sábado, 21 de janeiro de 2012

Traços da oralidade em Mallarmé (II)

 Por Nicole Cristofalo

Apesar da diferença à qual nos referimos anteriormente entre o ritmo musical e o ritmo poético, Mallarmé relaciona o corpo do poema ao corpo da partitura, onde, além de encontramos contrapontos e fugas, se desenvolve um tema musical principal, com motivos secundários e outros adjacentes, que irão se identificar graficamente por meio dos diferentes tamanhos das letras e formatos dos tipos. Partindo do tema principal: “UN COUP DE DÉS / JAMAIS / N’ABOLIRA / LE HASARD”, os motivos secundários e adjacentes se relacionam entre si possibilitando leituras e interpretações diversas.
Segundo o próprio Mallarmé, no prefácio a Un coup de dés, o poema, com sua “diferença dos caracteres tipográficos entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão oral e a disposição em pauta, média, no alto, embaixo da página, notará o subir ou o descer da entonação”.


O motivo preponderante é a “espinha dorsal” do poema: “UN COUP DE DÉS / JAMAIS / N’ABOLIRA / LE HASARD” (na tradução de Haroldo, “(UM LANCE DE DADOS) / JAMAIS / ABOLIRÁ / O ACASO)”. O primeiro motivo secundário é “SI / C’ÉTAIT / LE NOMBRE / CE SERAIT” (traduzido por Haroldo como “SE / FOSSE / O NÚMERO / SERIA”), tendo como adjacentes os temas “comme si / comme si”. Em seguida, há motivo secundário com vários adjacentes se espalhando pelo poema: “QUAND BIEN MÊME LANCÉ DANS DES CIRCONSTANCES ÉTERNELLES / DU FOND D’UN NAUFRAGE / SOIT / LE MAÎTRE / EXISTÂT-IL / COMMENÇÂT-IL ET CESSÂT-IL / SE CHIFFRÂT-IL / ILLUMINÂT-IL / RIEN / N’AURA EU LIEU / QUE LE LIEU / EXCEPTÉ / PEUT-ÊTRE / UNE CONSTELLATION”, traduzido por Haroldo de Campos como “MESMO QUANDO LANÇADO EM CIRCUNSTÂNCIAS ETERNAS / DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO / SEJA / O MESTRE / EXISTIRIA / COMEÇARIA E CESSARIA / CIFRAR-SE-IA / ILUMINARIA / NADA / TERÁ TIDO LUGAR / SENÃO O LUGAR / EXCETO / TALVEZ / UMA CONSTELAÇÃO”. As demais construções do poema são motivos adjacentes, assinalados pelas letras menores. O preto das letras indica, como nas notas, o som, e o branco, silêncio. As alturas das linhas tipográficas correspondem às linhas de pauta – interessante lembrarmos que Mallarmé também admirava Wagner e o seu poema “L’après-midi d’un faune” foi musicado por Claude Debussy.
Ainda sobre o poema Un coup de dés, Augusto de Campos afirma: “Trata-se, frisamos, de uma utilização funcional dos recursos tipográficos, impotentes, no seu arranjo tradicional, para expressar a nova organização do poema. A própria pontuação se torna aqui desnecessária, uma vez que é o espaço gráfico a pontuação essencial, o elemento ‘negativo’ de uma versificação estrutural que vem fazer caducar o mero linear verso-livre”. Novamente, vemos o poema de Mallarmé se afirmando como escritura, trazendo a criação de um novo ritmo, “uma nova organização do poema”. Torna-se importante relembrarmos a importância que Meschonnic atribui à pontuação e à sua historicidade, apontando os erros cometidos pelos tradutores na tentativa de modernizá-la, acabando por distorcer e colocando a perder o ritmo do texto traduzido. Lembremos que “a oralidade é solidária da historicidade”, e que “a pontuação na poética de um texto é seu gestual, sua oralidade”. É praticamente impossível imaginarmos Un coup de dés estruturado com pontuação, ou mesmo poemas como “Remémoration d’amis belges”, “Petit air I”, “Toute l’âme résumée...”, ou “A la nue accablante tu...” (todos traduzidos por Augusto de Campos, respeitando o ritmo que a pontuação define nos poemas de Mallarmé), onde encontramos apenas o ponto final no último verso do poema, com exceção de “A la nue accablante tu...”.


Neste último, é interessante vermos que a única pontuação que se imprime durante o poema é uma vírgula que divide o quinto e sexto verso, e que se encontra dentro de parênteses: “Quel sepulcral naufrage ( tu / Le sais écume mais y baves)” (“Que sepulcral naufrágio (sabes, / Espuma, se bem que o babes)”, na tradução de Augusto de Campos), como se os parênteses representassem a necessidade de se alterar o ritmo da leitura neste trecho. Ao lermos todo o poema, entendemos que estes versos se distinguem do restante, pois este é o único momento em que se declara uma primeira pessoa.
Mallarmé, ao longo de sua obra, se liberta “progressivamente dos ornatos discursivos, caminha para uma extrema elipse e concisão. Ao mesmo tempo, a fraturação, as interrupções, a descontinuidade da linguagem, que vão triturando a sintaxe e exigindo novas técnicas, desde a pontuação, reduzida ao mínimo ou mesmo abolida (com ressalva dos parênteses necessários para as interseções de vários planos linguísticos), até os arquipélagos-constelações de substantivos (‘Solitude, recife, estrela’; ‘Noite demência e pedraria’)”. Esta afirmação de Augusto de Campos é essencial para entendermos, resumidamente, o que ocorre na obra de Mallarmé, e que tais características não a tornam “inteligível”, mas, sim, transformam o seu ritmo.
Lendo a obra de Mallarmé, encontramos a linguagem ordinária que, nas palavras de Meschonnic, traz a “prosa do cotidiano”, e não necessariamente se realiza dentro de um “enunciado fácil”, com termos e estruturas simples.



Ou seja, Mallarmé trabalha a linguagem ordinária trazendo elementos novos, criando um novo ritmo, mas que não torna o discurso incompreensível, ou afastado do cotidiano. Como afirma Barthes, em A preparação do romance II, Mallarmé trabalha com dois estados da língua: “estado bruto ou imediato” – que mistura dados da fala e da escrita – e “estado essencial”, que seria o “estado absolutamente literário da escrita”. Apesar de esta definição conflitar com o que afirmamos a respeito da oralidade neste trabalho, pois nela se confunde o oral com a fala, podemos entender que Barthes se refere às distintas oralidades que encontramos em Mallarmé, incluindo a que se relaciona mais intimamente à linguagem ordinária. No poema “Sainte”, em que Mallarmé evoca Santa Cecília, por exemplo, há “um entendimento do mundo como horizonte dos vários gestos da consciência – e da consciência criadora em particular – substancialmente diversa da ontologia metafísica e/ou da pretensão neokantiana de descrição do conhecimento fora da problemática do ser”, na afirmação de José Guilherme Merquior.
“Fizeram-nos acreditar que ler era algo interno. Assim, o leitor não lê, ele é lido.” Talvez, por conta desta afirmação de Meschonnic, os leitores não encontrem em Mallarmé a oralidade, o seu ritmo único, feito da música e do silêncio inscritos na escritura, abertos aos símbolos e às imagens vindas da linguagem ordinária, esperando que sejam lidas e relidas, cada vez refletindo um novo ritmo de leitura que atravesse os seus significados sempre indefiníveis. Lembra Augusto de Campos o escrito de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa: “Entretanto, meu caro, tão estranhos e incompreensíveis são muitos dos sonetos admiráveis de Mallarmé. E nós compreendemo-los”.

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