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quarta-feira, 5 de setembro de 2012

John Cage: 100 anos

Por André Dick

Nascido em Los Angeles, no dia 5 de agosto de 1912, há exatamente 100 anos, John Cage foi um exemplo de multiartista. Mais conhecido como músico, na segunda metade do século XX, ele se tornou o poeta norte-americano mais importante, uma extensão do que Ezra Pound realizou, principalmente na realização dos sempre reavaliados Os cantos, traduzidos, de forma completa, aqui no Brasil, por José Lino Grunewald. Ele, entretanto, começou a compor partituturas bem antes de se envolver com as palavras. Era aluno de Henry Cowell e o já mencionado Arnold Schoenberg. Recebia aulas de graça deste último, com a condição de que dedicasse sua vida à música. Contrariando o mestre, Cage ignorou o dodecafonismo. Este aspecto da não musicalidade de Cage, não no mesmo sentido, é claro, ressoava na vida de João Cabral de Melo Neto. “Todas as coisas que me dão sonolência eu detesto. Por exemplo, a música”, afirmava o poeta de Pernambuco.


Ora, em 1937 Cage dizia: “enquanto no passado o ponto de discórdia / estava entre a dissonância e a consonância / no futuro próximo ele estará / entre o ruído / e os assim chamados sons musicais” (apud Augusto de Campos, De segunda a um ano). Pierre Boulez, nascido em 1925, optou pela música serial, ou seja, ao contrário de Cage, quis disciplinar sua obra através de um acaso crítico, não aberto à indeterminação do músico norte-americano. Dando-se razão aos dois, é certo que o interesse de Mallarmé, no prefácio de Un coup de dés, era transformar seu texto numa vertente sinfônica de palavras sob influxo de Richard Wagner:

Ajunte-se que deste emprego a nu do pensamento com retrações, prolongamentos, fugas, ou seu desenho mesmo, resulta, para quem queira ler em voz alta, uma partitura. A diferença dos caracteres tipográficos entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão oral, e a disposição em pauta, média, no alto, embaixo da página, notará o subir e o descer da entonação.

Sua reunião se cumpre sob uma influência, eu sei, estranha, a da Música ouvida em concerto; encontrando-se nesta muitos meios que me parecem pertencer às Letras, eu os retomo. O gênero, que se constitua num, como a sinfonia, pouco a pouco, a par do canto pessoal, deixa intacto o antigo verso [...]

Pierre Boulez escreve, em seu artigo “Pesquisas atuais” (1954), que “nem Mallarmé – de Un coup de dés – nem Joyce têm equivalentes na música de sua época. É possível, ou é absurdo, tomar assim pontos de comparação? (Se pensamos naquilo de que eles gostaram: Wagner para um; para outro a ópera italiana ou os cantos irlandeses...)”. Isso, porém, não retira de Mallarmé o interesse por Richard Wagner, e sua ligação com o músico através de textos críticos (“Richard Wagner” e “La musique et les lettres”) e de sua obra Un coup de dés. Estava em jogo não só a poesia, mas a música do poema, este como uma partitura, em que a tipografia, destacada ou não no conjunto, serve para indicar a importância da “emissão oral” e “a disposição em pauta, média, no alto, embaixo da página, notará o subir e o descer da entonação”.











A música, portanto, é um traço vital para se compreender a obra de Mallarmé, não só como pano de fundo de sua poética, mas como centro revitalizador da estrutura, no caso de Un coup de dés a espacial, da página em branco, em que palavras se organizam como uma música em concerto, como silêncio para ser lido pelos olhos, por meio da disposição (ou tamanho) de caracteres, uma vez que, segundo Michel Butor, as “diferenças de intensidade na emissão das palavras são traduzidas por diferentes corpos tipográficos”. Não por acaso, Pierre Boulez situa o silêncio como parte integrante do ritmo. Ao abordar a música como uma combinação entre som e silêncio, Boulez aponta Webern como o precursor dessa ideia e afirma que “tudo o que é valor – ou seja, som – torna-se silêncio, tudo o que é silêncio transforma-se em valor – ou seja, em som”.
Como afirma Mallarmé, “não se trata, à maneira de sempre, de traços sonoros regulares ou versos – antes, de subdivisões prismáticas da Ideia”. O escritor mexicano Octavio Paz considera que a Ideia “não pode ser contemplada em sua totalidade porque o homem é tempo, perpétuo movimento: o que vemos e ouvimos são as ‘subdivisões’ da Ideia através do prisma do poema”. O livro de Mallarmé seria uma “música para o entendimento e não para o ouvido; mas um entendimento que ouve e vê com os sentidos interiores”. Paz lembra que a poesia de Mallarmé, como toda a poesia ocidental, nasceu aliada à música, mas “a cada vez que se tentou reuni-las o resultado foi a querela ou a absorção da palavra pelo som”. Dessa forma, deve-se pensar, o que Un coup de dés vem a atestar, que a “poesia tem sua própria música: a palavra”, e, como seu autor demonstra, esta música é “mais vasta que a do verso e da prosa tradicionais”. Mas sempre com o acaso em primeiro lugar.
Para Cage, o “acaso” é “um mecanismo que não tem nada a ver com meus sentimentos e meus pensamentos, uma operação que permite libertar-me do meu ego. O ego é uma barreira para a experiência. O acaso permite uma situação que não expressa o ‘eu’, mas que abre o ‘eu’ para coisas que estão fora dele” (em entrevista a Rodrigo Garcia Lopes, em Vozes e visões).
Principal responsável por trazer à cultura norte-americana o aprendizado oriental do I Ching e, com ele, a música indeterminada, além da consciência do acaso de Mallarmé, fazendo com que suas peças musicais tivessem uma repercussão incomum, Cage lidou com as noções de acaso dentro de sua música, obviamente influenciado pela obra máxima de Mallarmé, juntamente com as ideias da filosofia oriental adotada.


Perguntado sobre este livro chinês, Cage respondeu na entrevista referida:

O I Ching é uma coisa velha e nova ao mesmo tempo, data de 65 a.C. [...] Uso em qualquer atividade em que não exista um objetivo definido ou um alvo a ser atingido, como o de dar prazer ou quando escrevo poesia, quando componho música ou executo meus trabalhos gráficos. Percebi que, na maioria das vezes, quando faço a pergunta ‘qual é o problema?’ descubro que não há problema algum a ser resolvido. Acho que essas atividades envolvendo operações do acaso não tem nada a ver com auto-expressão. Para mim, o I Ching é uma disciplina do ego. Faço uso dele quando estou livre de certas preocupações [...].

O músico e poeta norte-americano levou o acaso ao seu ponto mais extremo, tornando-o diferente daquele de Mallarmé e, consequentemente, de Pierre Boulez: Cage não pretendia controlar o acaso; queria deixá-lo em total liberdade. Como afirma Haroldo de Campos,

Já votados decididamente e programaticamente ao caos e à pura franquia do acaso, se situam o compositor norte-americano John Cage (cujo método se baseia na manipulação aleatória do jogo chinês de palitos da sorte, o I CHING, com 64 possibilidades de permutação) e seus discípulos, os ‘cagistas’. Trata-se de uma espécie de transposição para a música, do tachismo ou, mais exatamente, do action painting, cultivando-se o indeterminismo no seu grau mais elevado.

“O que se busca”, afirmava Cage, “não é a indeterminância ou determinância e sim não intenção”. Para ele, a indeterminação é a base do silêncio, “cheio de sons que simplesmente ocorrem”, sendo a intenção a única diferença entre aqueles sons e os sons que se provoca conscientemente. Chega-se à conclusão de que “o mais importante é a ausência de intenção e a aceitação do que acontece”. Dividida entre a superficialidade da música, ligada “a seus elementos mais aparentes: continuidade temporal, regularidade rítmica, definição de região total, linearidade diretamente apreensível”, e à sua profundidade, que abrange “estruturas não lineares, defasadas, irregulares ou assimétricas, texturas completas”, segundo José Miguel Wisnik (O som e o sentido), a música de Cage desfaz o mito da música superficial e da úsica profunda apontando para essa indeterminação do acaso.
Em meio ao debate sobre o acaso, Cage não teria apreciado o artigo “Alea” (1957), incluído em Apontamentos de aprendiz, em que Pierre Boulez tomara posição diante dos problemas da interferência do acaso na composição, admitindo o acaso controlado mas rejeitando o que ele qualifica de “acaso por inadvertência”.


Não há dúvida que Boulez fazia muitas referências implícitas a Cage. Já no início de seu artigo, se lê:

Pode-se observar, atualmente, em muitos compositores de nossa geração uma preocupação, para não dizer obsessão, com o acaso. Pelo menos que eu saiba, é a primeira vez que tal noção intervém na música ocidental, e esse fato merece que nos detenhamos nele porque é uma bifurcação importante demais na ideia da composição para ser subestimada ou recusada incondicionalmente.

De forma evidente, Boulez se refere a Cage. E continua referindo-se a ele, quando, ironicamente, afirma que a “forma mais elementar da transmutação do acaso estaria na adoção de uma filosofia colorida de orientalismo que encobrisse uma franqueza fundamental na técnica da composição; seria um recurso contra a asfixia da invenção, recurso de veneno sutil que destrói qualquer embrião de artesanato; eu qualificaria esta experiência [...] de acaso por inadvertência”.
Boulez desconfia de que isso seja uma experiência, pois nela o indivíduo não se sentiria responsável por sua obra, “simplesmente se atirando por franqueza inconfessada, por confusão e por alívio temporário em uma espécie de magia pueril”. Desse modo, o acaso aconteceria sem controle, embora sempre “no interior de uma certa trama estabelecida de acontecimentos prováveis, porque sempre é preciso que o acaso disponha de algo eventual”. Surge, desse modo, uma recusa da estrutura preestabelecida e um “desejo de criar uma complexidade em movimento [...], especificamente característica da música executada, interpretada por oposição à complexidade fixa e não renovável da máquina”, um “acaso por automatismo, automatismo puro”.
Para Boulez, a composição resulta de uma constante escolha, sempre com intervenções do acaso, materializando “certas propostas de estrutura que ficariam amorfas”. O músico francês, dessa maneira, quer inserir o acaso na composição, o que, para ele, é uma “loucura útil”, e fazer com que eventos aleatórios sejam incorporados por uma composição mesmo indeterminada. Boulez crê que se pode “absorver o acaso instaurando um certo automatismo de relações entre as redes de probabilidade previamente estabelecidas”. Consequência disso é que o acaso começa a produzir iluminações guiadas por um sentido de criticidade, sob o “pragmatismo da invenção”.
De acordo com o rigor, maior ou menor, vai-se obter, segundo Boulez, “um encontro único ou encontros múltiplos em diversos graus, ou seja, uma oportunidade única ou múltipla”. A liberdade do executante “não muda absolutamente em nada a noção de estrutura”. Fazendo uma menção aberta à relação entre Cage e o universo oriental, Boulez escreve: “Respeitemos o que a obra ocidental tem de ‘acabado’, o seu ciclo fechado, mas introduzindo a ‘possibilidade’ da obra oriental, seu desenvolvimento aberto”. No final de seu artigo, ele menciona uma passagem de Igitur, que foi o embrião de Un coup de dés: “Resumindo, um ato em que o acaso está em jogo, é sempre ele que realiza sua própria Ideia afirmando-se ou negando-se. A afirmação e a negação fracassam diante de sua existência. Ele contém o Absurdo – dá-lhe implicação, mas em estado latente e impede-o de existir: e ao Infinito é permitido ser”. Esse fragmento certamente resume a visão de Boulez sobre o acaso, que se afirma e se nega, afirma-se e fracassa, ficando sempre equilibrado nesse fio entre o acaso totalmente indeterminado e o acaso que valoriza uma estrutura preestabelecida.












Não só em “Alea”, Boulez abordou a questão do acaso ou fez referência à obra de Mallarmé. Em “O momento de Johann Sebastian Bach” (1951), ele escreve:

Em meio aos simulacros de lógica em que apodrecemos, de apriorismos destituídos de qualquer espírito crítico, de uma “tradição” puxada para um lado ou outro segundo a necessidade de todas as causas mais ou menos vergonhosas, em meio a essas atividades desprezíveis de pobres seres à cata de ‘autenticidade’, devemos dar, enfim, seu potencial ao que Mallarmé chamava o ‘Acaso’.

E encerra o artigo referindo-se, mais uma vez, ao Un coup de dés: “Porque, se devemos ao poeta a frase famosa ‘Não é com ideias que se fazem versos, mas com palavras’, frase que – interpretada num sentido único – serviu de pretexto a fórmulas conciliadoras, isso não é uma razão para nos esquecermos de que: Toute pensée émet un coup de dés”.

Difícil afirmar qual dos dois (Cage e Boulez) estava mais perto do acaso mallarmeano, quase impossível, mas o controle crítico e racional certamente aproximaria mais Boulez do poeta francês. Como lembra Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provável, Boulez observava que “no nível da colocação em jogo das próprias estruturas” é possível “absorver o acaso, instaurando um certo automatismo de relação entre diversos feixes de possibilidades estabelecidos de antemão”.
Transportando esta reflexão musical ao universo literário, mais propriamente poético, observa Haroldo de Campos a respeito da organização estrutural e criativa de Un coup de dés: “A inteligência ordenadora delimita o campo de escolha, o feixe de possibilidades é engendrado pelas próprias necessidades da estrutura poemática pensada: a opção criadora significa liberdade de escolha, mas também – e sobretudo – liberdade vigiada por uma consciência seletiva e crítica”. Ou seja, tanto o acaso de Mallarmé, incorporado ao universo literário como feixe de instigação criativa e seletiva, quanto o de Boulez remetem à ordenação de fatores, não indo tanto pelo caminho de Cage, que privilegia o acaso total – embora vital para sua produção.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

As “flores da fala” de James Joyce e Haroldo de Campos (II)

Por André Dick

“Esta sua prosa é o demo!”, disse Guimarães Rosa a Haroldo quando este lhe mostrou trechos dela. “Prosa minada”, registrou Andrés Sánchez Robayna. “Fosforescências semânticas entre o branco do papel e o negro das letras”, conforme Octavio Paz. Redundante, superficial, monótona: também há muitos adjetivos negativos dados ao livro Galáxias desde seu lançamento. O principal detalhe é que suas páginas foram lidas por poucos, mesmo porque sua primeira edição, da Ex Libris, era bastante rara. Obra feita entre 1963 e 1976 (mas só lançada em 1984), dividida em 50 “rapsódias” ou “cantos” – como falava Haroldo –, e cuja primeira seleção maior de fragmentos foi publicada em Xadrez de estrelas (1976), ela é composta por um discurso quase ininterrupto, sem pontuação e com letra sempre minúscula, interrompido apenas pelo branco do verso de cada página, em diálogo contínuo com Joyce e Mallarmé. Esse discurso é aberto a qualquer ideia – de origem poética ou não – que se encaixe na experimentação pretendida. A obra aberta (que Haroldo via como “neobarroca”), na realidade, desestabiliza a linguagem corrente e rompe limites, sendo assim muito difícil de ser aceita. Mesmo Leminski, admirador da obra, apontou que em Galáxias caberia tudo. Por isso, Galáxias é um exemplo de livro que não pode ser entendido à luz da sociologia e da política, de teorias sobre como o subdesenvolvimento econômico interfere no plano literário – e isso, de certo modo, evidencia sua inutilidade. Trata-se de uma escritura (a escrita literária, para Barthes), não importando se de vanguarda, mas de um tempo, não tão distante, mas já nostálgico, em que se experimentava por vontade de recriar e não para somente reciclar ou se passar por vanguardista.


Mais do que partir do ponto de origem da escritura (a obra se abre com a sonoridade de “e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem”, que faria jus aos experimentos bíblicos de Haroldo), Galáxias se diferencia por trabalhar com o precário, o indefinido. Por isso aponta para o vazio. A ele se dirige Haroldo, através de um fluxo barroco de vocábulos, expressões raras ou reles (o plurilinguismo de que falava Bakhtin, e é próprio de Joyce, está todo nele), caracterizando uma polifonia poética capaz de dar a noção exata do que ele queria como projeto de vida: Galáxias representa a convergência entre a literatura que se diz brasileira com a literatura universal. O trabalho criativo de Haroldo é universal, como era seu trabalho teórico-crítico (A operação do texto, O arco-íris branco, Metalinguagem & outras metas, O sequestro do Barroco na Formação da literatura brasileira, para citar alguns de seus livros mais importantes nessa área) e de tradução (que abrange autores como Dante e Mallarmé). Daí ser necessário que sejam conhecidos Xadrez de estrelas, Signantia: quasi coelum, A educação dos cinco sentidos, Crisantempo, Entremilênios e este Galáxias. O público, sobretudo o mais jovem, poderá conhecer melhor, assim, um autor capaz de mesclar erudição com uma paixão incomum – cada vez mais rara – pela poesia.


As leituras de parte da vida de Haroldo estão inseridas em Galáxias, razão pela qual essa obra também pode ser vista como uma cartografia de suas ausências. Haroldo ilumina e, ao mesmo tempo, elimina passagens de sua vida e de leituras através da escrita; onde ele se mostra presente, possivelmente é onde esteja mais ausente. A lembrança de Haroldo, num conhecido ensaio seu, de Goethe vendo o arco-íris branco como um sinal de uma nova puberdade, além de caracterizá-lo como fenômeno meteorológico, movimenta a escritura que se desprende de Galáxias. Trata-se de uma mesma revitalização: Goethe buscava descanso em Frankfurt, enquanto Haroldo vai tentar desaparecer junto com as palavras no papel em branco. O fluxo (de linguagem, de pensamento, de vida) de não pertence nem à mão que o escreve nem à representação da realidade que reflete essas experiências. Pertence, sim, ao sentido de dispersão do Texto (com letra maiúscula, como Barthes empregava), sua convergência para a morte literária, na qual a subjetividade do sujeito se mescla a leituras, sempre textuais, que ele realizou vida afora. Leituras, por exemplo, de Bashô (“o senhor bananeira bashô para quem uma peônia florindo podia ser um gato de prata ou um gato de ouro uma peônia florindo na luz”, em “poeta sem lira”); de Hölderlin (“aquela fala tinta de vermelho do senhor hölderlin”, em “neckarstrasse”); de João Cabral (“a febre é tanta e fezes que a escrita agora se reescreve”, em “hier liegt”); de Ezra Pound (“o velho poeta via ainda ou queria ver os punti luminosi mas sabia não saber nada”, em “mármore ístrio”); de Gertrude Stein (“neste fio de linguagem há um fio de linguagem que uma rosa é uma rosa como uma prosa é uma prosa há um fio de viagem há um vis de mensagem e nesta margem da margem há pelo menos margem”, em cadvrescrito”); de Homero (“a primeira tinta da aurora agora o rosício roçar rosa da dedirrósea agora aurora”, em “multidudinous”), além das referências à literatura greco-latina em geral espalhadas em muitos fragmentos e ao Le livre inacabado de Mallarmé. O sujeito, sendo o próprio fluxo da linguagem, transforma-se em constelação de outras galáxias, imagem que possivelmente agradasse a Haroldo, que foi um estudioso de Macunaíma, personagem cujo fim, aliás, é estelar.


A pergunta que o possível (porque indefinido) autor, nesse caminho, se faz constantemente é: “O que é o Texto?”. Nesse sentido, Barthes dizia: “O Texto não é a coexistência de sentidos, mas passagem, travessia: não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação” (O rumor da língua). Haroldo persegue a resposta por páginas e páginas, sem conseguir encontrá-la, pois ela inexiste. Nesse sentido, sua obra revitaliza uma escritura essencialmente dialógica, voltada para aquela enunciação ininterrupta de imagens e situações, vividas real ou literariamente, solucionadas nos espaços da linguagem e do imaginário. Haroldo tem consciência sobre o que escreve, pois foi um aluno (tardio) de Stéphane Mallarmé. Foi ele quem traduziu, no final dos anos 1950, a obra Un coup de dés para Um lance de dados (para “lance” se reproduzir em “lançado”). A epígrafe mallarmeana de Galáxias (“La fiction affleurera et se dissipera, vite, d’après la mobilité de l’écrit”) mostra isso muito bem: a vida se movimenta também na “mobilidade da escrita”. Como tem essa consciência, Haroldo sabe que a modernidade é um projeto que destrói para renovar. Lembre-se que é um dos poemas mais importantes da modernidade, revolucionário a ponto de influenciar toda a crítica literária moderna. Nele, como observa Octavio Paz, Mallarmé ainda é simbolista, mas também já é moderno. Além disso, o poema mallarmeano também caracteriza a dissolução de territórios: através de sua linguagem ainda simbolista, já há um salto para o universo da música, apenas imaginado por Baudelaire em As flores do mal, mas não consumado.


Em Galáxias, Haroldo faz algumas dissoluções. Não me parece importante decidir sobre se a obra é prosa ou poesia, talvez a primeira pergunta que surja quando o leitor pegar o volume – e é a pergunta mais repetida desde sua publicação. Paulo Leminski escreveu em “Prosa estelar” (Anseios crípticos 2) que entre “a força centrífuga da prosa e a centrípeta da poesia”, o livro de Haroldo “representa uma síntese, uma espécie de momento de repouso entre dois ímpetos que seguem em direções opostas”, mas afirma que nele “a prosa parece sair ganhando por pouco”, sob influência de Joyce, a prosa que Guimarães Rosa viu como “do demo” (muito sob influência de seu Grande sertão: veredas). Já Haroldo propôs que se trata de “um poema longo, uma gesta em escritura”, em certa entrevista recolhida em Metalinguagem & outras metas. O propósito de Haroldo talvez seja mais o de anular os gêneros, por meio da rarefação de sentidos, da desautomatização linguística e sintática, ele que foi um estudioso das teorias de Jakobson, Kristeva e Barthes. Um objeto híbrido, em transformação, indeterminado, pois o espaço do qual trata é sem fronteiras. A viagem se passa dentro da escritura, e dentro da escritura pode acontecer tudo – até mesmo nada acontecer (“como quem escreve um livro como quem faz uma viagem”). E, sob tal aspecto, sua aproximação é com o Texto digamos neutro, o grau zero da escritura que Barthes propunha. Galáxias não é nem uma coisa nem outra. Ela é tudo (poesia, prosa, relato, diário, carta) ao mesmo tempo.


Haroldo no entanto se aplica como poucos na busca dessa sutileza musical, para transformar as palavras em música, como tentou, e conseguiu Caetano Veloso, em Circuladô, por meio da peça “Circuladô de fulô”, de Galáxias (é importante lembrar que, ao visitar Gil e Caetano no exílio, Haroldo lia a eles trechos de Galáxias), num dos grandes momento de invenção da MPB. Daí a redundância proposital: o seu sentido é invisível, transcende o olhar do leitor, que se perde no acaso legível da escritura: abstrato como a música. O texto de Haroldo, como uma peça ao mesmo tempo harmônica e caótica, recorre a si mesmo diversas vezes. Não por acaso (imagem cara a Mallarmé), ele escreve no texto “ora, direis, ouvir galáxias”, texto que havia sido elaborado para acompanhar o CD Isto não é um livro de viagem: “[...] cada fragmento isolado introduz sua ‘diferença’, mas contém em si mesmo, como em linha d’água, a imagem do livro inteiro [...]”. Não há dúvida de que Haroldo, aqui, relembra as “subdivisões prismáticas da Ideia”, do prefácio de Um lance de dados. A própria apresentação gráfica de Galáxias, sem parágrafos e pontuação, representa que há uma linha fina tênue, musical, conduzida do início ao fim. Ele não rompe seu texto (apesar do branco do verso de cada página), como não é possível resguardar o branco da página da ausência e da morte. Nesse sentido, ele adota, como bem percebeu João Alexandre Barbosa, uma “circularidade”. Seu ímpeto verbal também é feito de saques, do povo “inventalínguas”, convertidos imediatamente em linguagem: “a vida é também matéria de vida de lida de lido matéria delida deslida treslida tresvivida nessa via de vida que passa pelo livrovida livro ivro de vida bebida batida mexida” (em “neckarstrasse”). Essa conversão em linguagem tem um sentido visual muito apurado, tanto que Galáxias rendeu também um filme de Júlio Bressane, Galáxia albina.


Galáxias dialoga com toda a obra de Haroldo. Para notar isso, o leitor pode recorrer a um texto de Andrés Sánchez Robayna aproveitado em Signantia: quasi coelum, onde o autor avalia que Galáxias dialogaria com todas as obras de Haroldo, sobretudo a partir de o â mago do ô mega (1955-56). Em Lacunae, seleção de poemas de 1971-1972, representa bem a página como galáxia: palavras espalhadas, como estrelas, sobre o vazio da página. Esse traço apenas se amplia em Signantia: quasi coelum, como se o leitor avistasse a obra de um caleidoscópio. Embora se utilize da alegoria de uma jornada dantesca (como em Finismundo há uma alegoria da jornada de Ulisses, dialogando tanto com Homero como com Joyce), Signantia trata implicitamente da própria essência da escritura, ligando sua seleção à composição de Galáxias. Esta criação seminal de Haroldo também encontrará eco em sua tradução de Blanco, o poema mais ousado de Octavio Paz, e suas recriações bíblicas (A cena da origem é o exemplo mais direto, também por sua concepção gráfica) nos anos derradeiros de vida. E vai se proliferar nos poemas de A educação dos cinco sentidos, de Crisantempo e nos poemas mais recentes do livro póstumo, Entremilênios.
Se havia alguma obsessão na obra de Haroldo, é que ele traduziu a morte para a página em branco da maneira mais completa, pois deixava se apagar, fazia com que sua origem proposta – a da escritura – fosse também a origem do Outro, da palavra que cerca a linguagem. Não havia “fora do texto”: havia “dentro do texto”. Ele se deixava falar apenas em sua linguagem. Ele, porém, não era um autor que privilegiava a fala em detrimento da escrita (característica contra a qual seu amigo e admirador Jacques Derrida se manifestava). Haroldo se anulava em sua voz pessoal, tanto inscrita quanto distante do papel.


O que ele escreve, fala, se faz independente da sua figura humana, pelo espaço da escrita ou da música. Como Kafka, Haroldo sabia que era apenas literatura e não poderia nem queria ser outra coisa, ou seja, um “personagem” da melhor espécie, pois não apenas fictício. Em meio a essa busca, seu grande feito foi – e Galáxias demonstra isso – aproximar o rigor da síntese com a multiplicidade do barroco e do épico. Diminuiu a distância entre extremos, trabalhando com a solidão da página em branco, da ausência de qualquer exagero. Quando lê trechos de seu livro, Haroldo transforma-se em pó do cosmos (para utilizar a imagem de um poema de seu irmão Augusto), tornando-se, como a própria literatura, invisível. E quando lemos Galáxias sabemos que nós também podemos desaparecer junto com a sua textualidade. O êxito da obra talvez esteja em mostrar que o pai do texto – como queriam os estruturalistas – não está ali, mas os leitores podem procurá-lo e encontrar ainda um ponto de azul entre as estrelas, na linha de um espaço curvo. Ali ele deve permanecer esperando a chegada de outras galáxias, pois “o branco é uma linguagem que se estrutura como a linguagem seus signos acenam com senhas e desígnios são sinas estes signos que se desenham num fluxo contínuo”.