domingo, 21 de março de 2010

Sá-Carneiro e Pessoa: reis de toda esta incoerência (I)

Por André Dick

O poeta português Fernando Pessoa, nascido em Lisboa, em 1888, e responsável pelas personas – seus conhecidos heterônimos – mais conhecidas do universo literário (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares), ao se dedicar à poesia, não enlouqueceu: nos deu suas incursões em poemas. Segundo a crítica literária Leyla Perrone-Moisés, em seu estudo Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro, baseada na psicanálise de Jacques Lacan, o Imaginário do poeta – que representa a necessidade de o indivíduo lidar com determinados traços em sua poesia: conceitos, temas, palavras, todas vindas de seu inconsciente que, estruturado como uma linguagem, o constitui como escritor – “é terrivelmente verdadeiro, na medida em que nele fala o desejo, na medida em que, nele, o real se transveste e se desvenda”. Nesse sentido, o poeta, ao transitar entre o Imaginário e o Simbólico – o Imaginário simbolizado –, faz com que o seu “único real” seja “seu texto; é neste que um simulacro de sujeito se tece, revelando, por uma prática extrema de linguagem, que todo sujeito é uma ficção”.


Cada vez mais se percebe que Pessoa representa a legitimização do pensamento de que a poesia é resultado de uma passagem pela crítica, não estritamente a teórica, mas aquela que carrega reflexão suficiente para saber das suas qualidades e defeitos, falhas e virtudes e, sobretudo, de seu fracasso – de que todo sujeito, pleno, clássico, é uma ficção. Diante da questão levantada por Pessoa e seus heterônimos, Roland Barthes tem razão quando escreve: “O que a escrita exige [...] é que ela sacrifique um pouco de seu Imaginário, e que assegure, assim, através de sua língua, a assunção de um pouco de real”. Por isso, segundo Barthes, a escritura é exatamente uma “atividade estranha [...] que estanca milagrosamente a hemorragia do Imaginário”, o qual, como ele aponta, se dá em seu grau pleno quando o autor escreve tudo o que quer a seu respeito, inclusive o que é embaraçoso, no limite com o Simbólico – e, no caso de Pessoa, com suas personas. É preciso a escritura, o Simbólico, para obter o controle sobre esse Imaginário – ou dispersá-lo ainda mais.
Mas o próprio Imaginário, depois de constituído, por meio de diversas leituras e releituras e de transposições autorais, não seria também um sistema consciente, lúcido, da personalidade humana? Até que ponto o autor não sabe que está escrevendo um texto numa determinada linha, guiado por parâmetros, nos quais se insere e faz a comparação de sua obra com outras, que definem seu Imaginário? Afinal, o Imaginário não seria a “linguagem pela qual o enunciador de um discurso (entidade puramente linguística) ‘preenche’ o sujeito da enunciação (entidade psicológica ou ideológica)”? Não haveria sujeito da enunciação mesmo dentro da linguagem e do Imaginário? Não para Barthes, pois para ele os diversos imaginários que existem são filtrados apenas pela escritura, e quem as escreve é um “ser de papel”, fora da realidade – mesmo que ele exista também como persona literária.
O poeta e crítico mexicano Octavio Paz escreveu, num ensaio sobre Fernando Pessoa, que os poetas não têm biografia e que sua obra é sua biografia. No entanto, não podemos desconsiderar que o Imaginário seja composto também pelas leituras e contatos que o sujeito teve no assim chamado “mundo real”, no caso de Pessoa, “externo à linguagem literária”. É este Imaginário (Eu Ideal) que dará origem ao Simbólico (Ideal do Eu). Os dois estão interligados através da subjetividade do poeta, no caso de Fernando Pessoa em suas outras facetas. Todas as suas criações são intermediadas por figuras imaginárias, que ele, como escritor, procura transformar em texto.
A partir disso, devemos lembrar que Fernando Pessoa, em sua recriação do inconsciente, tinha verdadeira admiração por Mário de Sá-Carneiro, não só por sua obra poética, mas também por sua amizade, tanto que o homenageia, de forma especial, em dois poemas: um quando o amigo ainda era vivo, intitulado “Opiário”, que será visto mais adiante, pertencente à obra futurista de seu heterônimo Álvaro de Campos, e outro lembrando sua morte, chamado Sá-Carneiro, com os versos “Hoje, falho de ti, sou dois a sós”, que dão a exata dimensão da proximidade que tinha com o “esfinge gorda” – e que povoava o seu Imaginário.
Era bastante profunda a ligação entre os dois, sobretudo por meio de correspondências, onde podiam ser encontradas muitas revelações surpreendentes, e projetos artísticos (como a revista modernista Orpheu).


Nascido em Lisboa, a 19 de maio de 1890, sendo, portanto, da mesma geração de Pound, Joyce, Kafka, Oswald de Andrade, um dos pais do Modernismo Brasileiro e, claro, de Fernando Pessoa, nascido dois anos antes, na mesma cidade, Sá-Carneiro talvez seja, no Brasil, o menos conhecido de todos, o que não tira o brilho de sua obra poética. Ele perdeu a mãe cedo, em 1892, e logo aos l7 anos foi para a França, com o objetivo inicial de estudar Direito, o que era absolutamente comum no período. Aluno brilhantemente precoce, como Rimbaud, que fugiu incontáveis vezes de sua cidadezinha natal, Charleroi, Sá-Carneiro manteve com Pessoa uma ligação acima de tudo existencial, que nos remete àquela entre Rimbaud e Paul Verlaine na Paris de alguns anos antes (e poetas como o francês Guillaume Apollinaire e o italiano Giuseppe Ungaretti, por exemplo, vieram mais ou menos na mesma época de Sá-Carneiro morar na capital da França, quando cresciam os movimentos de vanguarda).
Sá-Carneiro tem participação tão importante no progresso literário do Modernismo português quanto Pessoa, mas, ao contrário deste, costuma ser esquecido. A construção de seus poemas, com a mesma agudeza de Rimbaud, onde se inclui um corte de verso preciso, tessituras sonoras inteligentes e ritmo fluente, não é fácil de ser encontrada. Em muitos aspectos, acaba superando o próprio Pessoa, cujo estilo é mais explosivo e intuitivo, buscando uma união entre pensamento filosófico e sensibilidade poética.


A poesia de Sá-Carneiro está situada entre dois extremos: a morte e a vida. Seus poemas reúnem sentimentos beirando uma lâmina que divide essas duas extremidades. E isto com tal força que não se nota nem na poesia de Pessoa e de seus heterônimos. Enquanto o projeto estético de Pessoa foi se multidividir, o de Sá-Carneiro foi banir qualquer tipo de esperança de uma vida comum, ou seja, do cotidiano, selecionando o amargo e o irônico, como Cesário Verde. No entanto, como escreve Leyla Perrone-Moisés, a crise de Sá-Carneiro, “mesmo em sua melhor expressão literária, permaneceu no terreno psicológico individual. Como uma mosca presa entre dois vidros, ele buscou uma saída impossível entre o ‘eu’ e o ‘ideal do eu’”, o que fez com que não conseguisse equilibrar, em sua vida existencial, o Imaginário e o Simbólico.
Em seus melhores poemas, Sá-Carneiro superou Pessoa – mesmo quando influenciado por ele. Escritos como “Manucure” e “Apoteose”, feitos por Sá-Carneiro em 1915, são inspirados claramente no Futurismo de Filippo Tommaso Marinetti e de Álvaro de Campos, o heterônimo futurista de Pessoa, um homem totalmente adaptado às transformações do século XX, das fábricas, das máquinas e da velocidade, para quem “a alma humana é um abismo”, trabalhando com inovações gráficas e ideias surrealistas, dando “vida verbal” ao som das máquinas e tornando a página em si um elemento vivo do texto – o que muitos queriam ter feito a partir de Mallarmé. Segundo Pessoa, Campos nasceu no mesmo ano do amigo, 1890, sendo um tipo que não consegue se adaptar às condutas sociais, ficando eternamente deslocado.


A obra de Sá-Carneiro, no entanto, não se enquadra facilmente dentro de um determinado movimento estético. Ela marca um aproveitamento de ideias do Simbolismo em contato, forte e contundente, com todas as vanguardas existentes no início do século XX, quando o mundo literário tinha como centro Paris, onde se davam os novos rumos estéticos que as artes adotavam. A primeira exibição de cinema havia acontecido numa noite chuvosa de 1895, atraindo centenas de pessoas na enigmática Paris; as indústrias e suas máquinas se fortaleciam; os cafés e boulevards eram os grandes pontos de encontro dos poetas e artistas, aqueles que antecipavam o novo em suas obras; as pinturas ganhavam novas formas de expressão e estilo; em suma, os tempos eram outros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário