domingo, 21 de março de 2010

Sá-Carneiro e Pessoa: reis de toda esta incoerência (II)

Por André Dick

Como observa Fernando Paixão, um dos maiores estudiosos do poeta português no Brasil, Sá-Carneiro é o “poeta das sensações”, “voltado para a construção de um eu-lírico que oscila entre um plano idealizado e, em contraposição, a adversidade do mundo real” – entre o Imaginário, o Simbólico e o resíduo do real. É um poeta com traços claros do Simbolismo, uma vez que gosta de lidar com pensamentos de uma maneira peculiar e distorcida, procurando a essência do ser humano, a purificação, por meio da qual o espírito atinge o espaço infinito, na busca do vago, do sonho e da loucura, típica de quem está tentando chegar ao limite. Nesse sentido, também o movimento do Paulismo, elaborado por Pessoa e presente em poemas seus, como “Impressões do crepúsculo” e “Chuva oblíqua”, é quase uma extensão do Simbolismo.


Leiamos, abaixo, a estrofe final do antológico poema “Álcool”, título que sintetiza a embriaguez em que se encontra o espírito de Sá-Carneiro, que parece querer se transbordar:

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
E só de mim que ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Essa estrofe, onde há um duelo entre drogas (ópio, morfina e álcool), estados orgânicos (loucura e sanidade) e cores, representadas pela manhã e noite, é recuperada por Álvaro de Campos, no poema “Opiário”, feito em homenagem a Sá-Carneiro, mais especificamente nas 1ª, 8ª e 15ª estrofes colocadas em ordem, abaixo:

É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me um tédio.

Assim como as sensações de Mário de Sá-Carneiro são trabalhadas com minúcia e personalidade, as de Álvaro de Campos não ficam atrás, representando o sentimento de dor, decepção e vida sem saída, por meio de versos fortes, como “Sou um convalescente do Momento / Moro no rés-do-chão do pensamento / E ver passar a Vida faz-me um tédio.” Nesses versos, encontram-se muitas características perceptíveis nos poemas de Sá-Carneiro, sobretudo a subjetividade do poeta, que mobiliza uma imaginação voltada para o vazio da alma – no sentido lacaniano, da inconsciência –, para o além, na esperança de encontrar outra realidade, seja através de drogas, seja através de delírios literários. A busca de outro lugar parece ser o objetivo tanto de Sá-Carneiro quanto de Álvaro de Campos.
Outro poema de Sá-Carneiro, “Estátua Falsa”, deixa transparecer uma ligação entre o Simbolismo e o Futurismo:

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Descem na minh’alma veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

A presença do simbolismo fica evidente no trabalho com os sentidos, com o tato das cores (“ouro falso”, “olhos se douram”, “esfinge sem mistério no poente”, “gomos de luz em treva”, “sombras”) e com a musicalidade dos versos, tão sugerida por Paul Verlaine (“A música acima de tudo”, costumava dizer ele), enquanto o Futurismo, lançado por Marinetti em 1909, se evidencia no sentimento revoltado, muito à frente do romântico, dos seguintes versos: “Já não estremeço em face do segredo; / Nada me aloira já, nada me aterra: / A vida corre sobre mim em guerra, / E nem sequer um arrepio de medo!”. Sá-Carneiro, desta vez, entra em combate com sua própria dor, ignorando o medo e a morte, daí sua poesia ser tão extremista.


O Paulismo de Pessoa também fica claro dentro desse panorama de dor que Sá-Carneiro traça em seus versos. O poema de Pessoa “Impressões do crepúsculo”, por exemplo, possui versos que certamente influenciaram Sá-Carneiro:

Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro...
Dobre o longínquo de Outros sinos...Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente...Corre um frio carnal por minh’alma...
Tão sempre a mesma, a Hora! Balouçar de cimos de palma!...

Essa sensação de vazio transmitida pelos versos de Sá-Carneiro e Pessoa são absolutamente comuns nos poemas de Álvaro de Campos, a face mais belicosa de Pessoa, como “Grandes são os desertos...”, onde se lê:

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Outro poema que pode exemplificar essa ligação estética entre Sá-Carneiro e Álvaro de Campos é o interessante “Apontamento”. Seus primeiros versos podem ser lidos abaixo:

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Como escreve Leyla Perrone-Moisés, “os melhores poemas de Sá-Carneiro assemelham-se aos de Pessoa, pela temática da perda do ‘eu’”.


“Bicarbonato de soda” também comprova essa ligação, como pode se comprovar nos seguintes versos, em que o estado de alma ganha traços enigmáticos:

Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao pôr-do-sol do esforço...

A semelhança de estilo entre os dois, no entanto, fica explícita nos poemas futuristas “Manucure” e “Apoteose”, já citados neste trabalho. Compostos em 1915, inspirados na vanguarda que se manifestava cada vez com maior força e nos poemas de Álvaro de Campos, sobretudo “Ode marítima” e “Ode triunfal”, trata-se de dois poemas com grau de modernidade insuperável, apresentando inovações gráficas (letreiros, palavras dispostas no melhor estilo de Guillaume Apollinaire, dos antológicos caligramas, no verso solto “É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe...!”, de “Manucure”, números soltos, nomes de jornais e artistas daquele período, anúncios, marcas, representações de sons de máquinas), numa enxurrada de efeitos que remetem o leitor ao poema “semiótico” mais conhecido e debatido do século passado, Un coup de dés, escrito por Stéphane Mallarmé.
O espírito vanguardista é a melhor característica desses poemas de Sá-Carneiro, não só pelos atrevimentos visuais. Versos com uma consciência excepcional, diante de um novo horizonte que, então, o século XX já oferecia, como estes abaixo, de “Manucure”, se destacam em qualquer antologia da modernidade:

Meus olhos ungidos de Novo,
Sim! – meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
Não param de fremir, de sorver, e faiscar

Sá-Carneiro, porém, ao contrário dos heterônimos de Fernando Pessoa, existia realmente e com ele todos os sofrimentos que um poeta trágico pode ter – sobretudo na falha tentativa de conviver com o Imaginário e o Simbólico. Enquanto Pessoa conseguiu se multidividir em várias personas, Sá-Carneiro sucumbiu ao próprio e ferino dualismo com o qual não conseguiu viver. Seu destino foi trágico: suicidou-se no Hotel Nice de Paris, tomando uma dose fatal de estricnina, aos 26 anos de idade, quando sua linguagem se dirigia à plenitude, ao estágio mais alto de literatura, deixando a poesia para trás, como Rimbaud fez ao partir para a África.
Assim como é necessário admirar Fernando Pessoa e seus heterônimos, é indispensável notar que Sá-Carneiro tem influência básica no desenvolvimento da poesia portuguesa durante a Modernidade. Sua história não está reduzida ao fato de ter trocado cartas com Pessoa ou ter cometido suicídio no auge da juventude e inspiração poética. Ele foi o “rei de toda esta incoerência”, como deixa claro no poema “A queda”, ao lado de todos os reis que conhecemos muito bem.

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