quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A palavra inconcebível de Wislawa Szymborska

Por André Dick

A obra da poeta polonesa Wislawa Szymborska, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 1996, representa não apenas uma dor calculada pelas perdas da Segunda Guerra Mundial, da Guerra do Vietnã (lembrada num de seus poemas) e do terrorismo, mas também uma visão contemporânea – direcionada ao presente e ao futuro – de temas do dia a dia, como solidão, amizade, morte, esperança. Podemos ver isso no recém-lançado volume Poemas, em que Szymborska apresenta o melhor elemento da poesia polonesa: um registro de imagens ao mesmo tempo frias e intensas. Se formos lembrar, porém, outras poetas do século XX (sem querer, aqui, demarcar um gênero, mas ver a potencialidade especial da poesia escrita por mulheres), Szymborska não se parece, em termos de linguagem, com Marianne Moore ou Sylvia Plath. Sua poesia, de certo modo, é linear – mas um linear complexo, e nisso ela ganha uma intensidade incomum.


A seleção, introdução e tradução competentes de Regina Przybycien feita para o volume colabora na difícil empreitada de enfrentar uma poeta que não recita o passado, nem apresenta a poesia como um veículo edificante. Os 44 poemas da edição (de oito livros diferentes, feitos entre 1957 e 2002, ficando de fora os dois primeiros e os dois mais recentes) recuperam o que existe de mais instigante nesse trabalho: um canto desesperado de saber o quanto a poesia está deslocada, mas que remete às sensações mais complexas. Seus dois primeiros livros, como lembra a organizadora, surgiram ainda na era stalinista e “rezam pela cartilha da ideologia vigente, abordando temas edificantes em tom otimista”. De qualquer modo – acrescenta a tradutora –, “Após a morte de Stálin houve uma relativa distensão política do regime na Polônia, que permitiu aos autores expressar uma voz individual”. Nesse sentido, a poesia de Szymborska guarda uma tensão com a política (como em “Filhos da época”, no qual escreve: “Versos apolíticos também são políticos, / e no alto a lua ilumina / com um brilho já pouco lunar”). Seu conterrâneo, o excelente Czeslaw Milosz, que escreveu Mente cativa, se perfila a seu lado. Para ambos, a palavra é eminentemente política, e isso esclarece em cada construção verbal, por também ajudar a compreender o significado da ética cotidiana. É interessante como uma poeta tão sintética, mas não elíptica, nem simples ou simplista, consegue transformar seus poemas em uma matéria impenetrável (seu poema “Conversa com a pedra” resume isso: “Bato à porta da pedra / – Sou eu, me deixa entrar. / / – Não tenho porta – diz a pedra”).


Percebe-se, porém, como ela converte o que é em parte sisudo em João Cabral e Paul Celan (Modesto Carone fez uma comparação na abordagem deles a respeito da pedra, em A poética do silêncio) em algo mais fabular, embora não de acesso mais fácil. Szymborska, a partir dos poemas, quer, através do eu (os verbos na primeira pessoa perpassam, em grande conta, o livro), expor a História, presente ou futura, que, para ela, continua sendo um enigma – de qualquer modo, a universalidade do que ela diz, sem, em nenhum momento, restringir-se a um espaço determinado, do qual falaria, cria um impacto a cada leitura.
Quando escreve, Szymborska não é hermética: a construção de seus poemas tem cortes e sonoridades usuais, usando atentamente a técnica do paralelismo na maioria deles (como no ótimo “Esqueleto de dinossauro”) – no entanto, em seu discurso poético, ficam surpreendentes. Se em certos momentos sua temática alcança Paul Celan, outro autor referencial pós-guerra, sua composição contradiz, quase completamente, os hiatos entre palavras e versos. Há apenas um poema que, a meu ver, os aproxima, em “As três palavras mais estranhas” (com seu Nada e Silêncio em caixa alta, também em diálogo com o Simbolismo francês):

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.

Dessa maneira, dialoga com Celan (na tradução de João Barrento e Y.K. Centeno): “NOS RIOS a norte do futuro / lanço a rede que tu / hesitante afundas / com sombras escritas por / pedras”. Para Szymborska e Celan, a palavra reserva o Futuro, mesmo que nos remeta, também, ao passado – e o Silêncio e o Nada são imponderáveis, assim como a rede que colhe sombras escritas por pedras.


Por sua vez, seu poema “Alguns gostam de poesia” cria uma ponte com Marianne Moore, quando esta diz, em “Poesia”: “Também não gosto. / Lendo-a, no entanto, com total desprezo, a gente acaba / descobrindo / nela, afinal de contas, um lugar para o genuíno” (em tradução de José Antonio Arantes). Szymborska escreve: “Alguns – / ou seja nem todos. / Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria. / [...] / Gostam – / mas também se gosta de canja de galinha, / [...] / [...] e me agarro a isso / como a uma tábua de salvação”. Aqui, a poesia, apesar de não agradar a todos, é vista, por Marianne, como um “lugar para o genuíno”, enquanto para Szymborska é uma “tábua de salvação” – acentuando a dramaticidade, convertida em bom humor por Marianne.
Às vezes, sobressai uma certa harmonia na sua poesia, inclusive nos temas. Assim, salta aos olhos a proximidade que tem, em termos de construção, do Drummond que vai de José a Sentimento do mundo – o que a organizadora percebe, em seu prefácio instrutivo. Assim como Drummond, Szymborska não emprega a dificuldade extrema na sua composição, o que lhe permite a caudalosa montagem verbal que aciona a cada poema. Muitas vezes, os poemas lembram fábulas, histórias demarcadas e não raro a metaforização tenta encobrir o que, se não fosse assim, seria excessivamente coloquial e previsível. Sobram a ambos, também, uma espécie humor pessimista, um otimismo às avessas e um cansaço existencial de saber que tudo parece ser repetição. Isso desemboca na ironia de que fala a tradutora na introdução, “dirigida, sobretudo, para a função do poeta”, ao desmistificar a “visão romântica do poeta-criador, demiurgo e profeta sem o qual a humanidade não conseguiria resistir” – fazendo o verso ser também a narrativa de um sujeito falho, comum.


Leminski, um dos autores brasileiros de origem polonesa (escreve em Distraídos venceremos: “a Polônia na memória, / [...] / o Vístula na veia”), já apontava que isso era característico a Drummond, que se alimenta exatamente da ideia de uma narrativa mais extensa e, às vezes, preferia encerrar a estrutura com uma pausa reflexiva do sujeito.
Szymborska faleceu ontem, aos 88 anos de idade, em Cracóvia. Como ela escreve em “Entre muitos”: “Sou quem sou. / Inconcebível acaso / como todos os acasos”. Ou em “Sou uma estrela pequenina”: “Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade”. Essa poesia, assim como necessita do acaso, também é inconcebível – e se dirige tanto ao presente quanto ao futuro.

4 comentários:

  1. olá, sou membro do blog de poesia Escamandro e cheguei até aqui fuçando em coisas do Keats, já que estou considerando produzir uma nova tradução para o 'gato da sra. reynolds'. mas enfim, achei o blog muito interessante e te convido a conhecer também o nosso. andamos publicando algo da wislawa também.
    http://escamandro.wordpress.com/
    um abraço,

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  2. Olá, Andre. Parabéns pelos três anos do blog. É um privilégio poder encontrar aqui textos como este sobre a Szymborska. Obrigada. Um abraço.

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  3. Prezado Vinicius,

    Agradecemos por sua visita e pelas palavras. Também achamos o blog seu muito interessante e vamos acompanhá-lo. E aguardaremos a tradução que fará de Keats.

    Abraços,
    Nicole
    André

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  4. Prezada Anna Ehre,

    Ficamos felizes com sua visita e pelas palavras sobre o aniversário do blog. Parabéns por seu trabalho poético, que lemos com interesse. Volte sempre.

    Abraços,
    Nicole
    André

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