sexta-feira, 29 de abril de 2011

Apollinaire: poeta do amor e dos caligramas (II)

Por André Dick

Dentre os poetas clássicos, Apollinaire, atualmente, um dos que mais têm possibilidades de provocar o público, por ter apostado tanto nas armas comuns de todo poeta da sua época (rimas, métricas), percebidas de modo mais assíduo na obra Alcoóis, quanto em seu imaginário visual, fundamentado em teorias textuais, registrado em seu livro Caligramas, no qual os poemas tinham uma peculiar representação visual e ideográfica, o que influenciaria diretamente na poética de e. e. cummings, poeta norte-americano, e de outros poetas visuais pelo mundo - sobretudo os do concretismo brasileiro, entre os quais estão os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Desse modo, segundo o romancista e crítico literário americano Paul Auster, a poesia de Apollinaire mesmo oscilando “de graciosos poemas de amor a ousadas experiências de amor, da rima ao verso livre e aos poemas ‘forma’” “não gera incompreensão, mesmo quando aposta numa zona de perigo” - vem à tona, novamente, os “caligramas” ou “poemas forma”, como observa Auster. Isto aproxima Apollinaire de Rimbaud. Ambos injetaram ânimo na poesia, com o talento de jogar com a expectativa do leitor - o que é lido nunca se faz compreender de uma só vez.


Na análise “Miramar na mira”, que o poeta Haroldo de Campos faz sobre o romance Memórias sentimentais de João Miramar, existe uma grata referência a Apollinaire e aos seus caligramas no tópico “O espírito moderno”:

“Apollinaire, o poeta dos Caligramas, cujas atividades formavam uma espécie de traço de união cultural entre futurismo e cubismo, pois de ambos os movimentos participava, pronunciou em 1917, no Vieux-Colombier, uma conferência memorável sob o título ‘Os poetas e o espírito moderno’. Proclamava então: ‘...Podemos prever o dia em que o fonógrafo e o cinema sendo as duas únicas formas de impressão os poetas terão uma liberdade desconhecida até agora...’ No domínio da inspiração, sua liberdade não pode ser menor que a de um jornal quotidiano que trata numa mesma página de matérias tão diversas, percorre países os mais distanciados. Perguntamos por que o poeta não teria uma liberdade pelo menos igual, e por que seria levado, na época do telefone, do telégrafo sem fio, a maior circunspecção em face dos espaços? ... Os poetas desejam, enfim, maquinizar a poesia como maquinizaram o mundo. Querem ser os primeiros a fornecer um lirismo inédito a estes meios de expressão que trazem à arte o movimento e que são o fonógrafo e o cinema”.

Pouco mais de cinco meses depois desse pronunciamento, lembrado por Haroldo de Campos, Apollinaire acabaria lançando a obra Caligramas, em que colocava em prática seu discurso de modernidade
Paul Auster identifica no poeta francês “uma nova sensibilidade, ao mesmo tempo influenciada pelas formas do passado e entusiasticamente à vontade no mundo dos automóveis, dos aviões e do cinema”. Ao seu redor, surgia, reitera-se, o cinema, uma nova percepção, o novo século que se iniciava, sob a sombra da esperança e descoberta. Surgia, enfim, outros meios de desvendar as películas da realidade. E o caligrama era a porta poética, em Apollinaire, para esse novo universo.

 Por meio do processo composicional do caligrama, Apollinaire pretendia atingir o ideograma quase perfeito. Ele afirmava que o caligrama fazia com que o leitor se habituasse a compreender sintético-ideograficamente em lugar de analítico-discursivamente, ou seja, a privilegiar a forma, acompanhada de seu aspecto visual, em detrimento da sintaxe clássica. Desse modo, o leitor descobriria, na maioria das vezes, o tema do poema por meio da forma, da estrutura visual. Mas o que seria mesmo um caligrama? Simples: uma “forma adotada no poema para produzir um efeito plástico”, consistindo “em substituir a linearidade do verso por uma série de disposições tipográficas que, às vezes, evocam o objeto que se descreve”, segundo Giménez Frontín.
Parte desses traços teóricos ressaltados pelo caligrama foi aproveitada pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e por Décio Pignatari na Teoria da Poesia Concreta, mas isso não significou que os três idealizadores do movimento deixassem de ver que nos caligramas “a estrutura é evidentemente imposta ao poema, exterior às palavras” (Augusto de Campos), ao mesmo tempo que apresentam um “decorativismo sem sentido” (Décio Pignatari) e uma “figuração artificial à composição” (Haroldo de Campos).
Ainda que certamente com esses problemas, é nos caligramas que a consciência moderna de Apollinaire em estar sintonizado com o mundo desponta em mais maduro relevo. Neles, a poesia toma vida como nunca havia tomado em toda sua história.
Antes do traço, do desenho, da colocação vocabular no papel, Apollinaire é um lírico incondicional, que vê tudo à sua volta (cinemas, indústrias, novos meios tipográficos) emergir de um bule maquinário.
Um dos melhores caligramas dessa obra de Apollinaire é, sem dúvida, “A chuva”, que tem abaixo uma tradução de Sérgio Caparelli, encontrada no livro infantojuvenil Tigres no quintal:



Chovem vozes de mulheres como se estivessem mortas mesmo na recordação
Chovem também encontros maravilhosos da minha vida ó gotículas
E estas nuvens empinadas começam a relinchar um universo de cidades mínimas
Escuta se chove enquanto a mágoa e o desdém choram uma música antiga
Escuta caírem os elos que te retém encima e embaixo

Outro poema clássico da obra Caligramas é “Lettre-ócean”, analisado em O momento futurista, de Marjorie Perloff:



A obra Caligramas, no entanto, não traz apenas poemas que privilegiam o aspecto visual. Nele, também há poemas que influenciariam diretamente poetas brasileiros, como o paulista Oswald de Andrade, um dos pais do Modernismo dos anos 20, e o gaúcho Mário Quintana, fã declarado de Apollinaire.
Para Décio Pignatari, no entanto, “talvez seu projeto revolucionário esteja menos nos caligramas, mesmo ambiciosos, como ‘Lettre-Océan’, do que na paratatização sistemática, que ele chamava de ‘simplificação sintática’, cujo melhor exemplo é o de ‘As janelas’, inspirado num quadro pioneiro do abstracionismo geométrico, de autoria de Robert Delaunay”.
Esses poemas trazem versos que podem dialogar com a obra Pau Brasil, de Oswald de Andrade, no encadeamento de versos, na realidade flashes cinematográficos, próprios do cubismo (não esquecer de Pintores cubistas, de Apollinaire, lançado pela L&PM Pocket). Na tradução de Pignatari, abaixo, toda a desenvoltura de Apollinaire para construir imagens fortes fica clara:

Do vermelho ao verde todo amarelo morre
Quando cantam as araras nas florestas natais
Cavalos-de-frisa de pihis
Aves chinesas de uma asa só voando em dupla
É preciso um poema sobre isso
Enviaremos mensagem telefônica
Traumatismo gigante
Faz escorrer os olhos

(...)

Árvores ocas que abrigam alcaparras vagabundas
Os Chabinos cantam árias de morte
Às chabinas fugitivas
E a gansa uá-uá trombeta ao norte

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