sábado, 2 de abril de 2011

Kurt Schwitters: o dadá alemão (II)

Por André Dick

No artigo “Kurt Schwitters ou o júbilo do objeto”, o poeta e ensaísta Haroldo de Campos mostra bem alguns pontos da poesia desse alemão. Para ele, a obra de Schwitters é dominada pela “redescoberta do mundo perdido do objeto – a parafernália de detritos, lascas, aparas, ferros velhos, cacos de vidro, jornais, impressos sem uso etc., que são o lastro rejeitado pela vida moderna em seu trânsito cotidiano”, constituindo-se em “ágil trampolim para a sua busca incessante do objeto em si, do eidos da expressão poética ou plástica”. A arte dele, ainda, segundo Campos, “caracteriza-se pelo uso constante da colagem, pelo humor que reponta da imprevista associação dos detritos do cotidiano, sejam estes bilhetes de bonde e envelopes de carta postos em súbita assemblage, sejam excertos da conversa de todos os dias, do jargão popular e jornalístico, do estoque de frases feitas etc.”.


Além de nome de revista, Merz era, para Schwitters, o nome de sua arte, tirado da segunda sílaba da palavra KOMMERZ (Comércio), que aparecia solta numa obra em que mostrava, nas colagens, fragmentos do anúncio do Banco do Comércio (Kommerzbank). Com ela, Schwitters sugeria as transformações que trazia sua obra. Schwitters via um prazer pessoal em lidar com lixo para transformá-lo em arte. Para realizar seus quadros, ele trazia essa verdadeira coleção de detritos. Ao começar a escrever poemas com 17 anos, também denominou essa atividade de Merz.
Para Haroldo, há “estreitas zonas de contato e permeabilidade entre as collagens visuais de Schwitters e suas collages verbais, além da análoga técnica de expressão implícita nos dois processos. Observando-se reprodução de seus quadros do gênero, verifica-se que o dado meramente tipográfico sempre está presente nessas composições, metamorfoseado através de découpages, inversões, propositados, contrapontos de caracteres gráficos de tipos (gótico, itálico, caixa alta, caixa baixa etc.) e origens diversos, funcionando como um fator que se resolve gestalticamente no conjunto das partes do quadro, indesligável delas”.
É interessante como de um simples recorte Schwitters refaz a trajetória da palavra – inteira, referindo-se a uma instituição bancária, depois recortada e fragmentada, como se fosse o resto do tesouro em que ela não coube. Só que a maneira que Schwitters encontra para renová-la é inserindo ela na sua arte, que pode ser vista como o lixo. Sobre Merz, Schwitters ainda disse: “Merz é liberdade em relação a todos os princípios, por amor da criação artística. Liberdade não é falta de disciplina, e sim o produto de da estrita disciplina artística. Merz também significa tolerância para com qualquer limitação artisticamente motivada. Todo artista deve ter liberdade para fazer um quadro a partir do nada, salpicando papéis, desde que seja capaz de formar um quadro”.
A inserção da palavra nas artes plásticas mostra o quanto Schwitters estava de acordo com seu tempo – na multiplicidade e a dissolução de áreas muitas vezes opostas. Ainda hoje há uma resistência a se ver literatura nas artes plásticas, o que pode ser negado por obras tão interessantes como a sua. Ele falava de seu interesse pela poesia: “Os elementos da poesia são as letras, as sílabas, as palavras, as sentenças. A poesia surge da interação desses elementos. O significado é importante só quando é empregado na qualidade de um desses fatores. Jogo sentido contra sem-sentido (Unsinn, nonsense). Prefiro o sem-sentido, mas isso é questão pessoal.Tenho pena do sem-sentido porque até agora só raramente tem sido artisticamente usado; eis por que adoro o sem-sentido”.


Os poemas, desse modo, ficaram em segundo plano, igual a toda a poesia de vanguarda do início do século XX Como é o caso da obra de Schwitters, poeta de incrível talento em lidar com imagens surreais, absurdas, mas, ao mesmo tempo, extraordinárias. Embora Schwitters, como observa Haroldo em seu ensaio, fosse também preocupado com a invenção tipográfica e com a desarticulação dela, quando pintava, com o visual dos vocábulos, suas possíveis disposições no horizonte espacial e suas reações e transformações recíprocas quando postos em presença simultânea, sua linguagem se relacionava plenamente na construção singularíssima de seus poemas, baseados numa repetição contínua de ideias e um jogo de palavras dificílimo de ser traduzido, pois à luz de uma revalorização dos sons e do trabalho tipográfico com as letras, característica do futurismo, ao qual Schwitters esteve, por meio do dadaísmo, ligado.
Talvez o poema mais conhecido e conciliador das artes (literária e plástica) de Schwitters seja “Anna Blume”, publicado em 1919. Para Haroldo de Campos, ele “reintegra na língua poética algo perdido no entulho do idioma cotidiano e defeso aos páramos vestalizados da poesia bela-arte, como seja: a repetição memorizada para uso escolar da declinação pronominal pessoal (...), o nonsense das adivinhas populares, frases de diz-que-diz-que comadresco etc., organicamente fundidos pelo condão de imagens imprevistas (...) e associações inacostumadas, deslocamentos da ordem natural das coisas da expressão, cujo êxito na presentificação do objeto poemático só se mede pela pane que a linguagem ordenada pelo bom senso, ainda quando recorra ao chamalote postiço duma convenção poética perempta, sofre diante desse mesmo objeto”. O poema saiu numa versão diferente em Crisantempo, com cada letra grafada de uma maneira diferente. Aqui, apresentamos a versão original de Haroldo, linear, que constava em A arte no horizonte do provável.


ANNA BLUME/ANAFLOR (Kurt Schwitters/Haroldo de Campos)

Ó amada dos meus vinte-e-sete sentidos, eu
Te amo! – Tu, te, ti, contigo, eu te, tu me.
– Nós?
Isto (de passagem) não vai bem aqui.
Quem és tu, mulher inumerável? Tu és
– és? – Eras, andam dizendo, – deixa
que digam, nem sabem em que pé
está o campanário.
Chapéu nos pés, caminhas sobre as mãos,
volante sobre as mãos.
Olá, pregas brancas serram tua roupa rubra,
Rubroteamo Anaflor, em rubro te me amo! – Tu
teu te a ti, eu te, tu me. – Nós?
Isto (de passagem) lança-se à brisa fria.
Rubraflor, rubra Anaflor, que andam dizendo?
Adivinha: 1.) A doidiv’Ana tem uma ave.
2.) Anaflor é rubra.
3.) E a ave? Quem sabe?
Azul é a cor dos teus cabelos louros.
Rubro é o arrulho de tua ave oliva.
Tu criatura simples num vestido cotidiano, bem-amado
animal verde, eu te amo! Tu te ti contigo, eu
a ti, tu a mim, – Nós?
Isto (de passagem) vai para o braseiro.
Anaflor! Ana, a-n-a, gotejo teu
nome. Teu nome em gotas, tenra gordura bovina.
Sabes Ana? Já o sabes?
de trás para diante podes ser lida, e tu
a mais bela de todas, para trás
ou para diante
serás: a-n-a.
Gordura bovina goteja ternura em meu dorso.
Anaflor, animal gotejante, eu te me amo.


Como lembra Faustino, “Conta Josef Albers (citado por Robert Motherwell) que Schwitters costumava ouvir as conversações de mulheres em bondes e trens, bem como as canções populares de garçons e operárias, e que muitos de seus escritos se baseavam no que ouvia em tais ocasiões – Schwitters se limitava a entremear paródias e trocadilhos”. Vejamos “Gatos”, na tradução de Faustino:

Gatos
Pernas
gatos pernas desejo homem
seres mundo terra rodeia gatos
gatos patinham capim macio
Fios se cruzam traço
celembram gritaria os vinte mil gatos
patas em tinta rabos espaço
espaço, espaço, espaço gatos
e gatos, gatos, gatos espaços
e patas, patas, patas
luminosos
seres

Ou as palavras-montagem de “Nós” (também tradução de Faustino):

vivemos nós
esticamos canelas nós
morremos nós
mundo superesgrimado mundo
vida mudamorte
elasticidade raiodealcance sino
brasa soa mundo

São exemplos de poemas ainda com palavras, mas Schwitters também faria “sons-poema”, nos quais Faustino destaca a “beleza gráfica”, com “humour gráfico e outras sensações perfeitamente transmissíveis por meios sonoros e gráficos, sem referências semânticas e simbólicas. O poema ouvido, e o poema visto. O poema ouvido-e-visto” – quase como suas colagens plásticas, que suscitam o verbal tanto quanto suas composições sintáticas.
Como afirma Marjorie Perloff, o momento futurista, como o próprio Schwitters, representa

breve fase em que a vanguarda se define pela sua relação com o público de massa. Como tal, o seu extraordinário interesse para nós reside em ser o momento climático de uma ruptura, o momento em que a integridade do medium, do gênero, de categorias tais como “prosa” e “verso” e, o mais importante, “arte” e “vida” foram questionadas. É o momento em quem a colagem, a mise en question da pintura como uma representação da “realidade”, faz seu primeiro aparecimento, quando o manifesto político é percebido esteticamente, da mesma forma que o objeto estético – verbal, visual, musical – são cada vez mais usados em conjunção: o futurismo e a época da arte da performance, da chamada poesia do som e do livro de artista. Mas atrás desse impulso para a decomposição, para um rompimento das artérias que produzirão o novo, há uma extraordinária fragilidade e inconstância.

Fragilidade e inconstância que não encontramos em Schwitters.

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