sábado, 25 de setembro de 2010

Uma exposição erthográfica

Por Nicole Cristofalo e André Dick



Está acontecendo, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, até 24 de outubro, a exposição "Erthos Albino de Souza. Poesia: do dáctilo ao dígito", com curadoria de Augusto de Campos e André Vallias.
O cartaz/fôlder que acompanha a exposição é uma obra de arte feita em homenagem ao artista mineiro, nascido em Ubá, mas que viveu na Bahia, como funcionário da Petrobras, e se caracterizou, já nos anos 1970, em fazer poemas no computador, sendo uma espécie de precursor nesse sentido ao lado de Waldemar Cordeiro. Na sua única entrevista, concedida a Carlos Ávila, e que se encontra hoje publicada no volume Poesia pensada (7Letras) com o título "O engenheiro da poesia", ele diz: "a minha primeira experiência em poesia de computador, na realidade, não foi com computador. Foi com o poema 'Vogaláxia', do Pedro Xisto. O Xisto fez um projeto de poema, com permutação das vogais e repetição. E ele me pediu para executar, porque eu era engenheiro e entendia disso".
Além disso, Erthos ajudou a compor a bibliografia de ReVisão de Sousândrade (autor que o aproximou dos concretos), edição que também financiou, a encontrar inéditos de Kilkerry e no estabelecimento da bibliografia de Pagu. No entanto, raramente publicou seus próprios poemas, preocupando-se, como afirma Augusto, primeiramente com a obra dos outros."Eu sempre gostei muito desse negócio de bibliografia, essa é uma mania que eu tenho, antiga", diz ele, na mesma entrevista a Ávila. Conforme Augusto, Erthos "ficava feliz com o êxito dos projetos e das obras dos poetas em quem acreditava e que financiava com a maior e mais desinteressada generosidade".


Trata-se de uma referência citada por Leminski e poetas dos anos 1970. Numa de suas cartas a Régis Bonvicino, publicada em Envie meu dicionário, datada de 10 de janeiro de 1980, Leminski escreve: "passagens compradas / dia 16, 1: 30 / jantando em salvador / ficando em ap erthográfico / [...] / na bahia vamos tar com erthos: cartas ou fone para, ok?". Erthos, não por acaso, editou a revista Código com Antonio Risério (com doze números até 1989), e publicou em Polem, Artéria, Muda e Atlas.


Diante das imagens que temos da exposição de Erthos, vemos que Augusto e André buscaram a síntese de sua obra, repleta de poemas feitos com números. Temos como referência histórica da obra de Erthos o "Le tombeau de Mallarmé" (1972), publicado no volume Mallarmé, com traduções de Augusto e Haroldo de Campos e de Décio Pignatari. Na nota introdutória ao livro, lê-se: "O poeta e engenheiro Erthos Albino de Souza contribuiu para esta edição com as variações gráficas executadas por meio do computador, que integram seu poema 'Le tombeau de Mallarmé'. Erthos elaborou um programa sobre distribuição de temperaturas, cujo resultado visual evoca um 'túmulo' ou uma 'estela'. Alternando apenas um fator, os gráficos se tornam diferentes, permitindo uma enorme variedade de soluções".


No cartaz da exposição,surge uma Briggite Bardot de números. Colagens, sobretudo artesanais, que remetem ao futurismo e ao dadaísmo. Um de seus principais poemas, destacados no cartaz/fôlder é "Crisálida" que, depois de uma metamorfose, transforma-se em "Borboleta", que remete ao "metamorfose/metaformose" de Leminski.


Segundo Augusto, "CRISÁLIDA e outros dactiloscritos foram reunidos em um projeto de livro, intitulado DACTILOGRAMAS 1967 (13 poemas), dos quais foram aquele poema e o primeiro da série, DE TANTO VER TRIUNFAR AS NULIDADES… os únicos, que eu saiba, publicados. Tenho uma cópia original desse livro, inédito, que marca o início da criação poética de Erthos. Tributário, certamente, da poesia concreta da linha ortodoxa, mas com realizações distintas, e demonstrando muita habilidade de composição. CRISÁLIDA é um dos mais bem realizados, e resolve de modo inteligente e sutil a metamorfose do vocábulo em BORBOLETA, que tem o mesmo número de letras, mas configura uma impossibilia posta sob o desafio dos doublets de Lewis Carroll, nos quais, há que se passar de um termo ao outro mudando só uma letra de cada vez e sempre usando vocábulos vernaculizados".
Há poemas em forma de cartão, remetendo ao Le Livre mallarmeano, mas com uma precariedade que se autossustenta sem precisar da "missa poética" pretendida pelo poeta simbolista:


Em outro poema, "Cygnus", faz uma síntese entre "signo" e "cisne", fundindo tradição e pesquisa - uma leitura que perfaz o caminho de Baudelaire a Mallarmé, como vemos na análise de João Alexandre Barbosa sobre poemas desses autores em que figura o "cisne":


E também apresenta cartões perfurados de computador (como a versão de "Cidade city cité" publicada por Augusto na Caixa preta). Diz Erthos, na entrevista a Ávila: "Eu traduzi o poema para um outro código, usando a perfuração do cartão, quer dizer, a codificação. Porque cada letra do alfabeto é codificada com aqueles furinhos. Então a combinação de dois, três furos corresponde a uma letra. Eu achei uma das coisas mais interessantes que fiz, apesar de ser baseada no poema dele". Erthos consegue captar o lado noturno da metrópole, e as perfurações lembram janelas de apartamentos, assim como as estrelas de "O pulsar" remetem ao espaço sideral.


Ao mesmo tempo, em seus trabalhos, percebe-se um diálogo bastante apurado também com as obras de Pedro Xisto e José Lino Grünewald. Augusto divide a obra de Erthos em três fases: "Dactilogramas" (1967), "Poesignos" e "Musa speculatrix". Além disso, Erthos utilizava o computador para contagens vocabulares - como as que se referem à obra de Kilkerry, utilizadas por Augusto no estudo que fez sobre o poeta baiano, em ReVisão de Kilkerry.
A julgar pelo texto poético de Augusto, para o cartaz-fôlder, Erthos é um enigma. Mas um enigma feito, sobretudo, de atenção com o trabalho alheio, tal a importância que dava ao diálogo com outros autores."Jamais conheci um intelectual generoso como ele", afirma Augusto, fazendo dessa exposição construída com André Vallias uma referência para a redescoberta de mais um autor essencial para entender a trajetória da poesia brasileira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário