sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Um lance para o acaso

Por André Dick

Trespassado pelo verso “Un coup de dés jamais n’abolira le hasard”, ou “espinha dorsal”, ou “oração-título”, expressões utilizadas por Michel Butor, o poema de Mallarmé compõe, como afirma Augusto de Campos, uma estrutura para a qual “convergem a experiência da música e da pintura e os modernos meios de comunicação, do ‘mosaico do jornal’ ao cinema [...] e às técnicas publicitárias”.
A despeito do que observa Mário Faustino, trata-se de “uma obra de arte autoconsciente, autodeterminada a um grau nunca atingido, nem antes nem, talvez, depois: cada palavra, cada letra, cada espaço entre palavras, cada espaço entre linhas, a dobra da página [...], valendo como um tronco de árvore, cujos ramos são os versos”.
Composto às portas do século XX, a novidade de Un coup de dés, como já havia adiantado Mallarmé e como observa Octavio Paz, “consiste em ser um poema crítico”. Para Octavio Paz, Un coup de dés “não nega o acaso, mas o neutraliza ou dissolve: il réduit le hasard à l’infini”. Essa negação da poesia “é também exaltação jubilosa do ato poético, verdadeiro disparo em direção ao infinito”, resultado da “impossibilidade de escrever um poema absoluto em condições também absolutas [...], graças à crítica, à negação”, mas sendo, dessa maneira, este poema “o único ponto possível [...] do absoluto”. Esta poesia concebida por Mallarmé como “a única possibilidade de identificação da linguagem com o absoluto, de ser o absoluto, nega-se a si mesma cada vez que se realiza num poema (nenhum ato, inclusive um ato puro e hipotético: sem autor, tempo ou lugar, abolirá o acaso) – salvo se o poema é simultaneamente crítica dessa tentativa. A negação da negação anula o absurdo e dissolve o acaso”.


Por meio das palavras de Paz, percebe-se que Un coup de dés, ao ser um poema posicionado como “negação da negação”, pela criticidade embutida em sua própria estrutura e concepção, termina por incorporar o acaso. Torna-se, assim, como escreve Paz a Haroldo de Campos, numa de suas cartas publicadas em Transblanco, um poema crítico que, “através dessa destruição de significado, é uma metáfora da busca desse significado”. Talvez por isso, embora seu projeto mais sonhado, Le livre, que seria um representante de toda a sua obra, não tenha chegado ao fim, houve a aceitação da crítica de que Un coup de dés, que seria apenas um esboço daquele seu livro mais desafiador, revolucionou a poesia, embora, como anota Leyla-Perrone Moisés, manuais literários até meados do século XX dessem pouca atenção ao feito de Mallarmé, considerando essa obra “apenas como uma experiência curiosa para uns, malograda para outros”, o que só veio a ser reconsiderado na década de 1950. Ou seja, na medida em que houve a impossibilidade de prosseguir com o outro projeto, ele se tornou, visto sob esse ângulo do acaso material, na grande realização de Mallarmé. Jacques Scherer, que compôs Le Livre de Mallarmé, reunindo notas e apontamentos sobre o sonhado projeto do poeta francês com fragmentos de poemas que não se completaram, tratam de “observações quanto à estrutura do poema, que seria – mais uma vez – um poema crítico, um poema sobre o poema, onde o acaso deveria ser integrado na composição”. Sempre o acaso, ligado, segundo Scherer, ao fato de que as folhas dos livros seriam cambiáveis, podendo mudar de lugar e ser lidas de acordo com certas “ordens de combinação determinadas pelo autor operador”.


Para Maurice Blanchot, Mallarmé desejava que o Le livre “fosse arquitetural e premeditado, e não uma compilação de inspirações do acaso, mesmo que maravilhosas”. O que significam essas palavras, “arquitetural” e “premeditado”, se pergunta Maurice Blanchot. Elas “indicam uma intenção calculadora, a aplicação de um poder de reflexão extrema, capaz de organizar necessariamente o conjunto da obra. Em primeiro lugar, trata-se de uma preocupação simples. Escrever segundo normas de composição estrita: logo, de uma exigência mais complexa: garantir seu pleno desenvolvimento”. No entanto, Blanchot encaminha-se para a interpretação de que Mallarmé pretendia extinguir o acaso e chegar a uma pureza extrema designada pela música, em que existem apenas as relações desenhadas pela sonoridade das palavras, ou seja, o poeta, por meio de sua obra, passaria a manter uma distância da realidade, aos poucos – o que, a nosso ver, não se confirma, uma vez que o acaso não deverá ser abolido exatamente porque o poeta se pauta pela musicalidade e pela crítica que traz consigo. Na frase dorsal de Un coup de dés, o acaso “não é liberado com a ruptura do verso pautado: ao contrário, sendo precisamente expresso, ele está submetido à lei exata da forma que lhe corresponde e à qual deve corresponder”.
Para Haroldo de Campos, Mallarmé, “preocupado com o controle do acaso, ao mesmo tempo em que afirmava a impossibilidade da abolição deste, insinuava dialeticamente –sob a chancela definitiva de um talvez – a viabilidade da própria possibilidade negada, através da obra-constelação, evento e momento humano (“UN COUP DE DÉS JAMAIS N’ABOLIRA LE HASARD/ Excepté peut-être pour une Constellation)”.
O acaso (hasard) também está ligado intimamente à própria forma como Mallarmé apresenta sua obra máxima, em seu prefácio, que, como a própria obra em si, busca e legitima os caminhos da experimentação. A própria composição da obra, baseada na questão do acaso, que nem Un coup de dés fará por abolir, faz com que Mallarmé escreva sobre os “brancos” da página, que assumem importância, “agridem de início”, exigidos pela versificação como “silêncio em derredor”.
O poema de Mallarmé representa a tentativa crítica de disciplinar o acaso, servindo como caminho de leitura, de transgressão, de mudança, servindo como suporte ao processo criativo, como indicação para a disseminação da transgressão. Como destaca Octavio Paz, ele não nega o acaso, mas “o neutraliza ou dissolve”, através de seus dados, “lançados pelo poeta, ideograma do acaso”. Conforme Blanchot, na mesma linha de raciocínio, o poema se abandona ao acaso, acreditando no “abandono da impotência”. Seria o poema que, “como breve e fugaz constelação, surge da luta contra o acaso, a desordem, o caos, a entropia dos processos físicos”. Como afirma Julia Kristeva, o hasard “é realmente a fortuna, o azar, o acaso imprevisível e ilimitado, o que escapa à razão ordenadora. Etimologicamente, porém, (árabe), hasard (o azar) quer dizer dado, de forma que a frase: “Un coup de dés jamais abolirá o acaso” constitui uma tautologia: “Un coup de dés jamais abolirá o (lance de) dado”.


Poucos anos mais tarde, o poeta e crítico literário Mário Faustino, em conceituação quase idêntica à de Kristeva, atestou: “Azar aqui tem ampla significação: acaso, sorte, destino, fado, azar, má sorte, boa sorte, neutra sorte, e mesmo (ou sobretudo?) jogo de dados: o étimo da palavra é o árabe az-zahr, uma espécie de jogo de dados e o próprio dado. Portanto, “Un coup de dés nunca abolirá o lance de dados”. Ou, “O azar nunca abolirá o azar”. Sem esquecer a significação toda especial que o verbo abolir (como surgir, fugir, submeter, consumir etc.) tem para Mallarmé: destruir, anular, demolir etc.
O significado do verso, para Kristeva, e, consequentemente, para Faustino, é claro: um êxito não pode encerrar o inesperado, a ordem não destrói o aleatório, uma expressão não fecha o imenso processo que a ultrapassa etc., o que aproxima seu raciocínio ao de Paz e Haroldo de Campos, com o único complemento de que, nos dois últimos, o acaso é neutralizado pela disposição seletiva crítica de compor uma ideia, de ser uma crítica da procura pelo absoluto. Se em Vita nova e na Divina Comédia, o autor, Dante Alighieri, é o personagem central, em Mallarmé a autoria se esconde nas constelações de palavras, mas, ainda assim, essa característica realça o seu papel crítico da literatura,

Um comentário:

  1. Mallarmé continua um dos poetas mais revolucionários da modernidade... Igitur, Um Lance de Dados e o Livro inacabado são obras inesgotáveis... o abraço do

    CD

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