domingo, 23 de maio de 2010

Herberto Helder: arte da melancolia e do instinto

Por André Dick

No início do século XX, surgia em Portugal uma rara geração de poetas, tendo à frente Fernando Pessoa (1888-1935) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). Falar de ambos ajuda a sintetizar a modernidade da língua poética portuguesa: eles se encaixam perfeitamente na visão que Walter Benjamin tinha da modernidade: uma “paisagem em ruínas”, a qual cada um tentou adaptar em seu cotidiano. Sua escrita não era artificial, e talvez por isso nenhum deles tenha suportado a realidade – apesar de não conseguirem viver sem ela. Sá-Carneiro escreveu versos como esses, de “Além-tédio”:

Nada me expira já, nada me vive –
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim d’alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Ou de “Quase”:

De tudo houve um começo... e tudo errou...
– Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou.


Esses versos podem sintetizar a melancolia do poeta sobre o qual Pessoa escreveu depois de sua morte: “Hoje, falho de ti, sou dois, a sós”. Pessoa, incapaz de conviver consigo mesmo, com um forte traço melancólico, partiu para a despersonalização: criou os heterônimos Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos (depois, descobriu-se ainda Bernardo Soares). Escreveu, em “Tabacaria”: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Mais prosaico do que Sá-Carneiro – o poeta de língua portuguesa que melhor leu Rimbaud e Mallarmé –, Pessoa escreveu muitos versos sob a influência do amigo morto. O belo “Apontamento” é um dos exemplos mais evidentes: “A minha alma se partiu como um vaso vazio. / Caiu pela escada excessivamente abaixo. / Caiu das mãos da criada descuidada. / Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso”. Ou em “Lisbon revisited”: “Não me venham com conclusões! / A única conclusão é morrer”. Em “Fresta”: “Em meus momentos escuros / Em que em mim não há ninguém, / E tudo é névoas e muros / Quanto a vida dá ou tem”. Ou o réquiem do melancólico: “Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma”, dos “Poemas inconjuntos”. E, ainda, no definitivo “Opiário”, feito para Sá-Carneiro: “É por um mecanismo de desastres, / Uma engrenagem com volantes falsos, / Que passo entre visões de cadafalsos / Num jardim onde há flores no ar, sem hastes”.


Em Portugal, atualmente, quem aprofunda a linha melancólica é Herberto Helder, nascido em 1930, sem dúvida um dos melhores poetas do mundo na atualidade e que teve sua obra completa, até 2006, lançada no Brasil pela editora Girafa, com o título Ou o poema contínuo. Com um estilo que mescla traços do simbolismo e do surrealismo, mas sob uma ótica contemporânea, Helder trabalha sobre imagens que buscam a negatividade dos objetos (mas também a sua sensibilidade), lidando com a ideia de que a natureza e a humanidade se completam ou se destroem, com um ritmo e um corte de versos precisos. Para Benjamin, “Toda a sabedoria do melancólico vem do abismo; ele deriva da imersão na vida das coisas criadas, e nada deve às vozes da Revelação. Tudo que é saturnino remete às profundezas da terra... O olhar voltado para o chão caracteriza o saturnino, que perfura o sol com seus olhos”. Para Benjamin, a mudez é disposição fundamentalmente melancólica. Helder segue esse caminho:

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até o cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.


A imagem da mão que escreve a melancolia e dos dedos que compõem o silêncio todo branco é definidora desse poeta. O silêncio e a contenção do corpo se repetem ao longo dos poemas: “A toda a velocidade, em silêncio, no mapa – / como se descobre uma letra / de outra cor no meio das folhas, / estremecendo nos ulmos, em silêncio. Gota / sombria num girassol – / essa letra, essa cidade em silêncio, / batendo como sangue”. Para Mária Lúcia Dal Farra – na introdução de O corpo o luxo a obra, antologia de Helder publicada pela Iluminuras –,e fica claro nesse fragmento, na poesia de Helder, “as fagulhas que as palavras exalam saltam, simultâneas, com tanta intensidade, que a linguagem se deixa arder no ato de leitura – chamas mantidas e sustentadas à custa da nossa própria respiração de leitor”. Dal Farra também aproxima o imaginário de Helder ao cinema, com sua “movimentação, retardo, aceleração de imagens, montagem e outros recursos mais”. Parece pertinente constatar que essa fuga à estagnação – os poemas de Helder têm um ritmo que cresce pouco a pouco, por meio do encadeamento sucessivo de versos – esconde um sujeito recluso. E, mais do que apresentar uma agilidade artesanal, Helder é extremamente sensível, e toca o leitor com imagens: “As crianças criam. São esses os espaços / onde nascem as suas árvores”; por isso, se autodescreve:

Sou alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.


Atentemos para o “silêncio estrutural das flores”, “a mesa por baixo. / A sonhar”, a “cadeira congeminando-se na bacia”. Esses elementos se correspondem, a todo o momento, com o corpo que Helder tenta descrever. Como melancólico, ele cultiva o passado: “Há sempre uma noite terrível para quem se despede / do esquecimento”. Ou o poema “A bicicleta pela lua adentro”, em que ele lembra a mãe:

Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem.
Era pesada, ao colo, cheia de neve.
Ia dizendo o teu nome de janeiro.
Enxofre – mãe – era o teu nome.
As letras cresciam em torno da terra,
as telhas vergavam ao peso
do que me lembro. Começo a lembrar-me:
era o atum negro do teu nome,
nos meus braços como neve de janeiro.


Também existe em seu trabalho a tentativa de desaparecer existencialmente, o que se encaixa na reclusão: “Os lençóis brilham como seu eu tivesse tomado veneno”. Assim como sempre dispõe, em seus versos, a presença da morte: “As águas encharcaram a roupa até o sono. / E a música ultramarina através dos meses em búzio. / É a experiência da morte nas imagens”. Ou: “A arte íngreme que pratico escondido no sono pratica-se / em si mesma. A morte serve-a / Serve-se dela. Arte da melancolia e do instinto”. Além da lembrança de um passado primordial, voltado a uma respiração primitiva: “Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho”. Até a beleza daquilo que Helder melhor sabe delinear – a paisagem repleta de pedras e flores, sob o sentido do pensamento e do corpo que se abre ao cheiro, repleto de melancolia e instinto:

O canteiro cheira à pedra. Da rosa cavada nela cheirará,
por dedos e pensamento,
à obra? Abre uma coroa. A pedra fecha-se
na sua teia de água. Com tantos martelos secos,
com tanta idade louca, com tanta pedra
inteligente, com tanta mão aluada – o canteiro desentranha
outra mão: - A mão do nervo
da pedra, rosa
assustadora:
que desentranha a prumo forte, em ebriedade
e inclinação de lua. Enxofre, sal, rosa
potente. – O canteiro é a sua
rosa, a sua
obra
desabrochada.

Pela própria tradição em que Helberto Helder se insere – dessa melancolia dupla, Portugal e Brasil – é a própria melancolia (e a náusea de outro certo melancólico) que nasce da rosa.

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