quarta-feira, 29 de junho de 2011

A recusa de Tsvetáieva, Akhmátova e Mandelstam (I)

Por André Dick

No volume Poesia da recusa, Augusto de Campos relembra as palavras de Valéry sobre o trabalho de Mallarmé: “O trabalho severo, em literatura, se manifesta e se opera por recusas. Pode-se dizer que ele é medido pelo número de recusas. [...] O rigor das recusas, a quantidade das soluções que são rejeitadas, as possibilidades que o escritor se proíbe, manifestam a natureza dos escrúpulos, o grau de consciência, a quantidade do orgulho e, também, os pudores e os diversos temores que se pode sentir com relação aos julgamentos futuros do público. É nesse ponto que a literatura atinge o domínio da ética”.


No caso de alguns poetas russos, trata-se de uma recusa não só a posições políticas, mas à vida meramente sistematizada. Esta recusa é representada por poetas como Mandelstam, Maiakóvski e Marina Tsvetáieva, por meio do suicídio, obviamente uma representação do desespero existencial de seus poetas e não uma sublimação literária, para se alcançar a eternidade ou tornar os escritos de quem se matou em algo de mais valor, ou entendê-lo como obrigação do sujeito infeliz, ou do poeta que deseja fugir ao sistema. A recusa não implica, também, escolher um caminho de pureza, de distanciamento do mundo, mas sim o de privilegiar o diálogo com a tradição, com o mundo – mas de forma não ideológica, comprometida.
Não por acaso, Óssip Mandelstam é um dos poetas russos mais contundentes. Nascido em Varsóvia, Polônia, cresceu em São Petersburgo e tem como principal obra seu primeiro livro, Kamen (“Pedra”), influenciado sobretudo pelo simbolismo, depois de um período controverso, em que era, ao mesmo tempo, protegido e perseguido, por amigos e inimigos. Após se desencantar com o movimento revolucionário, afastou-se, pouco a pouco, da política, e foi preso em 1934, acabando nos campos de concentração de Stalin, por fazer versos satíricos contra o ditador. Postava-se, desse modo, contra a vida burocrática do intelectual que trabalha para as ideias do governo, em busca de privilégios e aceitação popular.


Como lembram Nina Guerra e Filipe Guerra, na introdução de Guarda minha fala para sempre, “o destino de Mandelstam estava traçado: Stálin, que chegou a pensar domesticar o poeta, fazer dele mais um bobo da corte, agora já não aceitava louvores poéticos: ser liquidado aos poucos, desaparecer imperceptivelmente para não deixar rastro, era o destino deste, e de outros poetas”. Detido em 1938 e condenado a cinco anos de trabalhos forçados, acabou morrendo num “campo de passagem”, “enquanto aguardava a deportação para um dos campos de reeducação da Sibéria”. A acusação, como lembram Nina Guerra e Filipe Guerra, era de “propaganda antissoviética” e a sentença: “o réu Óssip Mandelstam, filho de comerciante, ex-socialista-revolucionária, por atividades contrarrevolucionárias, é condenado a cinco anos de campo de trabalhos forçados, na Kolimá. Não chegou a Kolimá”. Teria “morrido a 20 de dezembro, na barraca nº 11 o campo de trânsito 3/10 de Usvitlag, a seção noroeste de Gulag, entre os kontriki, ou seja, os presos acusados de ‘atividades contrarrevolucionárias’. Tinha 47 anos” (apresentação de Fogo errante).


Fizeram o possível para que ele não fosse contemporâneo de seu país – quando a liderança de seu país, naquele momento, não era, sob certo ponto de vista, contemporânea da ética.
Como lembram Nina e Filipe Guerra, Mandelstam, “como poeta e como pessoa, era contra qualquer derramamento de sangue. E não em teoria: em 1918, em Moscovo, o socialista-revolucionário Bliumkin gabava-se de que tinha nas mãos a vida de muitas pessoas. Mandelstam, indignado, arrebatou-lhe das mãos a lista dos condenados ao fuzilamento e rasgou-as ali mesmo”.
Mandelstam foi traduzido em Portugal, nas coletâneas Fogo errante (Relógio d’Água) e Guarda minha fala para sempre (Assírio & Alvim), este também com textos em prosa e uma apresentação mais alentada. Ambas têm boas traduções – assinadas por Nina e Filipe Guerra –, buscando, na maioria das vezes, pela sonoridade do poeta russo. Além disso, sua preocupação do verso como arquitetura era evidente (assim como em João Cabral). Segundo Krystyna Pomorska, em Formalismo e futurismo, a “tendência de Mandelstam para usar motivos de material arquitetônico (especialmente em seu primeiro volume, Kamén, 1913) e nomes de substâncias duras e sólidas (kámen, zóloto, almáz, pierlamutr – pedra, ouro, diamante, madrepérola)” está “de acordo com o apego dos acmeístas (que veremos mais adiante) à arquitetura tomada como modelo poético”. Vejamos, por exemplo, a bela tradução da primeira estrofe de “Ode à ardósia” (de Fogo errante):

Estrela com estrela – junção verdadeira,
pétreo caminho dum velho cantar,
anel e ferradura, água e pederneira,
língua de pederneira e de ar.
No xisto mole das nuvens o plúmeo
desenho leitoso a ponteiro urdido
não é uma aprendizagem do mundo,
é dum torpor de ovelhas o delírio.


Ou o seguinte poema:

Ainda não morreste, inda não estás sozinho;
A companheirinha-mendiga
No vale magnânimo e com bruma, o frio,
A tempestade – está contigo.

Na pobreza opulenta, miséria poderosa,
Vive tranquilo e consolado.
Benditas são as noites e os dias, e o labor
Do belo-verbo é sem pecado.

Desgraçado é quem de si mesmo é a sombra,
A quem assusta o ladrido,
O vento ceifa. É pobre quem pede esmola à sombra
Meio morto e ferido.

André Vallias, em uma de suas traduções de Mandelstam (publicadas na Errática), revela bem, como nesses poemas acima, a mistura dosada por Mandelstam entre imagens e sonoridade fazendo com que, como lembra Pomorska, ele se torne o poeta russo mais próximo do simbolismo francês, com um “certo afastamento parnasiano, uma tonalidade clássica e uma imagética baseada na mitologia clássica”:

Nem o que é supérfluo falar,
Nada que valha a pena mostrar,
Entristecida e livre de mácula,
A alma escura do animal:

Sem nada que deseje ensinar
Nem nada que soubesse falar,
Nada o golfinho gris ao fundo
Voraz-cinzento do mundo.

Mandesltam influenciou diretamente um poeta antológico do século XX, Paul Celan, que o traduziu. Mandelstam escreveu: “Num momento crítico, o marinheiro lança às águas do mar a garrafa selada com o seu nome e o seu destino. Muitos anos depois, vagueando nas dunas, acho-a na areia, leio o papel [...] O oceano acudiu com a sua força enorme e fez cumprir o destino da garrafa [...] A garrafa é como as poesias, que não são endereçadas a ninguém em especial. Mas ambas têm destinatário: a carta – quem achar por acaso a garrafa na areia, a poesia – um leitor qualquer da futura geração”. Celan escreveu, por sua vez: “O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa, lançada ao mar na convicção – decerto nem sempre muito esperançada – de um dia ir dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também neste sentido os poemas estão a caminho – têm um rumo”.

Um comentário:

  1. A ideia da poesia da recusa de Augusto de Campos, inspirada em Valéry, sempre me pareceu interessante, na medida em que eu contrastava com a ideia da assimetria na arte de Iuri Tinianov, em "O problema da linguagem poética I", no qual o autor afirmava que a arte é assimétrica, pois a escolha do artista por um determinado procedimento - artístico -, implicaria a exclusão de vários outros procedimentos. Neste sentido, a tarefa do artista seria a de evidenciar tal exclusão, por meio de sua escolha: "A arte vive desta interação, desta luta. Se não se percebe a submissão, a deformação de todos outros fatores por obra do fator construtivo, não existe fato artístico". Pois bem, As ideia da recusa e da evidência do fator artístico, em detrimento dos outros fatores, antes me pareciam contrárias, mas hoje, após uma reflexão mais cuidadosa, percebo, que antes de se oporem, elas se complementam, na medida em que ambas se preocupam com as escolhas artísticas como fator preponderante para compreensão do fato artístico e literário.

    Vinícius Santos de Souza.

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