terça-feira, 13 de setembro de 2011

A floresta íngreme de Georg Trakl (II)

Por Nicole Cristofalo e André Dick

É notável a melancolia de Trakl em suas cartas e seus poemas (um intitula-se, apropriadamente, “A melancolia”), direcionada, sobretudo, à irmã, a exemplo, também, de “Resto” (na tradução de André Vallias):

Ó rever-se em êxtase
No outono tardio.
Rosas amarelas
Desfolham no gradil,
Em lágrima escura
Uma grande dor se dissolveu,
Ó irmã,
Tão calmo finda o dourado dia.


Ou em “À irmã” (na tradução de Cláudia Cavalcanti):

Para onde vais será outono e tarde,
Veado azul que sob árvores soa,
Solitário lago na tarde.

Baixo o voo dos pássaros soa,
Sobre teus olhos a melancolia dos arcos,
Teu leve sorriso soa.

Das tuas pálpebras Deus fez arcos.
Estrelas procuram à noite, filha de sexta-feira santa,
Na tua fronte, os arcos.

Também em “Calma e silêncio” (na tradução de Cavalcanti), no dístico final: “Um rapaz radiante / Surge a irmã em outono e negra decomposição”. A irmã de Trakl, apesar de casada, correspondia a problemática relação incestuosa, também dependia de narcóticos (conforme lembra Cavalcanti) e acabou se suicidando também em 1917, aos 25 anos.
Em Estâncias, Giorgio Agamben tenta desenhar – no que remete novamente a Walter Benjamin, em sua Origem do drama barroco alemão – o panorama da melancolia. Para isso, parte de um clássico texto de Freud, “Luto e melancolia”. Nesse ensaio referencial, Freud observa – e algumas ideias são recuperadas por Agamben – que, para algumas pessoas, o luto se dá como reação à perda de alguém querido ou de algum objeto (um livro esquecido na infância, um lugar não mais visitado), ou de alguma abstração (como o “país”, a “liberdade” ou o “ideal de alguém”), e a melancolia age às vezes em razão dos mesmos fatores, com a diferença de que se torna sintomática, da qual o sujeito tem dificuldades de se livrar, vivendo-a continuamente. Porém, Freud se pergunta por que às vezes o sujeito consegue superar a perda de alguém que lhe é estimado, mas nunca consegue se livrar de um sentimento de melancolia. É que, para Freud, o objeto perdido é como um sentimento recalcado, dando-se no inconsciente no sujeito e recaindo sobre o ego, pois a “apresentação (da coisa) inconsciente do objeto foi abandonada pela libido” e, se a libido é abalada, a perda do objeto se transforma na perda do próprio ego, lembrando-se, aqui, que, nas categorias de Lacan, o Imaginário tem muitos elementos daquele.


Em Trakl, o sentimento é de perda completa: não só da estrutura familiar ausente, como também diante desse amor incestuoso. Portanto, ele convive com a melancolia continuamente. Por isso, escreve em “Olhando um velho álbum” (na tradução de Cláudia Cavalcanti):

Sempre voltas, melancolia,
Mansidão da alma solitária.

[...]

Arrepiada sob estrelas de outono,
A cabeça mais baixa a cada ano.

A impressão é que, com essa melancolia, Trakl não se liberta das imagens da infância, nem da floresta que a circunda, como em “Vento quente (na tradução de Cavalcanti): “Profundo o vento em árvores destruídas, / E a figura de lamento da mãe / Vagueia pela floresta solitária” e “O sono”: “Este jardim estranhíssimo / De árvores entardecentes” (na tradução de André Vallias). Temos o poema “Nascer” (na tradução de Vallias) como uma das melhores criações nesse sentido. Segue um fragmento:

Serrania: negruras, silêncio e neve.
Vermelha, da floresta desce a caça;
Ah, os olhares de limo da fera.

Calma materna; sob negros pinheiros
Abrem-se as mãos adormecidas.
Quando surge destruída a lua fria.

Ou como escreve em “Salmo”: “A praça da igreja está escura e
silenciosa, como nos dias de infância”; em “Proximidade da morte”:
“Oh, a tarde, que vai às sombras aldeias da infância. / O lago
sob os salgueiros / Enche-se de suspiros emprestados de melancolia”),
em traduções de Cavalcanti. A poesia de Trakl traz imagens sempre
de um sujeito solitário, mais interessado no crepúsculo do que
no nascer do sol e, por isso, propenso ao universo noturno e
ao gelo das paisagens.


Notável a maneira como Trakl desenvolve essa melancolia, colocando, ao mesmo tempo, cores em seus poemas, como em “Na primavera” (na tradução de Vallias):

Afundou suave, com o passo escuro, a neve;
À sombra da árvore
Pálpebras rosas elevam os amantes.

Segue sempre ao chamado escuro do barqueiro
Estrela e noite;
E os remos batem suave no compasso.

Ante o derrocado muro, floram em breve
As violetas,
Verdeja tão silente a têmpora do solitário.

Ou em “Canto dum melro em cativeiro”, dedicado a Ludwig von Ficker (na tradução de Vallias):

Sopro escuro nos ramos verdes.
Flores azuis circunscrevem o rosto
Do solitário, o passo dourado
Agonizando sob a oliveira.
Esvoaça a noite de asas inebriadas.
Humildade sangra tão suave,
Orvalho esvaindo em gotas de florido espinho.
Compaixão de braços radiantes
Abraça um coração que despedaça.


Em De profundis, são apresentados seus principais poemas, repletos de imagens intensamente expressionistas, calculando o uso das cores (como o azul, que Cláudia Cavalcanti investiga em seu posfácio, próximo ao de Mallarmé, pois significa melancolia e, muitas vezes, escuridão), como vemos no referencial “Sebastião no sonho” (do qual reproduzimos o trecho inicial, na tradução de Cavalcanti, destacando construções diretamente relacionadas a cores, o que não significa que toda a construção não seja pautada por aromas e intensidades):

A mãe teve a criança sob a lua branca,
À sombra da nogueira, do sabugueiro secular,
Embriagada pela seiva da papoula, do lamento do melro;
E silencioso
Sobre elas inclinava-se piedoso um rosto barbado,

Discreto, na escuridão da janela; e velharias
Dos antepassados
Jaziam podres; amor e fantasia outonal.

Escuro o dia do ano, triste infância,
Quando o rapaz desceu às águas frias, peixes prateados,
Quietude e semblante;
Quando petrificado jogou-se aos corcéis em disparada,
E em noite cinzenta sua estrela vinha sobre ele.

Ou quando pela mão fria da mãe
À tardinha passava pelo outonal cemitério de São Pedro;
Um frágil cadáver jazia inerte no escuro da câmara
E erguia sobre este as pálpebras geladas.

Mas ele era um pequeno pássaro em galhos nus,
O sino ao longo do novembro da noite,
O silêncio do pai, dormindo ao descer a espiral crepuscular.

Paz da alma. Noite de inverno solitário,
As escuras sombras dos pastores no velho lago;
Criança na cabana de palha; quão discreta
Baixava o rosto em febre negra.

Noite sagrada.
Ou quando pela bruta mão do pai
Subi em silêncio o sinistro Monte Calvário
E em crepusculares nichos dos rochedos
A figura azul do Homem passava pela sua lenda,
E da ferida sob o coração corria o sangue purpúreo.
Oh, com que leveza erguia-se a cruz na alma sombria.

Amor; quando em recantos escuros derretia a neve,
Uma brisa azul aninhava-se alegre no velho sabugueiro,
Na abóbada de sombras da nogueira;
E à criança aparecia devagar um anjo rosado.

Alegria quando em quartos frios soava uma sonata noturna
Nas vigas de madeira marrom
Uma borboleta azul saía da crisálida prateada.

Oh, a proximidade da morte! Em muro de pedra
Inclinava-se uma cabeça amarela, a criança muda,
Quando naquele mês de março caía a lua.

Róseo sino de Páscoa na abóbada tumular da noite
E as vozes prateadas das estrelas
Fizeram descer da fronte do adormecido uma sombria loucura
[em calafrios.

Oh, tão silencioso um passeio pelo rio azul abaixo
Lembrando o esquecido, quando nos galhos verdes
O melro chamava ao ocaso um desconhecido.

Ou quando pela magra mão do ancião
Passava à noite ante o muro em ruínas da cidade
E aquele de casaco negro levava uma criança rosada,
E à sombra da nogueira aparecia o espírito do mal.

Tatear os verdes degraus do verão. Oh, tão silenciosa
Ruína do jardim no silêncio marrom do outono,
Odor e melancolia do velho sabugueiro,
Quando na sombra de São Sebastião expirava a voz prateada
[do anjo.



Por meio desse jogo de cores e sensações (o frio predomina; como em outros poemas, as sombras compõem o caminho pela floresta íngreme), Trakl é um expressionista simbolista, dialogando sobretudo com Rimbaud (como destaca Cavalcanti). Nesse sentido, Trakl é extremamente pictórico e dialoga tanto com os expressionistas mais luminosos quanto com os expressionistas mais obscuros. Vejamos, ao mesmo tempo, o belo “Verão” (na tradução de André Vallias):

À tarde cala-se o clamor
Do cuco na floresta.
Mais fundo verga o trigo,
Papoula vermelha.

Negra tempestade ameaça
Sobre a colina.
O antigo canto dos grilos
Agoniza no campo.

Não mais se agita a fronde
Da castanheira.
Pela escada espiralada
Farfalha teu vestido.

Silente fulge a vela
No quarto escuro;
Uma mão de prata
A apagou;

Calmaria, noite sem estrelas.
A exemplo do que afirma Michael Hamburger, em A verdade
da poesia:

Como figura literária, Trakl estava longe de ser cosmopolita ou metropolitano. Seu contato com os outros escritores, até mesmo os expressionistas alemães entre os quais os historiadores da literatura o incluem, era raro e marginal, embora sua leitura precoce de Rimbaud e de outros poetas franceses o tenha influenciado a forma de escrever. Se a poesia de Trakl se tornou internacionalmente acessível, de um modo como não sucedeu com os poemas de guerra característicos de Wilfred Owen, Isaac Rosenberg e Siegfried Sassoon, isso se deveu ao fato de sua modernidade derivar mais das tendências estilísticas comuns a muitas literaturas e movimentos diferentes do que de atitudes e experiências.


A poesia de Trakl mostra o recolhimento do próprio autor, por isso é tão representativa de sua vida e de sua morte. Nesse sentido, não parece acertado considerar, como Hamburger, que ela tenha derivado mais de tendências estilísticas (incluída aí o simbolismo) do que das próprias atitudes e experiências. Focalizando um universo que parece à parte, própria de um Imaginário que tenta escapar de qualquer realidade, ainda que com referências esparsas familiares e imagens atormentadas, vividas por Trakl, essa poesia está desiludida com a humanidade – no entanto, não desacredita na cura pessoal, que se faz pela linguagem. Trakl coloca o leitor em sua floresta íngreme particular, transformando sua vida em símbolos carregados de pressentimento de um universo pronto a ser visitado.
Sobre “Sebastião no sonho”, o poeta Rainer Maria Rilke escreveu, em carta a Ludwig von Ficker, em 15 de fevereiro de 1915 (em tradução de Cláudia Cavalcanti):

Nesse meio tempo, recebi o “Sebastião no sonho”, do qual muito já li: comovido, estupefato, cheio de pressentimentos e perplexidade; pois logo se entende que as circunstâncias desse soar ascendente e ressoar descendente foram irremediavelmente únicas, justamente como as que nascem do sonho. Tenho a sensação de que, mesmo para alguém próximo a Trakl, essas perspectivas e visões só aparecem como se através de vidros, como se excluído delas: pois a experiência de Trakl é como uma sucessão de reflexos e preenche todo o seu espaço, inacessível qual o espaço do espelho. (Quem poderá ter sido ele?)

Quem poderá ter sido Trakl?
Nesse sentido, o poema “De profundis” (na tradução de Cavalcanti) sintetiza a obra do poeta, pela construção exata de imagens, o uso de cores e os cenários vazios, cercados pela chuva, por um vento e um pôr do sol melancólico. Ao fim, a aproximação da figura divina e do bosque, sob estrelas – num pântano cheio de lixo – e os anjos cristalinos (que certamente influenciariam Rilke):

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore marrom; ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer

Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.

Na volta
Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.
O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.

Na minha testa pisa metal frio
Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.

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