domingo, 30 de maio de 2010

Cruz e Sousa: uma nova leitura do simbolismo

Por Nicole Cristofalo

O mito de Cam declara, aos olhos das autoridades católicas a partir do século XVI até o século XVIII, que o povo africano se tornou escravo por conta de Cam ter visto desnudo seu pai, Noé. E tal maldição não pode ser desfeita justamente por ter sido narrada em um tempo mítico, como afirma Alfredo Bosi. Cruz e Sousa traz esse mito para o seu país, refletindo, em poemas como “Emparedado” (poema em prosa), as crenças e preconceitos da sociedade com a qual se deparava. O satanismo, como iremos demonstrar, ocorre no momento do questionamento desta maldição, o que também faz Charles Baudelaire, no poema “Abel e Caim”, relacionando a burguesia que enriqueceu com a modernização e industrialização de Paris com a imagem de Abel, filho bem-aventurado, e a plebe operária, mendiga, prostituta, com a raça de Caim, filho maldito como Cam, responsável pela maldição de sua linhagem. Percebemos que Baudelaire critica a consequência da revolução industrial na sociedade parisiense por conta da menção de elementos positivos para a raça de Abel, como o ferro e o ouro, a riqueza que a indústria gera, em detrimento do operário que passa fome.


Neste trecho de “Emparedado”, de Cruz e Sousa, vemos claramente o questionamento da decisão e justiça divinas: “Mas as grandes ironias trágicas germinadas do Absoluto conclamadas, em anátemas e deprecações inquisitoriais cruzadas no ar violentamente em línguas de fogo, caíram martirizantes sobre a minha cabeça, implacáveis como a peste”. E o narrador continua:

“Então, à beira de caóticos, sinistro despenhadeiros, como outrora o doce e arcangélico Deus Negro, o trimegisto, de cornos agrogalhardos, de fagulhantes, estriadas asas enigmáticas, idealmente meditando a Culpa imeditável; então, perdido, arrebatado dentre essas mágicas e poderosas correntes de elementos antipáticos que a Natureza regulariza, e sob a influência de desconhecidos e venenosos filtros, a minha vida ficou como a longa, mito longa véspera de um dia desejado, anelado, ansiosamente, inquietamente desejado, procurado através do deserto dos tempos, com angústia, com agonia, com esquisita e doentia nevrose, mas que não chega nunca, nunca!!”

Interessante notar a menção ao deserto, local onde se passa o mito de Cam, e que se perpetua. Vejamos quais elementos Cruz e Sousa utiliza para construir o questionamento que realiza ao longo do texto. Dentro da estética simbolista, a música possui extrema importância (“Ou, então, massas cerras, compactas, de harmonias wagnerianas que cresciam (...)” e “Por que estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiens nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades (...)”), não apenas com a questão rítmica dos versos, mas da harmonia e possibilidade de, por meio dela, o homem se desprender da visão puramente real e concreta, para interagir com o meio de um modo abstrato e mais intenso.
Para isso, além dos poetas simbolistas procurarem potencializar os cinco sentidos humanos (tato, olfato, paladar, visão e audição), exaltam os estados físicos que afastam o homem da “realidade”, como drogas, bebidas e, no caso do “Emparedado”, o sonambulismo, estado no qual se tem a percepção do mundo onírico interagindo com o mundo concreto, suas lembranças e impressões: “Eu ficara a contemplar, como que sonambulizado, como o espírito indeciso e febricitante dos que esperam, a avalanche de impressões e de sentimentos que se acumulavam em mim à proporção que a noite chegava com o séquito radiante e real das fabulosas Estrelas”.


Já no início do poema, o narrador invoca a noite: “Ah! Noite! feiticeira Noite! ó Noite misericordiosa, coroada no trono das Constelações pela tiara de prata e diamantes do Luar, Tu, que ressuscitas dos sepulcros solenes do Passado tantas Esperanças, tantas Ilusões, tantas e tamanhas Saudades, ó Noite! Melancólica! Soturna! Voz triste, recordativamente triste, de tudo o que está morto, acabado, perdido nas correntes eternas do abismo bramantes do Nada, ó Noite meditativa! fecunda-me, penetra-me dos fluidos magnéticos do grande Sonho das tuas Solidões panteístas e assinaladas (...)”, ambiente onde, segundo Davi Arrigucci Jr., “(...) impõem desde o início suas sombras e indeterminações, de modo que a forma exterior, exata e nítida, cede espaço a mundos vagos, obscuros e ilimitados, antes indevassáveis, onde imagens com força simbólica se enraízam na mais profunda interioridade humana e ressurgem confundidas numa paisagem de sonho”, o que se potencializa por meio da imagem do sonâmbulo. O cenário da noite propicia o deslumbramento de imagens e ideias grotescas e satânicas que serão descritas ao longo do poema em prosa, já que a noite implica na oposição do dia, nas trevas, nas sombras, no encontro do maldito com a sociedade.
“É importante notar que o caráter não menos fantasmal do simbolismo parece dar vazão ao caráter não menos fantasmal do sentimento da exclusão social do poeta, assim como a negatividade, tudo o que refuga o desejo, parece aninhar-se no universo à parte, grotesco e sinistro, reino do demoníaco”, segundo Davi Arrigucci. Neste trecho, o crítico literário sintetiza os elementos que encontramos em “Emparedado”, utilizados para descrever a exclusão social que o narrador questiona, partindo do mito de Cam, chegando a até mesmo se dirigir a Deus e perguntar a importância da pigmentação de sua pele, como pode ela exercer tanto poder no seu destino; além disso, o narrador procura demonstrar que seus sentimentos e angústias não têm cor e são igualáveis aos dos demais homens.


No livro O simbolismo, Anna Balakian afirma que o período simbolista “realmente fez foi fechar suas venezianas sobre o mundo”. Porém, vemos que Cruz e Sousa constrói uma nova leitura do simbolismo, consciente dos costumes e preconceitos da sociedade de seu tempo, demonstrando sua posição não tão contrária a ela quanto a angústia que suas imagens refletem diante da posição das pessoas que o rodeiam. Como diz Paulo Leminski, na biografia que compôs do poeta catarinense, “no palácio do seu corpo", existe "o fantasma de uma alma branca”, a formação que apenas o branco costumava ter à sua época e Cruz e Sousa teve desde sua infância.
Leminski acerta quando diz: “Fosse um negro norte-americano, Cruz e Sousa tinha inventado o blues. Brasileiro, só lhe restou o verso, o soneto e a literatura para construir a expressão de sua pena”. Ao contrário da maioria dos simbolistas europeus, Cruz e Sousa questiona sua posição, como negro, ainda que com “formação” de branco, dentro de uma sociedade como a brasileira daquela época, e irá se utilizar das imagens satânicas de diversas maneiras em seus poemas (como a sadomasoquistas, em “Consciência tranquila”, ou a exaltação da morte, em “Ironia de lágrimas”), buscando por uma visão contrária, à margem da estabelecida pela sociedade, como a de ser um poeta negro simbolista naquele momento.

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