domingo, 10 de junho de 2012

A antimodernidade de Roland Barthes e Antoine Compagnon

Por André Dick

Os antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes, de Antoine Compagnon, publicado pela Editora UFMG (Tradução de Laura Taddei Brandini), vem acompanhado de um grande atrativo: trata-se de uma obra que não reduz a modernidade a rótulos e se arrisca no terreno da contradição – algo cada vez mais raro no campo da crítica literária. Compagnon, nascido em 1950, na Bélgica, não é um filósofo da literatura (falta-lhe a poeticidade, por exemplo, do seu mestre, enfocado no livro, Roland Barthes), mas um filólogo dos melhores – um paralelo de Giorgio Agamben na França –, capaz de arrebatar o leitor com os detalhes mais profícuos da história literária, enredando diversas teorias sob seu olhar, mais apropriado para analisá-las – o que já acontecia em Os cinco paradoxos da modernidade e O demônio da teoria.


Fazendo uso de uma liberdade poética – de que os antimodernos são os mais modernos, pois são modernos em liberdade, sem se prender a rótulos ou algo parecido –, ele desenha algumas das características centrais desses autores, entre as quais inclui o sublime, a vituperação, a contrarrevolução, o pessimismo (que dialoga diretamente com a melancolia), o anti-Iluminismo e o pecado original.
Talvez seja Baudelaire o moderno mais referencial para muitos, que cultivou o emblema da contradição e aliou todos esses elementos a uma modernidade dividida em duas faces (por isso, na visão de Compagnon, seria um antimoderno). Ele, como outros autores enfocados por Compagnon, cultiva a doce contradição da modernidade: vai à frente, mas olha para trás ao mesmo tempo, ou seja, não se perde num novo invento sem ao menos lamentar o que está se perdendo. São modernos não arrependidos, mas conscientes de uma tradição que se manifesta em cada novo texto. Não acreditam na inovação que não esteja ligada a um passado – mesmo que remoto. São os que mais verdadeiramente querem mudar – “mudar a língua”, como queria Barthes lembrando Mallarmé em sua Aula inaugural no Collège de France –, mas não românticos ou de vanguarda, imaginando que poderiam ser a referência eterna para seus pares. Ou seja, livres.
Devemos notar que, por vezes, Compagnon confunde as vanguardas com a modernidade – o que não poderia ser aceito num crítico de sua estatura e visão literária –, o que não chega a prejudicar sua inclinação para a descoberta de todo um espaço em que o moderno é, na verdade, um clássico inclinado às mudanças. Barthes já deixava isso claro em seu curso A preparação do romance, uma de suas obras em esboço mais bem acabadas – muito mais interessante do que outras, transformadas em livros impressos mesmo antes do conhecimento de sua teoria. Desde O demônio da teoria, Compagnon privilegia a interpretação da crítica de Barthes. Se lá ele condenava a falta de aceitação de Barthes da mímesis aristotélica – o que é um desvio do que realmente importava a Barthes: uma retratação da mímesis, sobretudo na condenação da retórica –, aqui ele diz que mudanças do mundo contemporâneo desagradavam a Barthes, como quando condenava o fato de que os livros seriam reduzidos a pizzas congeladas – o que, ainda mais hoje em dia, se mostra realmente verdadeiro.
É claro que Compagnon tem um interesse especial pelas obras de poetas modernos, como Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé, mas muito mais pelas obras críticas de Albert Thibaudet – para ele, o último dos críticos felizes –, Julie Gracq – com sua fina ironia e deboche em relação às teorias estruturalistas, como as do grupo Tel Quel (e é interessante notar como Compagnon espera que o passado não seja removido em prol apenas de novos autores, que, quando levados para o romance, não mantiveram o mesmo experimentalismo teórico, como Phillipe Sollers e Julia Kristeva). Ao notar que Barthes elege a poesia como a salvação da literatura em seus últimos cursos, no Collège de France, Compagnon percebe que ela está associada à solidão do autor, que irrompe não apenas na escrita impressa, mas sobretudo nas linhas originais do autor, deixadas em rascunhos e esboços para suas aulas – e Compagnon se penaliza com a condição final de Barthes por não ter visto que ele, afinal, precisava de ajuda.


Compagnon é um autor capaz de desenhar essa linha de Joseph de Maistre a Roland Barthes com a mesma intuição que analisava os cinco paradoxos da modernidade, a partir de Charles Baudelaire e da tradição da ruptura de Octavio Paz. Por isso, esse Os antimodernos parece uma continuação daquela obra: por se opor a uma visão facilitarista da poesia moderna, de que tudo que ela significa pode trazer uma ruptura decisiva com tudo o que vem antes. Para Compagnon, essa ideia é não só um engano, mas faz paralisar toda a interpretação de poesia que merecemos ter após autores como Barthes, que puxa o fio da meada, no final das contas, dessa teoria. Compagnon revela a aversão de Barthes por certa poesia moderna – e o faz de, por um lado, de maneira acertada e, por outro, equivocada, o que analisaremos a partir daqui.
Em seu primeiro livro, O grau zero da escritura, quando ainda propunha uma relação estreita entre literatura e sociedade (mesmo que opte pela neutralidade do escritor e tenha uma visão menos centrada que a de Hugo Friedrich), Barthes observa que “não há humanismo poético da modernidade: esse discurso de pé é um discurso cheio de terror, isto é, coloca o homem em ligação não com outros homens, mas com as imagens mais desumanas da Natureza: o céu, o inferno, o sagrado, a infância, a loucura, a matéria pura etc.”. Quando fala no interesse dos modernos pela Palavra, Barthes escreverá que essa palavra torna a palavra poética “terrível e desumana”, instituindo “um discurso cheio de buracos e cheio de luzes, cheio de ausências e de signos supernutritivos, sem previsão nem permanência de intenção e por isso mesmo tão oposto à função social da linguagem, que o simples recurso a uma palavra descontínua abre a via de todas as Sobrenaturezas” (Grifos meus). Na poesia moderna, as palavras surgiriam como objetos que excluem os homens, “equipadas com toda a violência de sua explosão, cuja vibração puramente mecânica toca estranhamente a palavra seguinte mas de imediato se apaga”. Barthes fica contrariado porque a poesia moderna nega a sociologia (conforme trecho em itálico) – que tanto lhe encantava no início da trajetória, e vai findando até seu curso final, A preparação do romance, quando, não por acaso, volta à poesia moderna como lugar para impedir a falência completa da literatura (como também observa Michel Deguy em Reabertura após obras).


Todavia, Barthes não se encaixa em algumas características desses antimodernos. Ao falar que no Collège de France Barthes “teria se tornado reacionário” - conceito cada vez mais político e, portanto, duvidoso em qualquer contexto: há muitos autores e políticos ditos de vanguarda completamente reacionários, por exemplo - e dado “as costas à modernidade”, ele comete dois equívocos seguidos, assim como afirmar que, depois do excelente Fragmentos de um discurso amoroso, Barthes teria se tornado uma “vedete midiática” (como se Barthes se comparasse a outros escritores efêmeros), afirmando ainda que em seus cursos finais ele “se preocupa pouco com a erudição, mas acima de tudo com a ressonância de uma cultura compósita em sua sensibilidade” (dando a entender que esses elementos divergem). Ele já havia sido injusto com Barthes em O demônio da teoria - mas, em Os antimodernos, parece que o ataque aparece em equilíbrio com a admiração (que existe também em boa escala). Ou seja, Barthes é antirrevolucionário ao final de sua vida, assim como cultiva o pessimismo, mas não se desinteressou pela modernidade, como um regresso ao sublime – pelo contrário, parece-me, inclusive, que tenta anulá-lo em sua obra, não significando que isso o desconsidere como conceito -, o que confere outra falha na teoria de Compagnon.
Para Longino, o poeta que atinge o sublime é aquele que, ao deixar sua alma “empolgada”, ascende a uma “altura soberba”, enchendo-se de “alegria e exaltação, como se ela mesma tivesse criado o que ouviu”. Tal processo acontece em razão de um “dom inato da natureza”, capaz de educar a alma para o arrebatamento, arrancando-a do corpo. O sublime nasce, sobretudo, do orador que não tem “sentimentos rasteiros e ignóbeis”, o que significa que “frases sublimes” pertencem apenas a pessoas de “sentimentos elevados”. Ele opta pela “amplificação”, “abundância”, “amplificação”, constituindo-se essas, para Longino, num “fruto da genialidade”. Consequentemente,

Quando, pois, uma passagem, escutada muitas vezes por um homem sensato e versado em literatura, não dispõe a sua alma a sentimentos elevados, nem deixa no seu pensamento matéria para reflexões além do que dizem as palavras e, bem examinada sem interrupção, perde em apreço, já não haverá um verdadeiro sublime, pois dura apenas o tempo em que é ouvida. Verdadeiramente grande é o texto com muita matéria para reflexão, de árdua ou, antes, impossível resistência e forte lembrança, difícil de apagar.

Os românticos, posicionando-se como sujeitos com um “dom inato”, tentavam agradar ao público, pois compunham para representar uma determinada emoção, que fosse comum a todos, em razão de sua possível transcendência. Por isso, assinala Barthes, o sublime representa uma espécie de “Retórica ‘transcendental’”, sendo a sublimitas uma “elevação do estilo” e a literaturidade, “defendida em tom caloroso, inspirado”, pelo qual o mito da criatividade começa a despontar, assim como o “mito humanista da frase viva, eflúvio de um modelo orgânico, a uma só vez fechado ou gerador”. É óbvio que, aqui, Compagnon distorce Barthes ao caracterizar o sublime como uma de suas preocupações. Seria contrariar, e mesmo desconsiderar, tudo o que ele escreveu ao longo de sua trajetória, sobretudo em sua contestação do Deus-Autor.


Quando trata do Eu imaginário que gostaria de ver na literatura, Barthes esquematiza:

1. O Eu é odioso → Clássicos

2. O Eu é adorável → Românticos

3. O Eu é démodé → “Modernos”

4. Imagino um

“clássico moderno” → o Eu é incerto, trapaceado

Perceba-se, nessa síntese própria de um curso, Barthes escolhe o “clássico” e o “moderno” de maneira a constituir um sujeito próprio aos dias atuais – que seria, para ele, certamente lacaniano, entre o Simbólico e o Imaginário. 
O Simbólico seria o que preexiste ao sujeito (dependendo da “linguagem” social), atuando como uma espécie de Imaginário visível. Não se pode, portanto, separá-lo totalmente do Imaginário, que contém elementos do Id e do Ego freudiano, no qual se funda uma espécie de sistema ilusório, no qual se processariam todos os problemas do ser humano, sobretudo sua histeria, suas neuroses, seus atos falhos, compondo o que chamamos de personalidade. Mas esta se situa à margem do Real, não sofrendo uma interferência do social, no que coincide com a teoria de Lacan, na qual a “subjetividade, na origem, não é de nenhuma relação com o Real, mas de uma sintaxe nela engendrada pela marca significante”. Nessa sintaxe, a subjetividade revela o que o sujeito se constrói através dos símbolos, sendo sua linguagem, como diz Barthes, complementando Lacan, um “lugar dialético onde as coisas se fazem e se desfazem, onde ele imerge e desfaz a sua própria subjetividade”.
Barthes avalia a ruptura de Rimbaud, no curso, de maneira mais produtiva do que o “terrível e desumano” moderno que emana das linhas de O grau zero da escritura, baseando-se em suas fases (a primeira, preenchida pela poesia, e a segunda, quando parte para a África), quando diz:

Rimbaud é moderno (fundador da Modernidade) não por seus escritos – ou menos por seus escritos do que pelo deslumbramento, o jeté de sua ruptura. Não é nem mesmo a radicalidade, a pureza, a liberdade da ruptura, que é moderna; é que ela permite ver, torna visível que o sujeito – o sujeito da linguagem – está fendido, esquizoide, como uma via em que cada trilho corre e segue diretamente diante dele, um paralelo ao outro; como se Rimbaud tivesse tido, nele, dois “condicionamentos” estanques: um para a poesia (através do liceu), outro para a viagem [...]; ele falou duas linguagens descontínuas: entre o poeta, o viajante, o colono e o crente final [...], não há junção, e é essa esquize que age como uma tentação moderna: Maquiavel fala de Lourenço de Médicis (grave e voluptuoso), e diz que havia nele dois seres diferentes: “juntos por uma inconcebível junção.










Não parece haver maior correspondência entre o Simbólico e o Imaginário lacanianos do que em Rimbaud: primeiro, a dedicação à obra; depois, o ingresso numa realidade estranha ao primeiro momento, mas não completamente afastada (basta lembrar os conflitos envolvendo o poeta com Paul Verlaine).
Compagnon também adota o posicionamento de que, ao final de sua trajetória, Barthes teria voltado à retórica. Observa Compagnon: “Contra a destruição da linguagem pela vanguarda, tanto na poesia quanto no teatro, Barthes já elogia a retórica e o lugar-comum”. Trata-se, a meu ver, de outro equívoco conceitual, pois Barthes, apesar de ter dado um curso notável sobre a retórica (incluído em A aventura semiológica), falava no curso A preparação do romance (ou seja, no curso derradeiro):

Não insisto sobre a Morte institucional da Retórica, pois tratei disso em meu seminário na EHESS, em 1965-1966. A Retórica se degradou, tornou-se técnica → “técnicas de expressão” (que ideologia!), contratação de textos, writings etc. Ora, havia um vínculo entre o ensino retórico e a escrita dos escritores de que falei. Retórica = arte de escrever (# arte de ler → não há mais artes da linguagem).

E Barthes não percebia a retórica como o oposto das vanguardas, ou seja, ao que se saiba, não traçou essa comparação em seus escritos, como sugere Compagnon. Diante das vanguardas, Barthes manteve-se cético. Por um lado, ele avalia que elas são importantes, mas, por outro, coloca em dúvida sua verdadeira praticidade. Numa das entrevistas do volume Política (com uma inclinação bastante acentuada para Marx, o qual iria não abandonar, mas colocar em segundo plano, mais adiante), ele diz estar “na retaguarda da vanguarda”: “ser de vanguarda é saber o que está morto; ser de retaguarda é amá-lo ainda; amo o romanesco, mas sei que o romance está morto; esse é, acredito, o lugar exato do que escrevo”. Mas é em Roland Barthes por Roland Barthes em que ele parece definir melhor sua relação com a modernidade e as vanguardas (a separação, não feita por Compagnon em Os antimodernos, é necessária), uma “autobiografia” na terceira pessoa, como em todo o livro:

Suas “ideias” têm alguma relação com a modernidade, ou com aquilo que chamam de vanguarda (o sujeito, a História, o sexo, a língua); mas ele resiste a suas ideias: seu “eu”, concreção racional, a elas resiste incessantemente. Embora feito, aparentemente, de uma sequência de “ideias”, este livro não é o livro de suas ideias; é o livro do Eu, o livro de minhas resistências a minhas próprias ideias; é um livro recessivo (que recua, mas também, talvez, que toma distância)”.

Ou seja, Compagnon, para mostrar facetas diferentes do mestre, distorce Barthes para fazê-lo se encaixar em sua teoria. Barthes tinha nuances, mudou de rumos ao longo de sua trajetória, mas não era um autor que, em determinado momento, abandonou tudo o que havia dito antes. O que ele acerta é afirmar que Barthes lida com vários conceitos – mas o faz de modo oblíquo, não óbvio nem declarado, ou seja, ele recua e toma distância das próprias ideias –, pois, afinal, o imaginário é o que importa. É com isso que ele se torna mais moderno do que muitos, mesmo sendo, no fundo, um antimoderno. A aversão à modernidade é a consciência – como almeja Compagnon ao situar todos esses autores numa linha que não pretende avançar à frente, a avant-garde – de se saber dependente dela. E é impossível negar Barthes: ele está em todos os críticos literários de qualidade depois dos anos 1950, mesmo que seja às vezes depreciado ou, algumas vezes, sequer citado. Como Barthes escreve em Roland Barthes por Roland Barthes: “Pode-se chamar de ‘poético’ (sem julgamento de valor) todo discurso no qual a palavra conduz a ideia: se você ama as palavras a ponto de sucumbir a elas, você se retira da lei do significado, da escrevência”. Há poucas coisas mais modernas - ou antimodernas, ou seja, o moderno em liberdade - do que esta consideração. E há poucos textos tão poéticos quanto o dele.

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