domingo, 23 de janeiro de 2011

Poesia e filosofia em Giorgio Agamben (II)

Por André Dick

Em Profanações, com textos curtos, alguns quase em forma de fragmentos e de aforismos (no melhor estilo dos textos de Schlegel e Novalis, do romantismo de Iena, mas como uma visão menos ideológica, não percebendo o artista como salvador da humanidade), Agamben continua a linha de Walter Benjamin e Michel Foucault ao propor a recuperação de uma modernidade situada na saturação de uma certa paisagem romântica.


Agamben convida a profanar o sagrado, analisando a relação entre religião e capitalismo. Para ele, o profano é o que é restituído ao mundo dos homens, ao uso comum. Agamben observa que religio não deriva de religare (o que liga e une o humano e o divino), mas de “relegare”, indicando a “atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o ‘reler’) perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano”. Desse modo, “religio” não é o que une homens e deuses, “mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos”, havendo uma ligação entre as esferas do sagrado e do jogo, trazendo à cena o pensamento infantil. O jogo traz algo de sagrado, mas não sai da esfera do profano, o que remete à ligação e a constituição do homem na infância - na discussão proposta em Infância e história. Agamben avalia, baseado em Benjamin, que o capitalismo não representa apenas uma "secularização da fé protestante", mas ele mesmo é um “fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo”. No lugar da religião, que havia uma passagem do sagrado para o profano e do profano para o sagrado, o capitalismo institui o vazio do consumo, realizando a “pura forma da separação, sem mais nada a separar”: a religião capitalista “está voltada para a criação de algo Improfanável”. Ou seja, ela almeja o consumo absoluto, e, perdendo-se no vazio, faz com que o ser humano não consiga profanar esse mesmo consumo, e não se separe da ideia de que esse consumo é um fetiche.


A avaliação que Agamben faz da religião capitalista guarda correspondência direta com a seção “No mundo de Odradek: a obra de arte frente à mercadoria”, de Estâncias, em que é traçado uma ponte entre Marx e Baudelaire, com seu fetiche pela mercadoria. Para Agamben, esse fetiche leva à irrealidade.
Para isso, Agamben parte de uma interpretação de Freud sobre o fetiche: a negação do menino da ausência do pênis materno, e a sua negação dessa ausência, cria uma analogia para se estabelecer uma ponte com o objetivo da poesia moderna. O objeto-fetiche é algo concreto, mas, “como presença de uma ausência”, é, ao mesmo tempo, “imaterial e intangível, por remeter continuamente para além de si mesmo, para algo que nunca se pode possuir realmente”, sendo que o valor de uso não é maior, hoje, do que o valor de troca, o que mostra a inapreensibilidade do objeto: a sua presença-ausência. Sob o ponto de vista poético, a razão é que tornar a obra num fetiche implica aceitar a sua própria intocabilidade. No entanto, é preciso profaná-la, ou seja, transformá-la em mercadoria: a poesia, sob esse ângulo, passa a ser utilizada não mais como arte ou como mercadoria, mas como uma espécie de mistura, em que as duas se anulam.
Para Agamben, a grandeza de Baudelaire foi ele transformar em mercadoria e em fetiche a própria obra de arte. A partir da ideia de que a poesia não tem outro fim senão ela mesma, Baudelaire imprime à obra de arte o valor de troca que possui a mercadoria. Desse modo, ele impôs à obra um caráter de mercadoria absoluta, cujo valor seria a inutilidade, ou seja, o Improfanável. A mercadorização absoluta da obra de arte.


A lição que Baudelaire deixou à poesia moderna “é que o único modo de superar a mercadoria consistia em levar ao extremo suas contradições, a ponto de ela acabar abolida enquanto mercadoria, com o objetivo de devolver o objeto à sua verdade”, e, a partir daí, Agamben avalia que como o sacrifício “restitui ao mundo sagrado o que o uso servir degradou e tornou profano, assim também, através da transfiguração poética, o objeto é arrancado tanto da fruição quanto da acumulação, e restituído ao seu estatuto original”. Esse estatuto serve da própria descoberta da linguagem. Assim, “Se é só através da destruição que o sacrifício consagra, assim também é só através do estranhamento que a torna inapreensível, e através da inteligibilidade e da autoridade tradicionais, que a mentira da mercadoria se transforma em verdade. Esse é o sentido da teoria da art pour l'art, o que de modo algum significa gozo da arte por si mesma, mas destruição da arte por obra da arte”.


O equívoco de Agamben parece ser de que a condição para esta tarefa sacrifical é o artista levar às últimas consequências o “princípio da perda e do desapossamento de si”. Agamben, a partir daí, incursiona constantemente na impessoalidade de fundo romântico, quando afirma: “Depois de ter transformado a obra em mercadoria, o artista joga agora também sobre si a máscara desumana da mercadoria e abandona a imagem tradicional do humano. O que os críticos reacionários da arte moderna esquecem, quando denunciam sua desumanização, é que o centro de gravidade da arte nunca residia, no caso das grandes épocas artísticas, na esfera humana” – uma afirmação que pode ser contestada pela própria descoberta da linguagem proposta por Agamben em seus textos. Com a poesia moderna, há a novidade de que, “diante de um mundo que glorifica o homem na mesma proporção em que o reduz a objeto, ela desmascara a ideologia humanitária [...]”.Agamben toma o caminho da impessoalidade no sentido do sublime, o que é sempre um risco, quando afirma que, por meio de autores como Apollinaire, Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, Matisse, Montale e Celan, a poesia moderna “sinaliza para essa região inquietante, na qual já não existem nem homens nem deuses, e onde, como um ídolo primitivo, só se eleva incompreensivelmente além de si mesma uma presença que é, ao mesmo tempo, sagrada e miserável, fascinante e tremenda, uma presença que carrega consigo, contemporaneamente, a fixa materialidade do corpo morto e a fantasmática inapreensibilidade do ser vivo”. Ora, o que parece desumano ainda é linguístico e profano. Basta vermos o “Je est un autre”, de Rimbaud, que visa ao divino - mas com um aspecto moderno. Daí, neste caso, Agamben se contradizer, quando afirmar que há uma destruição da experiência na poesia moderna. A experiência, como vemos em Infância e história, continua sendo a descoberta constante da linguagem.

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