sábado, 21 de janeiro de 2012

Traços da oralidade em Mallarmé (I)

 
Por Nicole Cristofalo

Ao discutir a oralidade, em Linguagem – ritmo e vida, o teórico francês Henri Meschonnic menciona elementos que se relacionam a ela e que justamente a distingue em relação à fala, tais como a escritura, o ritmo e a linguagem ordinária na obra do poeta francês Stéphane Mallarmé, desmistificando a sua aura de poética “incompreensível” e demonstrando que, por meio da ideia da oralidade, é possível realizarmos uma leitura que questione tal crítica.
Segundo Meschonnic: “Assim, podem-se transformar as evidências: Mallarmé. Toda uma modernidade, nos últimos trinta anos, o vê como o extremo do escrito, a própria negação do sujeito e da voz juntos, no livro impossível, no teatro abstrato, e não mais tanto as palavras raras do que a rarefação da linguagem e os brancos do Lance de dados. Essa era apenas uma leitura. O efeito de uma estratégia de escritura. Pode-se ler de outra maneira. Basta conceder o ritmo de outra maneira. Então, um outro Mallarmé, que estava escondido pelo anterior, surge. Um Mallarmé das palavras corriqueiras, do sujeito e da oralidade. O que mostra bem que não há diretamente ‘Mallarmé’, mas uma sequência de relações históricas com Mallarmé”.


Um dos aspectos fundamentais da oralidade é a ideia de escritura. Interessante notar que Meschonnic não procura definir o conceito de escritura, pois afirma que ela própria começa onde cessa o definir, o que nos remete a obra de Mallarmé, tão criticada pelo fato de ser de “difícil acesso”, com suas imagens e significados mal definidos: “nomear um objeto é suprimir três-quartos do prazer do poema, que é feito de adivinhar pouco a pouco: sugerir, eis o sonho”, diria Mallarmé. E continua: “é o perfeito uso desse mistério que constitui o símbolo: evocar pouco a pouco um objeto e extrair dele um estado de alma, por uma série de decifrações”. Encontramos a mesma ideia em Meschonnic, quando ele critica: “a verdade dos nomes substituindo a verdade das coisas”. Podemos, então, pensar a obra do poeta francês como sendo uma escritura, pois esta se realiza quando se cria uma nova oralidade, um novo ritmo, e o que se confirma dentro da afirmação também de Roland Barthes: “sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, (...) mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhum é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura (...) Na escritura múltipla (...) tudo está para ser deslindado, mas nada para ser decifrado; a escritura pode ser seguida, ‘desfiada’ (como se diz da malha de uma meia que escapa) em todas as suas retomadas”.


Difícil pensarmos numa obra moderna que possa ser tão “desfiada” como o poema Un coup de dés, de Mallarmé, além de seus diversos sonetos, que não se fecham num único significado, trazendo inúmeras possibilidades de leitura por meio de suas imagens indefinidas, além da disposição dos caracteres no papel, a sonoridade do poema e até mesmo a sua (falta de) pontuação, todos atuando como elementos de ritmo. Ou seja, os elementos que compõem o ritmo do poema são constituintes de sua escritura. A relação do ritmo e da escritura é extremamente importante, segundo Meschonnic: “Se a escritura é o que acontece quando alguma coisa é feita na linguagem por um sujeito e que jamais havia sido feito assim até aquele momento, então a escritura participa do desconhecido. Ou seja, do ritmo. Ela começa aí onde cessa o saber”. Assim, o crítico situa a escritura no saber do futuro, ainda quando se torna passado, inscrita dentro do ritmo que organiza o discurso e insere o subjetivo, a gestualidade, a corporeidade na linguagem, a qual costuma ser analisada apenas por meio de aspectos linguísticos. Se formos pensar na obra de Mallarmé tendo apenas em mente o conceito de signo, chegaremos à mesma conclusão dos críticos que a enxergam como “ininteligível”. Pensar em Un coup de dés sem termos em mente a ideia de ritmo é deixarmos escapar inúmeras possibilidades de leitura deste poema que influenciou os mais importantes poetas da modernidade.
Segundo Augusto de Campos, “Mallarmé é o inventor de um processo de organização poética cuja significação para a arte da palavra se nos afigura comparável, esteticamente, ao valor musical da série, descoberto por Schoenberg, purificada por Webern, e através da filtração deste, legada aos jovens compositores eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen”.


O ritmo no texto poético é distinto do ritmo que encontramos na música, já que o mesmo, na poesia, não necessariamente possui um intervalo regular. Apesar dos poemas gregos terem sido escritos com base nos intervalos regulares, vemos que ao longo dos séculos esse elemento se enfraqueceu, mas não se perdeu de todo. O ritmo sempre estará presente na poesia, por meio de seus diversos aspectos, levando sempre em consideração a respiração, a entonação da voz, o tempo de leitura, a gestualidade e a disposição de seus caracteres. Mallarmé constrói, por meio deste último aspecto, um ritmo que nunca havia sido concebido: “No ápice de todo um processo evolutivo da poesia, Mallarmé começa por denunciar a falácia e as limitações da linguagem discursiva para anunciar, no Lance de dados, um novo campo de relações e possibilidades do uso da linguagem, para o qual convergem a experiência da música e da pintura e os modernos meios de comunicação, do ‘mosaico do jornal’ ao cinema (ao qual Walter Benjamin atribui, justificadamente, tão grande importância) e às técnicas publicitárias. E assim como a aparente destrutividade da abolição do tonalismo em música (Schoenberg-Webern) e a da figura em artes plásticas (Cubismo-Malievitch-Mondrian) levam a um novo construtivismo, a contestação do verso e da linguagem em Mallarmé, ao mesmo tempo que encerra um capítulo, abre ou entreabre toda uma era para a poesia, acenando com inéditos critérios estruturais e sugerindo a superação do próprio livro como suporte instrumental do poema”, afirma Augusto de Campos.

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