quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A vanguarda primitiva de Oswald de Andrade (I)

Por André Dick

A Poesia Pau Brasil de Oswald de Andrade era a síntese do contato de Oswald tanto com a vanguarda europeia quanto com Blaise Cendrars, poeta francês, grande amigo seu. Mas não apena isso. Como analisa Benedito Nunes, na obra A utopia antropofágica, “o ideal do Manifesto da Poesia Pau Brasil é conciliar a cultura nativa e a cultura intelectual renovada, a floresta com a escola num composto híbrido que ratificaria a miscigenação ética do povo brasileiro, e que ajustasse, num balanço espontâneo da própria história, ‘o melhor de nossa tradição lírica’ com ‘o melhor de nossa construção moderna’”. É exatamente o que pretendia Oswald em seu texto “A crise da filosofia messiânica”, em que escrevia que a tese era o “homem natural”, a antítese o “homem civilizado” e a síntese o “homem natural tecnizado”.


Foi na primeira metade do ano de 1925 que Oswald aproveitou para rever e preparar a publicação do Pau Brasil, na França. Àquela altura, já estava plenamente acostumado com o universo parisiense. Universo que abrigou tantos outros gênios da poesia, como Rimbaud, Apollinaire, Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e mestres da pintura, entre eles, Picasso, o mestre do Cubismo, apoiado por Apollinaire, criador dos Caligramas.
Acabou por lançar a obra naquele ano mesmo. Ao mesmo tempo que era lançado no Brasil, o livro de poemas era publicado, entre agosto e setembro, pela Editora Au Sans Pareil, por interferência de Cendrars e por um amigo deste, René Hilsum. No catálogo dessa editora, famosa em Paris, Oswald tinha gigantes da vanguarda ao seu lado, entre os quais Apollinaire, Max Jacob, Tristan Tzara, pertencente ao movimento dadaísta, e o próprio Cendrars.
O livro Pau Brasil acabou sendo dedicado “A Blaise Cendrars, por ocasião da descoberta do Brasil”, trazendo uma verdadeira revolução, como prometia seu manifesto, na arte de fazer poemas, desestruturando todas as normas sintáticas, constituindo-se numa espécie de divisor de águas no modernismo da poesia brasileira.


Maria Eugenia Boaventura observa muito bem as transformações empregadas por Oswald através dessa obra, em seu livro O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade, no seguinte trecho:

“Pau Brasil”, “iluminado” por Tarsila e anunciado como “cancioneiro” revolucionou também graficamente. Ilustrações e capa de Tarsila fizeram as vezes de uma coreografia, em parceria perfeita com a ingenuidade e o primitivismo da linguagem Pau Brasil. A ousadia do projeto gráfico, sobretudo, causou espanto e atuou como uma espécie de síntese plástica do livro.

No Rio de Janeiro, o livro de Oswald teve uma ótima acolhida, mas houve quem não gostasse das invenções e atrevimentos propostos pela poesia Pau Brasil. Os críticos mais ferrenhos eram, sem dúvida, Tristão de Athayde e Manuel Bandeira. O primeiro concluía o seguinte sobre o livro de Oswald:

O que pretendeu (...), o sr. Oswald de Andrade e o grupo de seus admiradores, é abolir todo o esforço poético no sentido da lógica da beleza da construção e nadar no instintivo, na bobagem, na mediocridade. Exaltar a vulgaridade. Chegar ao puro balbuciamento infantil. Reproduzir a mentalidade do imbecil, do homem do povo ou do almofadinha dos cafés. Curvar o joelho diante de todos os prosaísmos. Voltar ao bárbaro ou deleitar-se no suburbano.

Por sua vez, Manuel Bandeira ironizou diversas vezes o nome do manifesto e do livro de Oswald, afirmando que não existia mais o Pau-Brasil em nossas terras. Afirmava mais sobre o livro de Oswald: “O seu primitivismo é apenas uma fórmula pindorâmica de um anseio europeu, cuja degeneração foi expressa no dadaísmo francês e no expressionismo alemão”.

 
Bandeira afirma que o programa de Oswald “é ser brasileiro”. E ainda atesta: “Aborreço os poetas que se lembram da nacionalidade quando fazem versos. Eu quero falar do que me der na cabeça. Quero ser eventualmente mistura de turco com sírio-libanês. Quero ter o direito de falar ainda na Grécia”. Bandeira não entendeu a antropofagia que já se manifestava no Manifesto da Poesia Pau Brasil, ao afirmar que o manifesto oswaldiano era “nacionalista”. O mesmo quando afirma que Oswald se faz de futurista e, ao mesmo tempo, escreve, em Memórias sentimentais, “cartas, diálogos e discursos que são um decalque servil de uma realidade cotidianíssima”. E, com um ataque ferino, escreve: “O seu primitivismo consiste em plantar bananeiras e pôr de cócoras embaixo dois ou três negros tirados da Antologia do sr. Blaise Cendrars”. Naturalmente, a visão de Bandeira é muito redutora. Oswald traz o desejo de exportar poesia, como se pudéssemos prover quem é devorado, não no sentido de servirmos ao estrangeiro, mas buscando um diálogo aberto de culturas, nada mais antinacionalista.
Outros nomes, como Mário de Andrade e Paulo Prado, que assina o prefácio do livro, obviamente apoiaram. Alguns, como Carlos Drummond de Andrade, ficaram entre o elogio e a denúncia da pobreza de excessos, ou seja, a tentativa de Oswald realizar uma obra caracterizada não essencialmente pela técnica, mas pelo estilo sintético, cujo encadeamento dos poemas conta com cortes constantes nos versos.
No livro Pau Brasil, Oswald de Andrade está à procura de uma linguagem primitiva, buscada por todas as vanguardas do início do século XX. Daí, a necessidade de Oswald considerar, no Manifesto da Poesia Pau Brasil, que “a poesia está nos fatos”. Como observa Benedito Nunes, “o primitivismo correspondeu ao sobressalto étnico que atingiu o século XX, encurvando a sensibilidade moderna menos na direção da arte primitiva propriamente dita do que no rumo, por essa arte apontado, em decorrência do choque que a sua descoberta produziu na cultura europeia, do ‘pensamento selvagem’ - pensamento mito-poético, que participa da lógica do imaginário, e o que é selvagem por oposição ao pensar cultivado, utilitário e domesticado”.
Condicionado por essa linha de raciocínio, Oswald pende tanto para o primitivismo da natureza psicológica quanto para o primitivismo da forma, que Apollinaire explorou tão bem, em seus memoráveis Caligramas. Ao mesmo tempo, Oswald associa, nos poemas de sua obra, uma exaltação futurista da vida urbana, através do enfoque de grandes meios urbanos, às manifestações de uma nova lírica e de um espírito novo de poesia. Assim, a poesia Pau Brasil realiza uma espécie de “volta ao material”, que coincide com a volta a sentido puro e à inocência construtiva da arte.


A poesia Pau Brasil, consequentemente, possui um estilo sintético como o do Cubismo. A invenção das formas marcam a sua inocência construtiva, materializando-se, como é sua pretensão, expressa no manifesto, “ágil e cândida”, na sua volta ao sentido puro de todas as artes, a uma pureza que está concentrada no fato de reduzir o poema uma condição mais material, onde se privilegia a síntese verbal e a melancolia. Essa melancolia, apurada por Oswald em seus poemas do Pau Brasil, mostra que o artista precisa, novamente recorrendo a preceitos do manifesto, aprender a ver com olhos livres. Isso fica claro no poema “3 de maio”, talvez o mais conhecido dessa obra de Oswald, onde o poeta busca uma aproximação da infância, com sensibilidade e apego:

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi

Ou em “Black-out”, incluído em Cântico dos cânticos para flauta e violão:

Girafas tripulantes
Em paraquedas
A mão do jaburu
Roda a mulher que chora
O leão dá trezentos mil rugidos
Por minuto
O tigre não é mais fera
Nem borboletas
Nem açucenas
A carne apenas
Das anêmonas

O discurso de Oswald se situa, como o de Agamben, num ponto que navega entre a infância e o que resta da infância no universo adulto. Para ele, a filosofia é um jogo de armar, explorando como Benjamin, o universo infantil. O adulto, para Oswald e Agamben, perdeu a magia do rito, da magia, do profanável – sobretudo quando se entrega ao capitalismo (não devemos esquecer que Oswald era um marxista até determinada altura, mas depois, como outros grandes autores, tornou-se crítico de suas premissas). Saindo desse universo, parece restar o juízo final que Agamben enxerga nas fotografias ou na exploração da tragédia, como avalia em “O dia do juízo”: “A fotografia é para mim, de algum modo, o lugar do Juízo Universal; ela representa o mundo assim como aparece no último dia, no Dia da Cólera”; “Graças à objetiva fotográfica, o gesto agora aparece carregado com o peso de uma vida interior; aquela atitude irrelevante, até mesmo boba, compendia e resume em si o sentido de toda uma existência”.
Toda essa remissão à infância é trabalhada com fôlego em Infância e história, em ensaios como “O país dos brinquedos” e “Fábula e história”; em ensaios como “Magia e felicidade”, “Genius” e “Os ajudantes”, de Profanações. Nesse sentido, Oswald, como Agamben, é um filósofo da infância, como se apresentou Benjamin em alguns de seus textos, a exemplo de “Livros infantis antigos e esquecidos”, “História cultural do brinquedo” e “Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra monumental”, os quais o italiano explora e complementa. A infância, afinal, é o início da profanação da linguagem, ou seja, de sua descoberta, principalmente poética. Afinal, diz Agamben, “a linguagem é nossa voz, a nossa linguagem. Como agora falas, isto é a ética”. E a infância, sem dúvida, carrega o sentido de toda uma existência. Por isso, não há como acompanhar a crítica de Tristão de Athayde, quando diz que, em Pau Brasil, Oswald quis “Chegar ao puro balbuciamento infantil. Reproduzir a mentalidade do imbecil, do homem do povo ou do almofadinha dos cafés”.


O que se destaca em Oswald – como Agamben – é sua predileção por uma certa infância da linguagem, ideia extraída não só dos românticos e dos seus sucessores - Benjamin afirmava que o Adão havia sido o primeiro filósofo, e há na sua figura uma representação dessa infância a que Agamben se refere -, que coloca a vida como um jogo entre rito e linguagem. No último texto de Profanações, em que ganha relevo essa visualização benjaminiana, a profanação é vista como uma colocação dessa linguagem em plano comum. Não deixa de ser uma obsessão de Agamben, pois, em Infância e história, ele já recorria a essa infância da linguagem, mesmo no homem adulto. Essa permanência da infância é a mais clara presença da melancolia.
Assim, por meio dessa obra que visualiza a Poesia Pau Brasil destruiu, com talento, parte do academicismo dominante, mesmo após a Semana de Arte Moderna, por meio de um estilo imprevisível àquela época. Era uma poesia ao mesmo tempo primitiva, ácida e bem-humorada. Fazendo referências a outros textos e a situações da história do Brasil, indicava a existência clara de um poeta radical, em busca de uma linguagem adequada ao seu tempo – mas profundamente imbuída em recuperar o passado, na clareza e na objetividade seus maiores atributos. Uma poesia que, como Paulo Prado colocava no prefácio do livro de Oswald, “era obtida em comprimidos, em minutos”. Dividido em nove partes (“História do Brasil”, “Poemas da colonização”, “São Martinho”, “rp 1”, “Carnaval”, “Secretário dos Amantes”, “Postes da Light”, “Roteiro das Minas” e “Lóide brasileiro”), o livro de poemas Pau Brasil já inicia com um exemplo de poesia sintética, “Escapulário”:

No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A poesia
De Cada dia

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