quinta-feira, 16 de junho de 2011

As “flores da fala” de James Joyce e Haroldo de Campos (I)

Por André Dick

A prosa romanesca parece ser dividida entre antes e depois da passagem pela literatura do escritor irlandês James Joyce. Seus livros mais experimentais, Ulysses, Giacomo Joyce e Finnegans wake, deram margens aos mais variados trabalhos com a linguagem e, como se fossem núcleos experimentais, influenciar muitas obras posteriores, com base na experimentação, na ruptura entre as barreiras da prosa e da poesia, num jogo constante de movimentação de linguagens, apostando no plurilinguismo.


Na América Latina, os experimentalismos de Joyce parecem ter batido à porta de algumas obras de forma específica. Embora tenhamos, no Brasil, exemplos textuais de prosa experimental, em que há exemplos de plurilinguismo, tais como Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, e Macunaíma, de Mário de Andrade, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa é, certamente, o parâmetro de uma transformação do romance como gênero e centro plurilinguístico, em que seu personagem Riobaldo representava, sobretudo, o fluxo do discurso sertanejo.
Pode-se lembrar, aqui, as palavras do poeta paranaense Paulo Leminski (1944-1989), que disse numa entrevista sua à revista Quem, em 1978, publicada no livro Paulo Leminski: “À figura de Joyce corresponde no Brasil a figura de Guimarães Rosa”. Para ele, o Grande sertão é a “a maior obra, em palavras, que já surgiu no Brasil”. Seria, dentro da prosa regionalista, a sua “culminância cósmica e máxima”. Uma obra que se coloca na linha de Finnegans wake, cujos trechos foram traduzidos por Augusto e Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake.


Em seu artigo “Pontos – periferia – poesia concreta” (1955), Augusto de Campos explica que Mallarmé “é inventor de um processo de composição poética cuja significação se nos afigura comparável ao valor da ‘série’, introduzida por Schoenberg, purificada por Webern, e, através da filtração deste, legada aos jovens músicos eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen”. Augusto define esse processo com a palavra “estrutura”, “tendo em vista uma entidade onde o todo é mais que a soma das partes ou algo qualitativamente diverso de cada componente”. Essa ideia de estrutura está ligada à Psicologia Gestalt, criada no final do século XIX. No mesmo artigo, Augusto encontra exemplos de poetas, além de Mallarmé, que utilizaram bem o conceito de estrutura. Os mais destacados são Pound, por meio do ideograma, e Joyce, que, para Augusto, encontram-se justamente no campo da estrutura. Augusto também compara, no artigo, a Psicologia Gestalt com a música serial, que também necessita da apreensão total da obra para apreciação de qualquer uma de suas partes. Augusto encerra o artigo, afirmando que as “subdivisões prismáticas da Ideia” de Mallarmé, juntamente com “o método ideogrâmico de Pound, a apresentação verbivocovisual de Joyce e a mímica verbal de Cummings convergem para uma nova teoria de forma [...] onde noções tradicionais, como princípio-meio-fim, silogismo, verso, tendem a desaparecer e ser superadas por uma organização poético-gestaltiana, poético-musical, poético-ideogrâmica da estrutura”, que configuraria a poesia concreta.


Como também lembra Augusto de Campos, no ensaio “Outras palavras sobre Finnegans wake”, Ezra Pound não se interessou por toda a obra de Joyce: “Quando James Joyce enviou a Ezra Pound, em 1926, alguns dos primeiros fragmentos da ‘Obra em Progresso’ que viria a dar no Finnegans wake – o enigmático e inclassificável ‘romance’ publicado em 1939 –, a reação do autor dos Cantos, a cujo entusiasmo e dedicação se devera a publicação de Ulisses, foi fria e evasiva: ‘Tudo o que eu posso fazer é lhe desejar toda espécie de sucesso. [...] Sem dúvida há almas pacientes, que irão vasculhar qualquer coisa à procura do possível trocadilho... mas... não tendo nenhuma ideia do propósito do autor, se é divertir ou instruir... em suma’”.
No entanto, essa obra de Joyce trazia todo o pesadelo onírico em que se constitui a história - seja da pretensa realidade, seja da literatura, apresentando um manancial de fluxos de pensamento, alternâncias verbais, palavras inventadas, enriquecendo tanto a prosa quanto - talvez ainda mais - a poesia. Por isso, equilibrando os conceitos de sonho e pesadelo, Jacques Lacan disse, em seu curso O sinthoma, sobre Finnegans wake:

O incrível é que Joyce – que tinha o maior desprezo pela história, com efeito fútil, qualificada por ele de pesadelo, e que se caracteriza por despejar sobre nós as palavras grandiosas que nos fazem tanto mal – só conseguiu encontrar esta solução: escrever Finnegans wake, ou seja, um sonho que, como todo sonho, ainda é um pesadelo, ainda que seja um pesadelo moderado. Com a diferença, diz ele, e é assim que é feito esse Finnegans wake, de que o sonhador não é nenhum personagem particular desse livro, mas o próprio sonho.


Nesse sentido, Lacan fala sobre os comentadores de Joyce:

Quando lemos o texto de Joyce, e sobretudo seus comentadores, o que impressiona é o número de enigmas que ele contém. Não somente são abundantes, como podemos dizer que Joyce joga com isso, sabendo muito bem que haveria joycianos durante duzentos ou trezentos anos. Os joycianos são pessoas que se ocupam unicamente da resolução de enigmas. No mínimo, isso leva a perguntar por que Joyce os colocou ali. Naturalmente, eles encontram sempre uma razão: ele colocou isso ali porque, logo depois, há uma outra palavra etc.

A Poesia Concreta se preocupava com a resolução de enigmas, mas isso não rotula seu estudo como filológico ou algo do tipo. O que importa a Haroldo e Augusto é, sobretudo, a poesia – e esta, claro, abrange todas “as flores da fala”, seja num idioma estranho, onírico, seja num idiomaterno, daí a importância de Joyce, delineada por eles, no Brasil. Como escreve Haroldo, “Que o trabalho realizado até aqui valha, pois, agora que JOYCE REVÉM, para que outros ponham mãos à obra. Ou quem sabe nós mesmos. Para reglosar outra vez o sanscredo esperançoso do irlandês babelizante em nosso portocálido e brasilírico idiomaterno”.


Os poetas concretos tiveram a mesma recepção a Joyce que músicos de vanguarda do século XX. Durante anos, principalmente depois de se tornar um “poeta literário”, Cage foi uma espécie de artista multimídia, continuando a produzir peças, entre as quais HPSCHD (1969), Musicircus (1971) – em que gravou, inclusive, poemas de e. e. cummings, que não havia dado importância às suas experiências quando levadas a ele pelo próprio Cage –, Bird cage (1973) e trechos de textos de Finnegans wake, a obra mais complexa de Joyce, no projeto Roaratorio, an Irish Circus on Finnegans wake (1981), o que Augusto de Campos também faria, com mais modéstia, em seu CD Poesia é risco, em 1995, show multimídia. Em Roaratorio, Cage é atraído pelo embate entre Joyce e um certo orientalismo.
O acaso mallarmeano, ligado à não intenção, o I Ching, a mistura de ideias ocidentais às orientais fazem com que a literatura de Cage, mesclada à sua música, rivalize em inovação com as obras de James Joyce, Finnegans wake e Ulisses, mais com o primeiro, alguns dos textos do primeiro inclusive tendo sido musicados por Cage. O Futurismo, uma das alavancas da work in progress de Joyce, foi também uma das referências de Cage, tal como o Dadaísmo – Duchamp, seu amigo, da mesma geração, é um verdadeiro representante das colagens dadaístas no século XX.


Os sentidos do acaso encontraria interesse, no século XX, consequentemente, pelo abandono dos instrumentos musicais mais comuns, dedicando-se a uma coleta de sons em novas técnicas de produção de sons, também em Pierre Boulez, que foi aluno de Webern, continuador das experiências de Schoenberg. Boulez sonhou musicar Un coup de dés e dizia estar fazendo, em sua obra, o que Mallarmé apenas sonhara na literatura. O outro, John Cage, foi aluno da classe de Schoenberg e, durante sua trajetória, também quis, em certo momento, musicar o poema de Mallarmé, apesar de se deter em Joyce, uma aproximação já efetuada antes, segundo Augusto de Campos, pelo crítico norte-americano Robert Greer Cohn:

O denominador comum, segundo Robert Greer Cohn, para quem aquele poema de Mallarmé tem mais pontos de contacto com Finnegans wake do que com qualquer outra criação literária, seria o esquema: unidade, dualismo, multiplicidade, e novamente unidade. Expressão evidente [...] dessa estrutura circular comum a ambas as obras é o fato de a frase inicial de Finnegans wake ser a continuação da última, assim como as derradeiras palavras do poema mallarmeano são também as primeiras: ‘Toute pensée émet un coup de dés’.


Pierre Boulez escreve, em seu artigo “Pesquisas atuais” (1954), que “nem Mallarmé – de Un coup de dés – nem Joyce têm equivalentes na música de sua época. É possível, ou é absurdo, tomar assim pontos de comparação? (Se pensamos naquilo de que eles gostaram: Wagner para um; para outro a ópera italiana ou os cantos irlandeses...)”. Joyce é um autor raríssimo - como Mallarmé -, o que o torna ainda mais propenso a análises e influências.
No Brasil, um dos exemplos máximos de influência joyciana, sobretudo de Finnegans wake, é Galáxias, de Haroldo de Campos, capaz de unir também o ímpeto de Mallarmé em sua estrutura, a começar por sua epígrafe.

2 comentários:

  1. Caro André,
    À flor do texto a cor dos sons...
    Um presente que parece até anunciar um tempo da delicadeza
    Um abraço,
    Viviane

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  2. Cara Viviane,

    Agradecemos por sua visita e sua leitura a respeito desse breve panaroma, sempre contemporâneo.

    Um abraço
    André Dick
    Nicole Cristofalo

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