domingo, 22 de maio de 2011

Desestrutura da lírica moderna: uma teoria contra Mallarmé (II)

Por André Dick

O que deve ser colocado em questionamento, tanto na obra de Berardinelli quanto na obra de Friedrich, é sua tendência a continuar querendo falar da poesia de Mallarmé e de outros simbolistas como puramente hermética, que visa ao silêncio e o cancelamento do sujeito, resultando numa poesia obscura e numa fuga à realidade – como Antoine Compagnon já havia constatado em Os cinco paradoxos da modernidade. Não são os autores excluídos por Berardinelli os fundadores do que vemos como a estrutura inicial da modernidade, mas sim os poetas que Friedrich seleciona: Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé. Friedrich está certo em identificar esses nomes como precursores do que, mais adiante, fariam Eliot, Pound, Apollinaire, William Carlos Williams e Rilke, por exemplo. O problema é que ele identifica características equivocadas e considera que Mallarmé e Rimbaud escreveram, conscientemente, um determinado tipo de modernidade.


Quando invoca a presença de Whitman entre os poetas esquecidos por Friedrich, Berardinelli faz uma ressalva: “[...] nele não encontramos abstração ou cerebralismo, nem culto da premeditação intelectualista nem impulso da linguagem em direção a uma transcendência vazia ou fuga da palavra do horizonte do concreto, do imediato, da experiência comum”. Esta afirmação revela claramente que Berardinelli concorda com o programa de Friedrich, sobretudo em relação aos poetas Rimbaud e Mallarmé: ele apenas faz a ressalva de que alguns poetas, como Whitman, não se encaixam no esquema de modernidade proposto por Friedrich.
Baudelaire, como ele recupera no previsível ensaio “Baudelaire em prosa” – que sugere uma releitura dos escritos de Walter Benjamin e de Maurice Blanchot, daí, a meu ver, ser injusta a avaliação de Berardinelli em relação a este último, visto como um “puro” –, teria, sim, os elementos apontados por Friedrich, mas também outros, que constituiriam a modernidade desejada por Berardinelli. No entanto, ele acaba contrapondo Baudelaire a Mallarmé sob a ótica mais superficial – a de Friedrich –, ao afirmar que o autor de Les fleurs du mal apresenta “temas autobiográficos e confessionais”, não indo “no sentido da depuração e da despersonalização”, pois não crê na “divinização do humano ou nos poderes órficos da palavra”. A questão seria: Rimbaud e Mallarmé teriam essas características? Se eles quiseram uma “despersonalização” para suas obras, como afirma parcela da crítica, não quer dizer que a tenham conseguido ou pretendido atingi-la: talvez não haja um verso escrito por Rimbaud e Mallarmé que não estejam igualmente repleto de referências biográficas, mesmo que de maneira mais indireta do que Baudelaire. Além disso, elementos biográficos não garantem a qualidade de um poema ou de obra - daí o impasse de Berardinelli.
Conforme o crítico, representando o exato oposto das obras desses poetas, “os excessos do estilo de Whitman não se devem a uma tendência aristocrática e solitária, a um desejo de obscuridade e de fuga no mistério ou a um desprezo pelos leitores”. Porém, Whitman, com todo seu domínio verbal, traz, sem dúvida, uma representação da tentativa de se divinizar o humano. Nem Mallarmé nem Rimbaud seriam capazes de escrever o que Whitman escreve no início de sua obra-prima Folhas de relva: “I CELEBRATE myself; / And what I assume you shall assume; / For every atom belonging to me, as good belongs to you”.


O crítico italiano também contesta a presença de Valéry nesse cânone de Estrutura da lírica moderna, vendo-o como contrário ao “entrelaçamento das linguagens, dos registros, dos tons, assim como a relação essencial entre ‘música da poesia’ e língua comum”. A pergunta que se pode fazer é se não há esses elementos nos textos teóricos e nos poemas de Mallarmé e Valéry. Ou a ligação desses autores com o pathos existencial da vida. Na obra de Mallarmé, por exemplo, temos uma referência construtiva à mitologia, ao contexto musical que se vivia na França, o diálogo com inúmeros autores e com a pintura. A própria distinção que Mallarmé teria feito entre “poesia bruta” e “poesia pura” não existe se formos diretamente aos textos do poeta. Lendo atentamente seus escritos, percebe-se que, para ele, havia ritmo em tudo, menos, ironicamente, em “cartazes publicitários”.
Em Infância e história, o filósofo italiano Giorgio Agamben, recuperando as ideias de Benveniste e Barthes, avalia que o ser humano é constituído pela linguagem. A mesma linguagem que Friedrich indica que ruma à obscuridade, a uma “transcendência vazia” – em diálogo com o sublime romântico.
A questão é que Mallarmé, Rimbaud e Baudelaire não passam à categoria do sublime por serem autores críticos, para os quais não existe uma natureza divina a ser expressa em palavras – e seus textos são resultados de um diálogo criativo com a tradição, não se configurando no vazio. Não existe, portanto, a busca por um absoluto romântico nesses autores. Em Mallarmé, por exemplo, o absoluto é textual. Ele não almeja um Livro Absoluto, pois sabe que sua poesia é resultado de uma construção linguística.


Nesse sentido, ao longo de todo Da poesia à prosa, Berardinelli crê na ideia de que o grande problema é mesmo Mallarmé (apesar de citá-lo, às vezes, em companhia de Rimbaud, como vimos ao longo deste artigo): “O desenraizamento da arte, sua abstratização por meio de procedimentos ‘despoticamente’ formalistas e absolutizantes, que aniquilam toda possibilidade de determinação espaço-temporal, é obra sobretudo de poetas como Rimbaud e Mallarmé e de pintores como Cézanne”. Como aniquilar a possibilidade de determinação espaço-temporal numa obra? Berardinelli tenta responder analisando a figura da cidade em obras como as de Baudelaire, Apollinaire e Eliot, no melhor ensaio de seu livro, “Cidades visíveis na poesia moderna”, mas poderia ter investigado as imagens da cidade também em Mallarmé e Rimbaud, mesmo que, para ele, impliquem numa “abstratização” ou numa “invisibilidade”.
No entanto, a diferença elementar entre Berardinelli e Hugo Friedrich é que o primeiro é ainda mais injusto em relação a Mallarmé, e introduz provocações que não comportam um debate sério. É quando escreve, por exemplo: “Baudelaire não mete medo em ninguém (nem Marx também). O pobre Nietzsche é bastante solicitado. Quanto a Mallarmé, seus leitores efetivos são, naturalmente, tão raros que seria fácil contá-los nos dedos. Mas estudar e secionar suas poesias é mais fácil do que lê-las, e até mais divertido, de modo que ele nem pode lamentar-se quanto a cultores e bibliografia. Mallarmé é o autor ideal para seminários especializados”. Percebe-se, sem dúvida, uma ironia nessa proposição de Berardinelli. Também pode soar como um certo desrespeito que provém de um intelectual reconhecido. Desrespeito não só com Mallarmé, poeta infelizmente esquecido e ainda cercado de uma mitologia que o cerca de absolutismos, como a de Berardinelli, e o prende a “seminários especializados”, mas com a fortuna crítica de alto nível que ele possui (de autores que, para Berardinelli, talvez tenham mais se divertido do que lido sua poesia, como Maurice Blanchot, Augusto de Campos, Jean-Pierre Richard, Roland Barthes, Haroldo de Campos, Michel Foucault, Julia Kristeva, Jacques Derrida, Octavio Paz etc.). São análises como essa de Berardinelli que mostram o equívoco de um certo pensamento bastante comprometido com um ataque subjacente a um universo literário que o desagrada – mas não é, por isso, menos importante. Desse modo, Da poesia à prosa traz as mesmas características que Berardinelli identifica na Estrutura da lírica moderna, de Friedrich: “o inegável fascínio da simplificação e da síntese”. Com o subtítulo implícito “Uma teoria contra Mallarmé”. O que ainda é pouco para tentarmos resolver os paradoxos da modernidade.

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