domingo, 28 de fevereiro de 2010

A modernidade de Baudelaire

Por André Dick

Em seu ensaio “O pintor da vida moderna”, em que se dedica a estudar o caso de Constantin Guys, Baudelaire, com base nesse conceito atemporal, escreveu que a modernidade é “o transitório, o fugaz, o contingente, a metade da arte, cuja metade restante é eterna e imutável”. A proposição do poeta francês é pertinente para retomar o próprio conceito original de modernidade. Como afirma o filósofo alemão Jürgen Habermas, a proposição de Baudelaire institui uma “intersecção do eixo entre atualidade e eternidade", ou seja, a modernidade representa uma “atualidade que se consome a si mesma”. Nesse sentido, o presente não pode ser mais visto como a consciência de algo simplesmente oposto à “época rejeitada e ultrapassada, a uma figura de passado”, mas sim como a representação de uma atualidade capaz de ser o ponto de ligação entre o tempo e a eternidade. Baudelaire percebe, assim, que a modernidade não se distancia do seu “caráter precário”, mas sim de sua “trivialidade”, desejando que o “momento transitório seja reconhecido como o passado autêntico de um presente futuro”. A modernidade torna-se o que um dia será clássico, sendo este, doravante, o “‘clarão’ da aurora de um novo mundo, que decerto não terá permanência, mas, ao contrário, sua primeira entrada em cena selará também a sua destruição”. Dá-se, então, a ligação entre modernidade e a moda, pois o “novo” em Baudelaire não presta nenhuma “contribuição ao progresso” (que ele ligará ao conceito de decadência). Como lembra Benjamin, o poeta francês “faz aparecer o novo no sempre igual e o sempre igual no novo”.


Para Hugo Friedrich, em Estrutura da lírica moderna, na poesia de Charles Baudelaire se compõe o começo da “despersonalização da lírica, pelo menos no sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos”. Tal separação se origina de “A filosofia da composição”, e foi Poe, como lembra Friedrich, quem separou a lírica do coração, com o poeta se libertando da paixão, a fim de se refugiar num mundo dito fantasioso. O contato que o autor de Les fleurs du mal teve com o autor tão importante para a teoria simbolista é relembrado pelo crítico Edmund Wilson, em O castelo de Axel:

Quando Baudelaire, um romântico tardio, leu pela primeira vez Poe, em 1847, ‘experimentou estranha comoção’. Quando se pôs a procurar escritos de Poe nos arquivos de periódicos norte-americanos, encontrou entre eles contos e poemas que ele próprio já havia ‘pensado vaga e confusamente’ em escrever, e seu interesse converteu-se em verdadeira paixão. Em 1852, Baudelaire publicou um volume de traduções de contos de Poe, e, a partir de então, a influência de Poe desempenhou papel importante na literatura francesa. Os textos críticos de Poe se constituíram nas primeiras escrituras do movimento simbolista, pois ele havia formulado o que equivalia a um novo programa literário, que corrigia a frouxidão romântica e desbastava a extravagância romântico, ao mesmo tempo em que visava não a efeitos naturalistas, mas ultrarromânticos.

A escolha de Baudelaire por Poe conduz ao que Valéry chamaria de “troca de valores”, ou seja, cada um acrescentou ao outro muitos elementos de análise. Poe, no caso, entregou a Baudelaire “um sistema de pensamentos novos e profundos”. Desse modo, Baudelaire, seguindo o caminho indicado pelo norte-americano, acabaria por justificar a poesia “em sua capacidade de neutralizar o coração pessoal”. Friedrich entende, por outro lado, que quase todos os poemas que compõem Les fleurs du mal “falam a partir do eu”, já que Baudelaire é um “homem voltado para si mesmo”, não oferecendo espaço para seu “eu empírico”. É estranho, porém, considerando o que Friedrich dissera sobre o programa da poesia moderna, que um poeta como Baudelaire, o primeiro, segundo ele, a separar o coração da poesia, apresente traços considerados românticos como realizar quase todos os seus poemas a partir de uma visão que se quer impessoal, mas apresenta uma carga de observação individual significativa. Não o faz talvez por achar que os românticos, ao contrário dos modernos, entre os quais Baudelaire, não foram “obscuros”.
Essa é uma observação na mesma linha daquela adotada por Marcel Raymond, e não menos paradoxal, que afirma ser a poesia de Baudelaire “muito menos sentimental e muito mais claramente ‘psíquica’ do que a dos primeiros românticos, dirigindo-se menos ao ‘coração’ do que à ‘alma’ ou ao ‘eu profundo’”, tendo como objetivo “comover, mais além de nossa sensibilidade, regiões mais obscuras do espírito”.


Essa “obscuridade”, digamos, programada, mas realizada antes por um Imaginário do estado inconsciente, de alma torturada, ou, nas palavras de Raymond, pelo engajamento de um “doente”, por um desejo de “abordar em qualquer lugar fora do mundo”, desenvolvendo “o tema romântico da revolta e da evasão até o mais alto grau do trágico”, se dá justamente porque, dos poetas modernos anteriores a Mallarmé, o autor de Les fleurs du mal foi quem teve mais traços do romantismo, se for considerado que o abandono de Rimbaud a Deus foi um abandono solitário, sem a tentativa de configurar um movimento. Baudelaire, como os românticos, acreditava, no início, que a poesia serviria para fundamentar a sociedade. Em seu conhecido estudo sobre o poeta, Walter Benjamin assinala que ele “teve em mira leitores que se veem em dificuldades ante a leitura da poesia lírica”, à medida que ele “pretendia ser compreendido”, daí dedicar Les fleurs du mal “àqueles que lhe são semelhantes”. Baudelaire, no entanto, descartou a concepção do poeta como representante divino da humanidade, à medida que “alterou a noção romântica”, justamente porque sabia, ao contrário de seus antecessores, que a literatura, e sobretudo a poesia, só poderia redundar no fracasso. Nesse sentido, escreve Maurice Blanchot:

A vida de Baudelaire, como ele o prova, é apenas a história de seu fracasso. E, no entanto, essa vida também é um sucesso absoluto. Sucesso não fortuito, mas premeditado, e que não se acrescenta ao fracasso, e sim encontra sua razão de ser nesse fracasso, glorifica esse fracasso, torna incrivelmente fecunda a impotência, tira a verdade mais resplandecente de uma impostura fundamental.

A visão baudelairiana da modernidade como “ruínas”, além de constituir um ponto de referência para Walter Benjamin, que, a fim de estudar os românticos, compôs sua visão moderna a partir dessa imagem de desintegração, revela uma ligação com a “estética do feio” e uma busca por uma nova beleza, que o poeta dirá passageira, própria do próprio caráter de modernidade. Isso aponta que seu interesse era poetizar independente de um sentimento herético, pois, se a sua transcendência vazia ignorava o “sublime”, o sentimento de elevação, era porque tinha consciência da impossibilidade de mudar o caos da cidade à sua volta, e cuja sobrevida era o vazio de qualquer conceito de infinito. Tal movimento, antes de se aliar a um programa romântico, aponta para a falta de necessidade de escolhas num universo melancólico.
Para Friedrich, equivocadamente, “o desconcertante de tal modernidade” constituída por Baudelaire “é que está atormentada até à neurose pelo impulso de fugir do real, mas se sente impotente para crer ou criar uma transcendência de conteúdo definido, dotada de sentido”. Nesse ponto, Friedrich, como Raymond, afirma que suas Les fleurs du mal mostram uma “lírica obscura”, mostrando “estados de consciência anormais”, com “mistérios e dissonâncias” se expressando em versos compreensíveis, mas cujas ideias só se realizarão em poetas precursores, o que já alertava também Raymond, quando diz que nessa poesia não existe uma realidade por si mesma, mas um “imenso reservatório de analogias”, simplificando não só a interpretação da obra baudelairiana, mas a própria modernidade.


O leitor é levado a pensar que essas ideias surgem do fato de Baudelaire ter um “asco pelo real”, projetando no sonho e nas drogas um escape dessa realidade artificial que o incomodava (muito em razão, diga-se en passant, de seu livro Les paradise artificiels, em que revela as influências que tiveram o ópio e o haxixe em sua produção inventiva) decompondo e deformando paisagens, e que Rimbaud e Mallarmé, ao enfrentarem essa realidade, mesmo querendo aparentemente destruí-la, foram mais efetivos na realização, o que é uma interpretação talvez apressada. Baudelaire, no entanto, se afirmou como a figura do poeta maudit, que se cabia em Rimbaud, não era bem vista por Mallarmé, um homem socialmente mais discreto, senão nulo nesse sentido. Por sua vez, Octavio Paz, em Signos em rotação, escreveu que os poetas modernos ficariam, muito em razão de Baudelaire, conhecidos por sua vida fútil, perdida em meio a uma vasta desocupação, como poetas malditos, aqueles que escolhem a vida sem trabalho para produzirem mais. Sua ligação com as drogas era sobretudo mística e sua visão sobre a metrópole mostrava o olhar fragmentado do homem moderno. Mas não era um poeta irracional ou obscuro por tais escolhas.
Blanchot observa que

A imaginação baudelairiana é uma força muito complexa, essencialmente destinada a ultrapassar o que é, a esboçar um movimento infinito e, ao mesmo tempo, capaz de retornar a uma realidade ordenada, a da linguagem, em que ela representa e encarna esse movimento.

Ainda para Blanchot, Baudelaire também sabia que a poesia é “uma experiência vivida pela existência e pela linguagem, experiência que tende a criar o sentido de todas as coisas juntas, de maneira que, a partir desse sentido, cada coisa é mudada, aparece tal como ela é, em sua realidade própria e na realidade do conjunto”. No mesmo caminho, aponta Benjamin que “a rigor, não pode haver análise penetrante de Baudelaire que não se confronte com a imagem de sua vida”, cujo maior confronto se dá com a sociedade burguesa.


O filósofo italiano Giorgio Agamben, na seção “No mundo de Odradek: a obra de arte frente à mercadoria”, de Estâncias, em que é traçada uma ponte entre Marx e Baudelaire, com seu fetiche pela mercadoria, parte exatamente da interpretação de Freud sobre o fetiche: a negação do menino da ausência do pênis materno, e a sua negação dessa ausência, cria uma analogia para se estabelecer uma ponte com o objetivo da poesia moderna. O objeto-fetiche é algo concreto, mas, “como presença de uma ausência”, é, ao mesmo tempo, “imaterial e intangível, por remeter continuamente para além de si mesmo, para algo que nunca se pode possuir realmente”. O valor de uso não é maior, hoje, do que o valor de troca, o que mostra a inapreensibilidade do objeto: a sua presença-ausência. Sob o ponto de vista poético, a razão é que tornar a obra num fetiche implica aceitar a sua própria intocabilidade. No entanto, é preciso profaná-la, ou seja, transformá-la em mercadoria: a poesia, sob esse ângulo, passa a ser utilizada não mais como arte ou como mercadoria, mas como uma espécie de mistura, em que as duas se anulam.
Para Agamben, a grandeza de Baudelaire está no fato de ele ter conseguido transformar em mercadoria e em fetiche a própria obra de arte. A partir da ideia de que a poesia não tem outro fim senão ela mesma, Baudelaire imprime à obra de arte o valor de troca que possui a mercadoria. Desse modo, Baudelaire “não se limitou a reproduzir na obra de arte a censura entre valor de uso e valor de troca, mas se propôs a criar uma mercadoria na qual a forma de valor se identificasse totalmente com o valor de uso, uma mercadoria, por assim dizer, absoluta, na qual o processo de fetichização fosse levado até o extremo de anular a própria realidade da mercadoria enquanto tal. Uma mercadoria em que valor de uso e valor de uso se anulariam mutuamente, e cujo valor residiria, por esse mesmo motivo, na inutilidade, e cujo uso, na sua intocabilidade, não é mais uma mercadoria: a mercadorização absoluta da obra de arte é também a abolição mais radical da mercadoria”.
Baudelaire acreditava que o poeta era um deslocado, mas, como reflete Blanchot, ele não tomava isso como “um ideal estético ou moral admirável”. A própria concepção do flâneur, do homem que transita solitário em meio à multidão de uma grande metrópole, sem perder sua privacidade, ajuda a compor melhor quem foi o poeta. Eis uma bela passagem de Benjamin sobre a relação de Baudelaire com a sociedade e que deveria ainda servir para situar o papel do poeta (e não do sociólogo disfarçado de poeta):

Com toda a certeza, não era [...] nenhum salvador, nenhum mártir, nem mesmo um herói. Porém tinha em si algo do ator que deve representar o papel do “poeta” diante de uma plateia e de uma sociedade que já não precisa do autêntico poeta e que só lhe dava, ainda, espaço como ator.

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