quinta-feira, 16 de junho de 2011

As “flores da fala” de James Joyce e Haroldo de Campos (II)

Por André Dick

“Esta sua prosa é o demo!”, disse Guimarães Rosa a Haroldo quando este lhe mostrou trechos dela. “Prosa minada”, registrou Andrés Sánchez Robayna. “Fosforescências semânticas entre o branco do papel e o negro das letras”, conforme Octavio Paz. Redundante, superficial, monótona: também há muitos adjetivos negativos dados ao livro Galáxias desde seu lançamento. O principal detalhe é que suas páginas foram lidas por poucos, mesmo porque sua primeira edição, da Ex Libris, era bastante rara. Obra feita entre 1963 e 1976 (mas só lançada em 1984), dividida em 50 “rapsódias” ou “cantos” – como falava Haroldo –, e cuja primeira seleção maior de fragmentos foi publicada em Xadrez de estrelas (1976), ela é composta por um discurso quase ininterrupto, sem pontuação e com letra sempre minúscula, interrompido apenas pelo branco do verso de cada página, em diálogo contínuo com Joyce e Mallarmé. Esse discurso é aberto a qualquer ideia – de origem poética ou não – que se encaixe na experimentação pretendida. A obra aberta (que Haroldo via como “neobarroca”), na realidade, desestabiliza a linguagem corrente e rompe limites, sendo assim muito difícil de ser aceita. Mesmo Leminski, admirador da obra, apontou que em Galáxias caberia tudo. Por isso, Galáxias é um exemplo de livro que não pode ser entendido à luz da sociologia e da política, de teorias sobre como o subdesenvolvimento econômico interfere no plano literário – e isso, de certo modo, evidencia sua inutilidade. Trata-se de uma escritura (a escrita literária, para Barthes), não importando se de vanguarda, mas de um tempo, não tão distante, mas já nostálgico, em que se experimentava por vontade de recriar e não para somente reciclar ou se passar por vanguardista.


Mais do que partir do ponto de origem da escritura (a obra se abre com a sonoridade de “e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem”, que faria jus aos experimentos bíblicos de Haroldo), Galáxias se diferencia por trabalhar com o precário, o indefinido. Por isso aponta para o vazio. A ele se dirige Haroldo, através de um fluxo barroco de vocábulos, expressões raras ou reles (o plurilinguismo de que falava Bakhtin, e é próprio de Joyce, está todo nele), caracterizando uma polifonia poética capaz de dar a noção exata do que ele queria como projeto de vida: Galáxias representa a convergência entre a literatura que se diz brasileira com a literatura universal. O trabalho criativo de Haroldo é universal, como era seu trabalho teórico-crítico (A operação do texto, O arco-íris branco, Metalinguagem & outras metas, O sequestro do Barroco na Formação da literatura brasileira, para citar alguns de seus livros mais importantes nessa área) e de tradução (que abrange autores como Dante e Mallarmé). Daí ser necessário que sejam conhecidos Xadrez de estrelas, Signantia: quasi coelum, A educação dos cinco sentidos, Crisantempo, Entremilênios e este Galáxias. O público, sobretudo o mais jovem, poderá conhecer melhor, assim, um autor capaz de mesclar erudição com uma paixão incomum – cada vez mais rara – pela poesia.


As leituras de parte da vida de Haroldo estão inseridas em Galáxias, razão pela qual essa obra também pode ser vista como uma cartografia de suas ausências. Haroldo ilumina e, ao mesmo tempo, elimina passagens de sua vida e de leituras através da escrita; onde ele se mostra presente, possivelmente é onde esteja mais ausente. A lembrança de Haroldo, num conhecido ensaio seu, de Goethe vendo o arco-íris branco como um sinal de uma nova puberdade, além de caracterizá-lo como fenômeno meteorológico, movimenta a escritura que se desprende de Galáxias. Trata-se de uma mesma revitalização: Goethe buscava descanso em Frankfurt, enquanto Haroldo vai tentar desaparecer junto com as palavras no papel em branco. O fluxo (de linguagem, de pensamento, de vida) de não pertence nem à mão que o escreve nem à representação da realidade que reflete essas experiências. Pertence, sim, ao sentido de dispersão do Texto (com letra maiúscula, como Barthes empregava), sua convergência para a morte literária, na qual a subjetividade do sujeito se mescla a leituras, sempre textuais, que ele realizou vida afora. Leituras, por exemplo, de Bashô (“o senhor bananeira bashô para quem uma peônia florindo podia ser um gato de prata ou um gato de ouro uma peônia florindo na luz”, em “poeta sem lira”); de Hölderlin (“aquela fala tinta de vermelho do senhor hölderlin”, em “neckarstrasse”); de João Cabral (“a febre é tanta e fezes que a escrita agora se reescreve”, em “hier liegt”); de Ezra Pound (“o velho poeta via ainda ou queria ver os punti luminosi mas sabia não saber nada”, em “mármore ístrio”); de Gertrude Stein (“neste fio de linguagem há um fio de linguagem que uma rosa é uma rosa como uma prosa é uma prosa há um fio de viagem há um vis de mensagem e nesta margem da margem há pelo menos margem”, em cadvrescrito”); de Homero (“a primeira tinta da aurora agora o rosício roçar rosa da dedirrósea agora aurora”, em “multidudinous”), além das referências à literatura greco-latina em geral espalhadas em muitos fragmentos e ao Le livre inacabado de Mallarmé. O sujeito, sendo o próprio fluxo da linguagem, transforma-se em constelação de outras galáxias, imagem que possivelmente agradasse a Haroldo, que foi um estudioso de Macunaíma, personagem cujo fim, aliás, é estelar.


A pergunta que o possível (porque indefinido) autor, nesse caminho, se faz constantemente é: “O que é o Texto?”. Nesse sentido, Barthes dizia: “O Texto não é a coexistência de sentidos, mas passagem, travessia: não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação” (O rumor da língua). Haroldo persegue a resposta por páginas e páginas, sem conseguir encontrá-la, pois ela inexiste. Nesse sentido, sua obra revitaliza uma escritura essencialmente dialógica, voltada para aquela enunciação ininterrupta de imagens e situações, vividas real ou literariamente, solucionadas nos espaços da linguagem e do imaginário. Haroldo tem consciência sobre o que escreve, pois foi um aluno (tardio) de Stéphane Mallarmé. Foi ele quem traduziu, no final dos anos 1950, a obra Un coup de dés para Um lance de dados (para “lance” se reproduzir em “lançado”). A epígrafe mallarmeana de Galáxias (“La fiction affleurera et se dissipera, vite, d’après la mobilité de l’écrit”) mostra isso muito bem: a vida se movimenta também na “mobilidade da escrita”. Como tem essa consciência, Haroldo sabe que a modernidade é um projeto que destrói para renovar. Lembre-se que é um dos poemas mais importantes da modernidade, revolucionário a ponto de influenciar toda a crítica literária moderna. Nele, como observa Octavio Paz, Mallarmé ainda é simbolista, mas também já é moderno. Além disso, o poema mallarmeano também caracteriza a dissolução de territórios: através de sua linguagem ainda simbolista, já há um salto para o universo da música, apenas imaginado por Baudelaire em As flores do mal, mas não consumado.


Em Galáxias, Haroldo faz algumas dissoluções. Não me parece importante decidir sobre se a obra é prosa ou poesia, talvez a primeira pergunta que surja quando o leitor pegar o volume – e é a pergunta mais repetida desde sua publicação. Paulo Leminski escreveu em “Prosa estelar” (Anseios crípticos 2) que entre “a força centrífuga da prosa e a centrípeta da poesia”, o livro de Haroldo “representa uma síntese, uma espécie de momento de repouso entre dois ímpetos que seguem em direções opostas”, mas afirma que nele “a prosa parece sair ganhando por pouco”, sob influência de Joyce, a prosa que Guimarães Rosa viu como “do demo” (muito sob influência de seu Grande sertão: veredas). Já Haroldo propôs que se trata de “um poema longo, uma gesta em escritura”, em certa entrevista recolhida em Metalinguagem & outras metas. O propósito de Haroldo talvez seja mais o de anular os gêneros, por meio da rarefação de sentidos, da desautomatização linguística e sintática, ele que foi um estudioso das teorias de Jakobson, Kristeva e Barthes. Um objeto híbrido, em transformação, indeterminado, pois o espaço do qual trata é sem fronteiras. A viagem se passa dentro da escritura, e dentro da escritura pode acontecer tudo – até mesmo nada acontecer (“como quem escreve um livro como quem faz uma viagem”). E, sob tal aspecto, sua aproximação é com o Texto digamos neutro, o grau zero da escritura que Barthes propunha. Galáxias não é nem uma coisa nem outra. Ela é tudo (poesia, prosa, relato, diário, carta) ao mesmo tempo.


Haroldo no entanto se aplica como poucos na busca dessa sutileza musical, para transformar as palavras em música, como tentou, e conseguiu Caetano Veloso, em Circuladô, por meio da peça “Circuladô de fulô”, de Galáxias (é importante lembrar que, ao visitar Gil e Caetano no exílio, Haroldo lia a eles trechos de Galáxias), num dos grandes momento de invenção da MPB. Daí a redundância proposital: o seu sentido é invisível, transcende o olhar do leitor, que se perde no acaso legível da escritura: abstrato como a música. O texto de Haroldo, como uma peça ao mesmo tempo harmônica e caótica, recorre a si mesmo diversas vezes. Não por acaso (imagem cara a Mallarmé), ele escreve no texto “ora, direis, ouvir galáxias”, texto que havia sido elaborado para acompanhar o CD Isto não é um livro de viagem: “[...] cada fragmento isolado introduz sua ‘diferença’, mas contém em si mesmo, como em linha d’água, a imagem do livro inteiro [...]”. Não há dúvida de que Haroldo, aqui, relembra as “subdivisões prismáticas da Ideia”, do prefácio de Um lance de dados. A própria apresentação gráfica de Galáxias, sem parágrafos e pontuação, representa que há uma linha fina tênue, musical, conduzida do início ao fim. Ele não rompe seu texto (apesar do branco do verso de cada página), como não é possível resguardar o branco da página da ausência e da morte. Nesse sentido, ele adota, como bem percebeu João Alexandre Barbosa, uma “circularidade”. Seu ímpeto verbal também é feito de saques, do povo “inventalínguas”, convertidos imediatamente em linguagem: “a vida é também matéria de vida de lida de lido matéria delida deslida treslida tresvivida nessa via de vida que passa pelo livrovida livro ivro de vida bebida batida mexida” (em “neckarstrasse”). Essa conversão em linguagem tem um sentido visual muito apurado, tanto que Galáxias rendeu também um filme de Júlio Bressane, Galáxia albina.


Galáxias dialoga com toda a obra de Haroldo. Para notar isso, o leitor pode recorrer a um texto de Andrés Sánchez Robayna aproveitado em Signantia: quasi coelum, onde o autor avalia que Galáxias dialogaria com todas as obras de Haroldo, sobretudo a partir de o â mago do ô mega (1955-56). Em Lacunae, seleção de poemas de 1971-1972, representa bem a página como galáxia: palavras espalhadas, como estrelas, sobre o vazio da página. Esse traço apenas se amplia em Signantia: quasi coelum, como se o leitor avistasse a obra de um caleidoscópio. Embora se utilize da alegoria de uma jornada dantesca (como em Finismundo há uma alegoria da jornada de Ulisses, dialogando tanto com Homero como com Joyce), Signantia trata implicitamente da própria essência da escritura, ligando sua seleção à composição de Galáxias. Esta criação seminal de Haroldo também encontrará eco em sua tradução de Blanco, o poema mais ousado de Octavio Paz, e suas recriações bíblicas (A cena da origem é o exemplo mais direto, também por sua concepção gráfica) nos anos derradeiros de vida. E vai se proliferar nos poemas de A educação dos cinco sentidos, de Crisantempo e nos poemas mais recentes do livro póstumo, Entremilênios.
Se havia alguma obsessão na obra de Haroldo, é que ele traduziu a morte para a página em branco da maneira mais completa, pois deixava se apagar, fazia com que sua origem proposta – a da escritura – fosse também a origem do Outro, da palavra que cerca a linguagem. Não havia “fora do texto”: havia “dentro do texto”. Ele se deixava falar apenas em sua linguagem. Ele, porém, não era um autor que privilegiava a fala em detrimento da escrita (característica contra a qual seu amigo e admirador Jacques Derrida se manifestava). Haroldo se anulava em sua voz pessoal, tanto inscrita quanto distante do papel.


O que ele escreve, fala, se faz independente da sua figura humana, pelo espaço da escrita ou da música. Como Kafka, Haroldo sabia que era apenas literatura e não poderia nem queria ser outra coisa, ou seja, um “personagem” da melhor espécie, pois não apenas fictício. Em meio a essa busca, seu grande feito foi – e Galáxias demonstra isso – aproximar o rigor da síntese com a multiplicidade do barroco e do épico. Diminuiu a distância entre extremos, trabalhando com a solidão da página em branco, da ausência de qualquer exagero. Quando lê trechos de seu livro, Haroldo transforma-se em pó do cosmos (para utilizar a imagem de um poema de seu irmão Augusto), tornando-se, como a própria literatura, invisível. E quando lemos Galáxias sabemos que nós também podemos desaparecer junto com a sua textualidade. O êxito da obra talvez esteja em mostrar que o pai do texto – como queriam os estruturalistas – não está ali, mas os leitores podem procurá-lo e encontrar ainda um ponto de azul entre as estrelas, na linha de um espaço curvo. Ali ele deve permanecer esperando a chegada de outras galáxias, pois “o branco é uma linguagem que se estrutura como a linguagem seus signos acenam com senhas e desígnios são sinas estes signos que se desenham num fluxo contínuo”.

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