quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Giorgio Caproni e Giorgio Agamben: entre a poesia e a filosofia

Por André Dick

O poeta italiano Giorgio Caproni (1912-1990) finalmente chega ao Brasil, acompanhado pela análise do filósofo, também italiano, que melhor o compreendeu: Giorgio Agamben. O resultado está no livro A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, recém-lançado pela Editora UFSC, com tradução de Aurora Fornoni Bernardini, que também faz uma introdução muito produtiva à vida e à obra do poeta. Ele é capaz de despertar interesse por uma poesia que, apesar de empregar o minimalismo, não se parece quase nada com a de dois italianos que poderiam ser considerados antecessores de Caproni: Giuseppe Ungaretti e Eugenio Montale.


Ele até tem pontos de associação mais evidentes com Ungaretti, por vezes, pela sintaxe turva, pelos cortes e pelo enjambement, que desencadeia, ao mesmo tempo, um silêncio, pronunciado desde a fase inicial, em Come un’allegoria!, como no excelente “Vento de início de verão”: “A essa hora o sangue / do dia inflama ainda / a face do prado, / e se apagaram / as rixas e as pedradas / ruidosas, no vento está vivo / um halitar de bocas fogueadas / de crianças, após desabaladas / correrias”, “Primeira luz” (cujo dístico final é: “(São sempre os pássaros os primeiros / pensamentos do mundo)” e “Tarde de maremma”, cuja segunda estrofe mostra o interesse de Caproni pela infância e conduzindo a outro campo de interesse do Agamben filósofo-linguista.: “De coisas lábeis aparece / a terra: de vozes e quentes / rajadas. / Queimam, tão alegres / fogueiras, as cores das brincadeiras / infantis” – o que se acentua em Ballo a Fontanigorda e Finzioni. Os poemas ganham mais corpo em Cronistoria, Il passagio d’Enea (sobretudo em “Versos”), assim como em Il seme del piangere (em “Ad portam inferi”), e ainda mais em Congedo del viaggiatore cerimonioso & altre prosopopee. O Caproni dos primeiros livros, nesse sentido mais sintético – no tamanho dos poemas –, só regressa em Il muro della terra, Il franco cacciatore, Il Conte di Kevenhüller e Res amissa.


Em Ideia da prosa, Agamben escrevia: “Há poetas – Petrarca é seu arquétipo – nos quais o enjambement zero é a regra, e outros – e Caproni encontra-se entre eles – nos quais o grau marcado tende, pelo contrário, a prevalecer. Na fase tardia de Caproni, porém, esta tendência vai até os limites do inverossímil: aí, o enjambement devora o verso, que se reduz apenas àqueles elementos que permitem atestar a sua presença – portanto, ao seu núcleo específico diferencial, admitindo que o enjambement individualiza, no sentido referido, o traço distintivo do discurso poético”.
Na fase de Caproni em que o enjambement devora o verso, temos um poema como “Desengano”: “Pensava ter atingido / – finalmente – o ponto de mira. / Ilusão! O tão pretendido / alvo era de mentira”. Ou o poético, acima do político, “Pergunta e resposta”: “– Há mais liberdade / no cárcere ou na cidade? / / – Não há liberdade / É cárcere a inteira cidade” (ambos poemas de Res amissa). Ao final do texto de Agamben, “Desapropriada maneira”, que introduz essa antologia de Caproni e originalmente foi prefácio de Res amissa, ele assinala: “O verso é reduzido a seus elementos-limite: o enjambement – se é verdade que este é único critério que permite diferenciar prosa e poesia – e a cesura (Hölderlin defini-a ‘antirrítmica’ e aqui ela é patologicamente dilatada até devorar completamente o ritmo)”, não cabendo “falar de verso livre ou quebrado, mas sim de aprosódia [...]; e de uma prosódia, obviamente, pacientemente calculada e ordenada obsessivamente (os editores conhecem a atenção quase maníaca do último Caproni quanto à partitura tipográfica), mas nem por isso menos destrutiva”.


Por isso, como também escreve Agamben:

[...] se poemas e vida divergem infinitamente no plano da biografia e da psicologia do indivíduo, eles voltam a confundir-se sem resíduo algum no ponto de sua recíproca dessubjetivização. E nesse ponto eles se unem não imediatamente, mas mediatamente. A língua é a mediação. Poeta é quem, na palavra, gera a vida. A vida que o poeta gera na palavra é subtraída tanto da vivência do indivíduo psicossomático quanto da indizibilidade biológica do gênero.

É justamente isso: não há nenhum tipo de experiência que não passe, ao mesmo tempo, pela linguagem.
Como outros poetas da modernidade (a exemplo de August Stramm, Georg Trakl e Guillaume Apollinaire), Caproni serviu no exército: em 1939, foi convocado para servir no 42 Regimento de Infantaria e enviado a Gênova para lutar no front francês. Participou de outra guerra, como lembra Aurora: “de libertação nas montanhas da Val Trebbia”, que estende-se até 1944, quando Caproni, “exercendo a função de prefeito (de Rovegno), entre inúmeras dificuldades, reabre a escola primária da qual passa a ser o único mestre”. A família Caproni, após a guerra, sai de Gênova, atingida pelos bombardeios, para morar na periferia de Roma. No entanto, como lembra Aurora, “o empenho social que deu várias provas (escolheu, inclusive, classes de crianças marginalizadas) desaparece [...] na sua poesia”.


Caproni incorpora bem esse pensamento de tornar a sua linguagem num elemento corrosivo. Seus poemas – apesar de herméticos e, a princípios, fechados, reclusos – ganham sempre o Outro, que é o leitor, sugerindo sempre imagens a partir de um material concreto, mas que não se incomodam em se abstratizar, envolvendo uma sonoridade dura, mas, quando descascada, maleável também aos ouvidos.
Seus poemas finais, aos quais Agamben se refere ao tratar do enjambement que devora o verso, em Ideia da prosa, são, ao mesmo tempo, corrosivos e bem-humorados, sem nenhum elemento de engajamento ou demagogia; pelo contrário, está implícito nas pequenas formas o silêncio questionado por Caproni na sociedade que o nega. Agamben cita um poema:

............... A porta
branca...
A porta
que, da transparência, leva
à opacidade...
A porta
Condenada...

Nesse fragmento, escreve Agamben, a “tradicional consciência métrica do verso é aqui drasticamente reduzida, e as reticências, tão características da fase tardia de Caproni, assinalam precisamente a impossibilidade de desenvolver o tema prosódico para lá do seu núcleo constitutivo”.


Para Agamben, no enjambement, “o verso, no próprio ato com o qual, quebrando um nexo sintático, afirma a sua própria identidade, é, no entanto, irresistivelmente atraído para lançar a ponte para o verso seguinte, para atingir aquilo que rejeitou fora de si: esboça uma figura de prosa, mas com um gesto que atesta a sua versatilidade”. O poeta, entre a poesia e prosa, opta por um meio termo – que dilui a noção de métrica habitual. No poema “Res amissa”, Caproni leva ao limite essa cesura e as reticências como símbolos de um discurso inalcançável: (“[...] Um vento / de choque – um ar / quase silíceo enregela / agora o quarto... / / (É lâmina / de faca?”). Pelas imagens, lembra João Cabral de Melo Neto.
Interessante notar que, pelo menos a meu ver, os poemas das obras finais – que rumam ao silêncio – são os melhores de Caproni, como “Tudo”, “O último arrabalde” – que guarda alguns traços de William Carlos Williams – e “Voltando, em negativo, a uma página de Kierkgaard”, de Il franco cacciatore; “A presa” e “Três improvisos sobre o tema a mão e o rosto”, de Il Conte di Kevenhüller, que parece dialogar com o poema “Anoitecer”, do Drummond de A rosa do povo, além de “O mar como material”, de Il Conte di Kevenhüller, poema extraordinário, que parece dialogar com “Thálassa thálassa”, de Haroldo de Campos. Obviamente, não sei se Caproni tinha a leitura desses nomes (Michael Hamburger, crítico alemão e autor de A verdade da poesia, menciona, por sua vez, bastante Drummond, mostrando o conhecimento de um crítico europeu da poesia moderna brasileira), mas parece-me que esses poemas guardam diálogos quase que explícitos.
Esquecido durante anos na Itália, voltando a ser lido e debatido apenas nos anos 80, Caproni carrega consigo essa herança da modernidade, não há dúvida. Na época em que realizou esses poemas, se não foram aceitos, é porque não havia uma reciprocidade quanto aos temas e às formas abordadas, de cunho ateológico ou não, sobretudo, mas Caproni escreve para quem tem uma visão moderna de poesia - e encontra em Aurora Bernardini, especialista em poesia moderna, sobretudo russa e italiana, uma tradução já referencial.


Por isso, mesmo Agamben afirmando não existir nem mesmo a “teologia negativa” da modernidade (surgida com Hölderlin), na obra de Caproni, trazendo ela “queda sonambúlica do divino e do humano rumo a uma zona incerta”, não imaginamos que, por isso, não haja mais sujeito nela, ou essa zona esteja “achatada no transcendental” – como Agamben já afirmava em determinados momentos de Infância e história. Não creio haver essa negatividade em Caproni, e o indivíduo que ele foca, apesar de indefinido, incerto, nem figura humana nem divina, é ainda um sujeito – de profunda linguagem. Trata-se de um indivíduo que sabe da impossibilidade do silêncio, por isso um sujeito que não se nega à cesura, nem a vislumbrar que o hoje, não sendo mais mitológico, não pode ser mais apropriado – por si ou pela obra.

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