domingo, 25 de abril de 2010

A melancolia antropófaga de Oswald (I)

Por André Dick

Há uma visão europeia sobre nossos primórdios (como a de Sérgio Buarque de Holanda), como se Walter Benjamin ou os formandos da escola de Frankfurt tentassem interpretar as origens do Brasil. Ou seja, a própria visão que muitos têm do Brasil passa pelo crivo europeu – e não exatamente da cultura. Com a chegada dos europeus, os índios, habituados a uma “uma visão do paraíso”, se aproximaram, de certo modo, pela “força de lei” – para utilizar a expressão do filósofo Jacques Derrida, segundo o qual não há Estado que não tenha sido fundado pela violência –, ao sentimento da melancolia. No entanto, Oswald de Andrade observava em seu “Manifesto Antropófago”: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Mas de que felicidade Oswald trata? Não seria o próprio Oswald um autor melancólico?


Desde que começou a ser interpretada, a melancolia é um traço bastante europeu e ligado às artes. Como lembra Susana K. Lages, em Walter Benjamin: tradução e melancolia, para Jean Starobinski, até o século XIX, a melancolia se dividiria em fases: a da Antiguidade Clássica, a que se estende da Idade Média até o séc. XVIII e, finalmente, a da “época moderna”, que abrange os séculos XVIII e XIX. Na Antiguidade, acreditava-se que a melancolia era o efeito da alteração na produção de bile negra), cuja sede era o baço, um dos quatro humores que, juntamente com o sangue, a bile amarela e a pituita, determinaria certas enfermidades, além de temperamentos e tipos psicológicos específicos”. Na época da Idade Média até o século XVIII, começou a se descartar essa hipótese, fazendo com que a melancolia estivesse ligada a uma perturbação de origem mecânico-nervosa, mais física. A partir do Renascimento, a melancolia passou a ser cultivada como a enfermidade dos artistas, dos literatos. Na medicina moderna e na psicanálise, a melancolia passa a ser vista mais como algo que provém da mente do que de caráter orgânico-corporal. Um dos primeiros a dar uma visão moderna sobre a modernidade foi Sigmund Freud, que escreveria em seu texto “Luto e melancolia”: “A melancolia se caracteriza psiquicamente por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até à expectativa delirante de punição”. No lugar da pessoa, pode-se colocar outros objetos: o passado que se foi, um lugar nunca mais visitado, um livro esquecido na infância, um fato que não pode mais ser mudado (e, no caso de Oswald, sem dúvida é a colonização e o diálogo com o continente europeu).


A poesia – para ficarmos no gênero em questão deste esboço de ensaio – até o modernismo de 22, com exceção de alguns nomes (como Sousândrade, Gregório de Matos, Augusto dos Anjos, Pedro Kilkerry), indicava mais um romantismo, que trazia os “eternos adãos”. Com Oswald de Andrade (1890-1954) querendo trazer o futurismo italiano às ruas de São Paulo, uma poesia cotidiana, como ele descreveu em seu “Manifesto Antropófago”, o traço não mudou. E foi ele o autor que, através das vanguardas, da antropofagia, pretendia destacar a origem dos índios.
Oswald é muito conhecido por seus versos que brincam com a linguagem do povo: “Qué apanhá sordado?”, “Para telha dizem teia”. Ou simplesmente cômicos: “Se Pedro Segundo / Vier aqui / Com história / Eu boto ele na cadeia”. Mas há um outro Oswald, que considero o mais apropriado à sua obra: o melancólico, que percebe o Brasil como um país deteriorado pela transformação, e ciente de que suas lembranças recordam uma terra que não existe mais, em “3 de maio”:

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que nunca vi

Vejamos o exemplar “Menina e moça”, tematizando uma certa perda e o distanciamento da cidade grande, do urbanismo futurista: “Gostei de todas as festas / Porque esse negócio de missa / E procissão / É só para os olhares / Vou agora triste no trem / Com aquela paixão / No coração / Vou emagrecer / Junto às palmeiras / Malditas / Da fazenda”. Ou “Que distância! / Não choro / Porque meus olhos ficam feios”. Há o sentimento de que o passado não volta, em “São José del Rei”: “Bananeiras / O sol / O cansaço da ilusão / Igrejas / O ouro na serra de pedra / A decadência”. A melancolia é esta aceitação da impossibilidade de existir alegria, de que a negatividade, a força de lei, predomina.


Em seus tempos de juventude, Oswald estava mais interessado em viajar para Paris. Começou a fazer a rota Brasil-Europa já em 1912, quando trouxe de lá as maiores novidades da vanguarda europeia, que apresentava, entre tantos movimentos, o “Manifesto Futurista”, de F. T. Marinetti, com o intuito de enaltecer a guerra e a destruição da sintaxe de forma radical. Oswald liderou, através de jornais e na procura de companheiros para defender seus ideais poéticos, a propagação do modernismo, baseado nas correntes de vanguarda europeia, que seria lançado entre os dias 13 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo, na Semana de Arte Moderna, sob aplausos e vaias. O país, estava, como a literatura, em fase de mudança, dividido, claramente, entre o rural e o urbano. As cidades, principalmente São Paulo, conheciam uma rápida industrialização, causada pela Primeira Guerra Mundial, que proporcionava lucros somente à burguesia industrial, embora marginalizada pelo governo federal, voltado para o produção e a exportação do café. Nesse panorama, também aumentava, consideravelmente, o número de imigrantes europeus, sobretudo italianos, que se dirigiam tanto para a zona urbana quanto para a zona rural. A sociedade era, então, claramente dividida. Havia os barões do café e a alta burguesia lucrando e funcionários públicos e comerciantes, entre outros, sofrendo. São Paulo era o palco de uma gama considerável de trabalhadores, muitos deles anarquistas, responsáveis por uma série de greves históricas.


A Semana de Arte Moderna de 22 se apresentou como um ataque, duro e contundente, à aristocracia e à burguesia, dominante e impopular.Oswald, numa ida à França, em 1923, com Tarsila do Amaral, vislumbrou o que mais tarde constituíria a poesia Pau Brasil, a poesia brasileira de exportação, voltada para uma linguagem adequada aos novos conceitos poéticos, despertados pelo dadaísmo, pelo cubismo e pelo futurismo, além de inimiga principal dos sonetos de Olavo Bilac. Como observa Paulo Prado, no prefácio do livro de poemas “Pau Brasil”, lançado em 1925, um ano depois do manifesto, com o mesmo nome, “Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra”. Paulo Prado afirma mais, em seu prefácio: que, para Oswald, “a volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia ‘pau brasil’”.
Para Paulo Prado, “a poesia 'pau-brasil' é, entre nós, o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro”. Esse esforço, obviamente, vinha acompanhado de uma nova visão artística europeia, alimentada pelas andanças de Oswald pelo mundo das vanguardas. Como ele confessou mais tarde, num de seus tantos livros de memórias, o que importava para ele não era o marxismo, comentado como nunca àquela época, mas o futurismo de Marinetti, combatido pelas rodas literárias burocratas.
A visão empregada pelo livro de poemas Pau Brasil, no entanto, só pode ser devidamente explorada se tivermos um conhecimento do manifesto que o precedeu e, no fundo, acabou por constituí-lo, originado, obviamente, desse novo olhar de Oswald sobre Paris, sobre o Brasil e sobre o mundo. Se Oswald descobriu o Brasil em cima da Torre Eiffel, é porque descobriu que somos tão melancólicos quanto os europeus. O próprio Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, com referências diretas à infância, além dos desenhos, mostra um tempo que não existe mais, ou melhor, existe, porém em algum lugar recluso da experiência de Oswald como sujeito. Há uma pretensão na ingenuidade dos versos de Oswald, em suas quase-canções descompromissadas: é a pretensão de uma voz que, sabendo da sua melancolia, estagnação, permanência num passado remoto, quer a todo custo movimentar o discurso de vanguarda. Não há nada simplista nessa tentativa oswaldiana; pelo contrário, pode-se localizar em sua voz todo o princípio ativo da psicologia freudiana.

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