dedos, move-a e a faz girar, apalpando-a e mostrando-a”. Por isso, Catatau é um livro barrocobabélico.

sábado, 27 de novembro de 2010

Calendário




Foi lançado o livro Calendário, pela Oficina Raquel, do Rio de Janeiro.

sábado, 20 de novembro de 2010

Modernismo norte-americano: Eliot, Pound, cummings, WCW e Sylvia Plath

Por André Dick

A grande semelhança entre Ezra Pound e T. S. Eliot – dois dos maiores poetas norte-americanos do século XX – foi a “consciência da cisão”, diante da pluralidade de tradições que surgiu com o movimento poético anglo-americano. A ida de Pound e Eliot à Europa é uma busca às fontes originais, não um exílio. Afinal, esta é a busca do poeta moderno, cuja trajetória representa a “queda, separação, desagregação”, mas, ao mesmo tempo, é o caminho da “purgação e reconciliação”, segundo Octavio Paz – o que pode ser percebido na obra poética de Eliot, que bebe principalmente em Baudelaire, como, anteriormente, Edgar Allan Poe fizera, mas apoiado numa percepção da Divina Comédia, de Dante Alighieri.


No caso de Pound, sua ideia de tradição é mais “confusa e mutável” que a de Eliot, pois sua trajetória consiste não na tradição central, mas na tradição da busca. Desse modo, Pound procura, para os Estados Unidos, uma saída confuciana, como observa Paz. Os cantos é a prova dessa multiplicidade introduzida por Pound na forma de uma poesia que não sobrevive sem o desencantamento obtido pela modernidade, sem a inclusão de um certo Orientalismo que se manifestou de forma universal a partir de sua investida em estudos do ideograma. Enquanto para Eliot a poesia é a “visão da ordem divina a partir daqui, do mundo à deriva da história”, para Pound, é a “percepção instantânea da fusão da ordem natural (divina) com a ordem humana”. Se Eliot leu As flores do mal sob uma visão dantesca, Pound fez uma releitura da Divina comédia em seus Cantos. O “regresso ao criador”, que se manifesta na obra de Dante, torna-se num regresso a ninguém, na obra de Pound.
Em seu ensaio “Tradição e talento individual” (1917), Eliot considera que a tradição precisa ser reconquistada, e o poeta cria para si mesmo uma tradição, estabelecendo relações sem os quais o passado e ele mesmo careceriam de significação e valor. Como Pound, Eliot busca essa multiplicidade nas leituras de autores clássicos, indicando que não há nenhuma obra isolada, mas um conjunto de relações.


Em Pound, como se sabe, influenciado por Nietzsche, há uma preocupação com os futuros pupilos que lerem ABC da literatura ou How to read. Assim, o poeta, com visão sincrônica e não diacrônica, não pode se manter isolado num tempo e num lugar, e sim buscar um continuum de relações, privilegiando o presente, colocando o passo num processo permanente de revisão. Pound era um admirador incondicional da obra de Eliot, que havia composto um dos poemas mais importantes do século XX, The waste land. Mas era – como um poeta moderno – dos mais problemáticos e infelizes, muito em razão das dificuldades financeiras que enfrentava. Este poema de Eliot acabou sendo considerado o exemplo mais espetacular do gênero do século XX – talvez também o mais conhecido.
Antes de chegar à sua versão final, no entanto, o poema foi lapidado por Pound. Numa espécie de revisão, ele empregou técnicas de seu Os cantos: simultaneísmo, cortes elípticos, fanopeia trabalhada ao limite. The waste land é, por isso, o poema-chave da obra de Eliot. Pound não exagerava quanto à importância dele. Mas como Eliot escreveu, na dedicatória de The waste land, Pound era o “miglior fabbro”.
A sua poesia não pode ser entendida sem a de Pound. Daí ele não ser tão fiel aos fatos seu ensaio “Tradição e talento dividual”, em que diz que cada autor cria seus precursores. Eliot, a seu modo, foi criado, mais que por seus precursores, por seu contemporâneo. E isso fica visível quase ao longo de toda sua obra. Capaz, sim, de ombrear com a de Pound, tanto na parte crítica quanto na parte ensaística (seus estudos sobre Dante, por exemplo, são referenciais), Eliot era, no entanto, mais reservado.
Hoje, ele é pouco reverenciado nos Estados Unidos. A crítica norte-americana que estuda as vanguardas vê em Pound um exemplo mais forte de precursor para a poesia norte-americana. Marjorie Perloff, em livros como The poetics of indeterminacy e O momento futurista, por exemplo, estuda Pound com especial atenção.


Eliot, na verdade, não cai do gosto das vanguardas por seu típico discurso conservador já no fim de sua vida. Mas sua obra é extremamente atual. Poemas como “J. Alfred Prufrock” são excepcionais. Mesmo outros mais tradicionais, como “Quatro quartetos”, impressionam. Trata-se de um poeta da ruptura e, ao mesmo tempo, um poeta tradicional – serviria bem de exemplo a Octavio Paz em sua concepção de modernidade. Ao mesmo tempo que lida com novas técnicas, não se furta a usar formas mais clássicas. Emprega a retórica e o discursivo, em algumas peças, mas destrói a sintaxe corrente em outras, lançando imagens caóticas de um mundo selvagem ou deserto – uma imagem importante para sua poesia. É um poeta dos extremos, dos limiares, e influenciou, como Pound, boa parte da poesia do século XX.
No Brasil, foi recebido com menos atenção do que Pound, em razão da poesia concreta. Os poetas concretos viam em Pound um representante legítimo de suas experiências, enquanto Eliot, ao se tornar um conservador, posava melhor na fotografia ao lado dos poetas da Geração de 45. Mas ele não merecia isso. A poesia concreta sabia da importância de Eliot. Este, com ou sem conservadorismo, primou por poemas de alto nível. Eliot sabia, como Mallarmé, que o caráter do poeta não era calculado por aquilo que ele falava de si próprio em seus poemas nem pelo sentimentalismo (lembre-se de Mallarmé, quando perguntado por que não se emocionava em seus poemas: “Eu também não assoo meu nariz neles”). Nesse sentido, Eliot foi implacável. E moderníssimo.
Essa maior obra, em tamanho, de Pound ficou conhecida no Brasil graças às análises percucientes de Mário Faustino, de Augusto e Haroldo de Campos, e Décio Pignatari, mas antes de tudo em razão de ter sido mencionada na teoria da poesia concreta como um exemplo de obra em que o verso era representado sintético-ideograficamente. O nome de Pound está espalhado por vários textos da teoria da poesia concreta, que são de grande valia, mostrando como os irmãos Campos e Pignatari possuíam conhecimento dos procedimentos poundianos no universo poético. Seu interesse foi ao encontro de Mário Faustino, outro admirador da obra do poeta norte-americano, capaz de investigá-lo no Jornal do Brasil por meio de traduções e ensaios. Pound costuma ser esquecido, mesmo sendo, conforme Eliot, o “miglior fabbro” e, por duas vezes, no Cânone ocidental, Harold Bloom se refere a ele e a William Carlos Williams como “casos problemáticos”.


Existe uma bela diferença entre a atitude de ambos em relação à pesquisa na Europa de fontes literárias. Enquanto Eliot ainda acredita numa cultura anglicana, Pound está interessado na proliferação e na polifonia: recupera a tradição chinesa, o simbolismo bem-humorado (de Laforgue, Corbière), o sarcasmo mordaz de François Villon, reencontra os provençais, ou seja, recupera tudo que não interessa ao “olhar acadêmico”, que, afinal, eleva Eliot às alturas. Em matéria de crítica, não há dúvida de que Eliot parece mais completo, mais elegante e mesmo objetivo, embora Pound tenha uma verve menos academicista, embutida de bastante caos (embora ele goste daquele dichten = condensare), tendo sido o autor que mais agradou a John Cage (seu “Diário de como melhorar o mundo” dialoga com Os cantos). Quem foi mais importante? Ambos se completam. Eliot foi um fervoroso reacionário no fim da vida, sobretudo no que se refere à atitude diante da tradição inglesa que, para ele, era o ponto alto da literatura. Pound, por sua vez, enxergava mais pelo viés da Alteridade: do outro. Ele ter corrigido o Waste land, reduzindo-o a poucas páginas, que valem por muitas dentro da tradição ocidental, é sinal de que sua visão ao outro era mais apurada. Pound não ajudou apenas Eliot. Como lembra Augusto de Campos, Pound foi uma espécie de introdutor literário a figuras como W. C. Williams, James Joyce. Quando imaginou um leitor, a quem Joyce mandou seu Finnegans wake? A Pound, que desprezou a tentativa experimental do amigo, apesar de ter considerado Ulysses uma obra-prima – ele também desvalorizaria o Un coup de dés, aliás Mallarmé de modo geral (embora, em cartas a Augusto de Campos, publicadas junto com o ensaio “Pound (made) in Brazil”, de À margem da margem, ele reconsidere o Un coup de dés). Ficou com Rimbaud, que perseguia a tradição de Catulo, como ele escreve em ABC da literatura. Um autor de escolhas, no plano literário de extraordinário olhar.
Ao lado de Eliot e Pound, outros poetas formaram não uma corrente, mas uma geração de grande nível, em que se incluem Wallace Stevens, Marianne Moore, W. C. Williams e e. e. cummings.


Quanto a cummings, por exemplo, Augusto de Campos ressalta que “há uma forte presença cummingsiana na obra de Cage, que compartilha com o poeta uma generosa ética anarco-individual da cidadania americana, com raízes comuns na “desobediência civil” de Thoreau” (ele novamente). Na verdade, Cage é o principal continuador das experimentações, vitais de Marianne Moore (sobretudo esta), de Gertrude Stein (aquela rotulada pelo poema “uma rosa é uma rosa é uma rosa”), de Pound e dos objetivistas, como Louis Zufovski.
Se para cummings, o “mais vivo de todos nós”, na consideração de Pound, a letra é físsil, como lembra Haroldo de Campos, e dialoga com a quebra ocidental da discursividade, seja por meio da leitura de uma folha caindo da árvore, seja por meio de um conjunto de constelações revestidas de pensamentos, em WCW, como aponta também Haroldo no ensaio “William Carlos Williams: altos e baixos”, o “que interessa é o que contribui para o futuro da linguagem poética, é o ‘objetivista’, de linhagem radicada no imagismo”. Ou seja, é o “Williams de certos poemas curtos, dono de uma apurada técnica de cortes, que serve a um contínuo negacear com o espaço gráfico – não mais um fator neutro, mas, em certa medida, um termo ativo na estrutura de suas peças –, por meio da qual a linguagem (às vezes uma só frase, um fio de frase desenrolado em carretel) é escandida em ictos sensíveis; uma linguagem que retém a inflexão do coloquial, porém minimizada, reduzida a notações de cor, som, forma, ambiente, donde o ritmo espacial, que contraria os morosos hábitos de leitura, através de destaques e pausas imprevistos, gerando articulações novas”. Como assinala Michael Hamburger, em A verdade da poesia, Williams é um poeta “cuja obra está cheia de pessoas, lugares e coisas”.


Haroldo atenta para o fato de que Paterson, o poema com objetivos épicos de Williams, no encalço dos Cantos poundianos, nunca conseguiu fugir ao epigonismo. Porém, na verdade, o que parece é que Paterson é uma coleção de poemas curtos reunidos numa mesma obra – afetados, o que não acontece na maior parte da obra de Williams, por um certo surrealismo que acaba desequilibrando o tom geral (embora haja Giorgio Agamben para dizer que se trata de um dos maiores poemas modernos, em Estâncias). Os poemas curtos de Williams já estão incorporados à tradição ocidental, assim como seu maior influenciado, Robert Creeley. Poemas que lidam com pequenos núcleos de imagens que vão criando um diálogo até se perfazer a obra, isso, é claro, quando não evoca a fala cotidiana e constrói blocos de versos a partir de certas reflexões corriqueiras – a imagem do pai é contraposta à de um pássaro. A Black Mountain College soube fazer uma síntese da obra de Williams; no entanto, é bom lermos a sua poesia independente de certas leituras de escola, com o intuito de que não seja rotulada. Desse modo, seu objetivismo é um grande legado, mas não o único: encontramos em WCW uma espécie de linguagem universal, capaz de unir paisagens a partir de um olhar do interior norte-americano que é também extensivo a muitos lugares pelo mundo. Uma gato, em WCW, é “o” gato – independente do lugar. Nesse sentido, ele se aproxima da poesia concreta.


Há muito WCW na poeta Sylvia Plath, que pertence a uma geração posterior daquele modernismo clássico, com um estilo ao mesmo tempo intimista, peculiarmente feminino, e atrevido, ao passo que ousa bastante num terreno complicado, que é a poesia. A vida real de Plath se assemelha muito à sua poesia: dolorida, tomada de tristeza e melancolia, mas, ainda assim, estruturada na linguagem – e, paralelamente à sua composição, culmina no doloroso suicídio. Sua dicção é tão inconfundível que não seria exagero considerar que ela deu um passo à frente da poesia de cummings e Whitman, expandindo os valores e sentimentos da mulher para todos os lados dentro da cultura norte-americana, utilizando formas de expressão interessantes, por meio de uma linguagem muitas vezes “feminina”, mas não “feminista”. Suas referências ao casamento, a ter filhos, a hospitais, a espinhos que machucam sem cicatrizar, a certos arrependimentos e ódios vão desenhando um mosaico complexo, que não se restringe à mulher do interior norte-americano subjugada pelo homem. As rosas e os lírios de Plath falam da sua alma labiríntica e da crueza do corpo. Não há busca do sentido épico das coisas, pessoas e lugares como em Eliot, Pound e Williams, nem o experimentalismo radical de linguagem de cummings. No entanto, é justamente nas pequenas observações cotidianas que a poesia de Plath adquire muita importância. Pode não apresentar o conflito religioso de Eliot, ou a busca pela tradição universal de Pound, nem o desenho do interior norte-americano de Williams, mas é justamente em suas construções verbais, sem as elipses e cortes de cummings, que vai se abrigar alguns dos momentos poéticos mais densos do modernismo. O suicídio de Plath não é menos característico da desesperança moderna do que a reclusão de Eliot e o distanciamento de Pound. É outra face da mesma moeda. São de Plath os momentos mais interessantes da poesia norte-americana depois de Pound, Eliot, WCW, cummings e Wallace Stevens – seria um equívoco, claro, esquecer Marianne Moore, mas esta merece uma interpretação à parte, baseada sobretudo no bom humor com que evoca paisagens e comportamentos típicos dos norte-americanos.

domingo, 7 de novembro de 2010

A velocidade vital de Álvaro de Campos

Por Nicole Cristofalo

Ao contrário da afirmação do Octavio Paz, no ensaio “O desconhecido de si mesmo – Fernando Pessoa”, os poetas possuem biografia, que pode ser mais ou menos relevante para a leitura de suas obras. Percebemos que Fernando Pessoa descreve a vida e a formação de Álvaro de Campos porque há alguma importância de termos esta informação antes de realizarmos a leitura dos poemas que o heterônimo engenheiro nos deixou. Álvaro teria nascido em Tavira, em 1890, e após seus estudos em um liceu foi para Escócia (Glasgow) se formar em Engenharia Mecânica, e depois Naval. Interessante notar que as duas cidades são marítimas, ou seja, tanto sua formação de engenheiro mecânico como também de engenheiro naval e a experiência de ter vivido (ficcionalmente) nestas cidades podem nos oferecer opções de leitura de seus diversos poemas com a temática marítima, assim como de suas odes publicadas no livro O engenheiro sensacionista, que pertence ao período de sua obra relacionado fortemente com o futurismo cosmopolita e veloz, sugado pelas máquinas e ruídos da tecnologia que trazia consigo a modernidade daquele momento.


Segundo José Gil, no ensaio “Ritmos e intensidade: a velocidade abstracta”, que pertence ao livro Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações, Campos procura dispersar sua consciência e fragmentá-la para conseguir se metamorfosear em sua escrita: “há em Pessoa dois regimes da consciência: esta torna-se consciência de si quando reflecte sobre si própria, tomando-se como seu próprio objecto – separa-se então da vida, do mundo, do corpo: e é todo o tema da dicotomia consciência/vida que se desenrola. Mas quando o plano de consistência se forma e as intensidades percorrem o “corpo-sem-órgãos”, a consciência desprende-se do eu, para se tornar ‘consciência do corpo’: torna-se ‘espaço abstracto’, ‘névoa’ – e reúne ao mundo, fazendo um só com ele. Atinge então o mais alto grau de abstracção, transmutando-se em pura matéria sensitiva, que recebe todos os tipos de impulsos, de sacões (do volante)”. O “corpo-sem-órgãos” traz a “força vital” em vez da beleza aristotélica ao poema. Neste ensaio, trabalharemos a ideia de “metamorfose” relacionada ao conceito do “corpo-sem-órgãos”, de José Gil, e da velocidade como manifestação desta força vital que o crítico aponta nos textos de Álvaro de Campos, analisando poemas que procuram abranger diversas fases de sua obra.


Reproduzimos as seguintes estrofes iniciais de “Lentidão dos vapores pelo mar”, publicado no livro O poeta decadente: “Lentidão dos vapores pelo mar... / Tanto que ver, tanto que abarcar. / No eterno presente da pupila / Ilhas ao longe, costas a despontar / Na imensidão oceânica e tranquila. / / Mais depressa... Sigamos... Hoje é o real... / O momento embriaga... A alma esquece / Que existe no mover-se... Cais, carnal... / Para os botes no cais quem é que desce? / Que importa? Vamos! Tudo é tão real! // (...)”. Quando se lê este início, o significado da velocidade, que se traduz no ritmo do poema, é bastante claro. O sujeito lírico exclama “Vamos!”, e em um primeiro momento pensamos que sua ânsia é a de ver novas paisagens. Porém, no decorrer da leitura, percebemos que sua ânsia é exatamente oposta, pois, se no início as viagens traziam a ele empolgação, agora estas mesmas paisagens o cansam, produzindo tédio quando são lembradas. Ao final do poema, o sujeito lírico procura parar completamente a velocidade: “Meu corpo inerte... Sigo, recostando / Minha cabeça no vidro que me treme / De encontro à consciência o meu ser todo; / Para que viajar? O tédio vai ao leme / De cada meu angustiado modo”. Quando o poema é lido tendo-se em mente a ideia do “corpo-sem-órgãos”, ocorrerá que “deixará de haver separação entre interior e exterior, entre sensação e coisa, e depois entre alma e corpo; e não haverá mais distâncias, nenhuma distância sequer entre a emoção e a paisagem, uma vez que o corpo terá adquirido o poder de matamorfosear o interior em paisagem, de ‘exfoliar’ ou reverter os seus órgãos intensivos para as formas exteriores (...)”. O corpo inerte do sujeito lírico deste poema realiza a metamorfose da emoção com a paisagem. Podemos dizer que este poema reflete a primeira fase de Álvaro de Campos, ligado ao romantismo e ao decadentismo, e que a velocidade está em lenta ascensão, ligada ao decadentismo, e ocorre fortemente apenas na fase seguinte.


Se a primeira fase de Álvaro de Campos se relaciona ao simbolismo, a segunda, que se inicia com o livro O engenheiro sensacionista, é fortemente ligada ao futurismo por meio de imagens que exaltam a industrialização e a modernidade onomatopeicas. O sujeito lírico trará consigo (uma vez que seu corpo é metamorfoseado em máquinas) a velocidade daquela paisagem. Fábricas, automóveis, navios, bares e o cosmopolitismo europeu se traduzem nas suas odes e poemas, como em “Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades”: “Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades / A chegada pela manhã a cais ou a gares / Cheios de um silencio repousado e claro! / Os primeiros passantes nas ruas das cidades a que se chega... / E o som especial que o correr das horas tem nas viagens...”. Se na terceira estrofe pensamos que Campos tratará das manhãs tranquilas de “novas cidades”, na quinta estrofe o “correr das horas” acelera como se pisasse nos pedais dos “ómnibus ou os eléctricos ou os automóveis” do verso seguinte, observando o “aspecto das ruas de novas terras...” para, logo em seguida, o poema “frear” com o verso: “A paz que parecem ter para a nossa dor”, acelerando no verso seguinte: “O bulício alegre para a nossa tristeza”, e freando em seguida: “A falta de monotonia para o nosso coração cansado!”, como se todo o poema se metamorfoseasse em um automóvel que acelera e freia para acelerar novamente: “E através disso tudo, como uma coisa que inunda e nunca transborda, / O movimento, o movimento / Rápida coisa colorida e humana que passa e fica...”. Também ficam “Os portos com navios parados, / Excessivamente navios parados”, mas os “barcos pequenos ao pé” esperam o movimento dos navios, deixando como um “contínuo” o movimento do acelerar e frear dos veículos modernos.
Na terceira e última fase de sua obra, Álvaro de Campos traz, nos livros O engenheiro metafísico e O engenheiro aposentado, um sujeito lírico desiludido com suas experiências. Percebemos que, a partir de então, a velocidade, fluido vital do sujeito lírico, desacelera, dando lugar, em O engenheiro metafísico, a um quase permanente estado ébrio no qual o sujeito lírico se questiona a todo o momento sobre as circunstâncias nas quais sua existência o coloca (como a morte de uma criança e a rápida superação daquela família), e procura imprimir suas conclusões em diversos poemas deste período. No poema “Estou cansado da inteligência”, do terceiro livro de Campos, vemos a velocidade “amodorrar” com “aquelas coisas que o vinho tem”: “Estou cansado da inteligência / Pensar faz mal às emoções. / Uma grande reacção aparece. / Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo / Na casa antiga da quinta velha”. O sujeito lírico, saudosista, relembra sua infância, quando era o “sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!”, como se o ato de pensar acelerasse suas emoções e o ritmo do poema, o que, neste momento, o sujeito lírico não demonstra desejo. Sua desilusão, que se refletirá em todo o restante de sua obra, fica clara nestes dois versos: “Estou cansado da inteligência. / Se ao menos com ela se percebesse qualquer coisa!”. Além de não ter trazido a ele as respostas necessárias para a sua existência, a inteligência faz com que ele só perceba “um cansaço no fundo, como baixam na taça / Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho”, trazendo a ele um estado ébrio que desacelera as paisagens e circunstâncias. O “não pensar em nada” se tornará um dos meios mais efetivos para a inércia que o sujeito lírico busca.


As imagens do saudosismo e lembranças de sua infância são também muito trabalhadas no quarto livro de Campos, O engenheiro aposentado. A procura pela desaceleração é cada vez mais intensa e, ao mesmo tempo, angustiante, como vemos no poema “Ah, que extraordinário”: “Ah, que extraordinário, / Nos grandes momentos do sossego da tristeza, / Como quando alguém morre, e estamos em casa dele e todos estão quietos, / O rodar de um carro na rua, ou o canto de um galo nos quintais... / Que longe da vida! É outro mundo. / Viramo-nos para a janela e o sol brilha lá fora – / Visto sossego plácido da natureza sem interrupções!”. O sossego, desaceleração da emoção, é desejado até mesmo quando vem acompanhado da tristeza causada pela morte de alguém. O sujeito lírico encontrado em O poeta decadente e O engenheiro sensacionista agora traz uma força oposta aos seus poemas: se antes a velocidade refletia a paisagem da cidade cosmopolita e industrial, agora há o distanciamento do sujeito lírico das emoções, e não encontramos, a partir de O engenheiro aposentado, a metamorfose de O engenheiro metafísico, quando a emoção se confunde com a paisagem, transformando-se na descrição de Campos exaltada e veloz. Agora, a desaceleração aproxima o sujeito lírico da insatisfação, do desejo de ser outra pessoa diante de sua existência e aproximação da morte, o que o faz buscar “O sossego da noite” e “O silêncio, que mais se acentua, / Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no escuro...”, resultado da “opressão de tudo isso!”. Porém, a consciência, “vaga náusea, a doença incerta, de me sentir”, traz a “inquietação” que, se no início fora desejo, agora não é mais.
Desta maneira, procuramos traçar a ideia do “corpo-sem-órgãos” na obra de Álvaro de Campos, assim como a velocidade que dita o ritmo e as imagens de seus poemas ao longo de sua obra, e que podemos enxergar como uma parábola, passando pelos primeiros poemas inertes, pelos textos sensacionistas altamente velozes, e terminando nos poemas do decadentismo novamente inerte.