quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Cada poema, um silêncio

Por André Dick

Um dos remanescentes da era do terror nazista, o poeta Paul Celan está ligado exatamente à experiência do Holocausto. É possível que, para alguns, a poesia de Celan só possa ser entendida a partir desse marco histórico. Mas ela também pode ser entendida sob outro ponto de vista. Isso porque, sendo um judeu nascido na Romênia, Paul Anczel (Celan vem desse sobrenome), mesmo com a dor de ter perdido seus pais nos campos de extermínio em 1942 e ficado num campo de trabalhos forçados até o fim de 1943, conseguiu, entre várias jornadas, ir para a França, onde formou-se em Letras. Suas leituras, como deixa claro seu trabalho como tradutor, vão de Hoelderlin, passando por George Trakl e Rimbaud, e muitos russos (sobretudo Mandelstam).


Vendo sua trajetória, o tom autobiográfico ou memorialístico dado à poesia de Celan é, ao que muitos estudos indicam, redutor. Embaixo de camadas de referência, diretas ou indiretas, ao desastre familiar, Celan, como Mallarmé – a partir do qual o primeiro dizia que se deveria dar o passo adiante – queria desaparecer em meio às palavras. Nesse sentido, a poesia de Celan – embora pareça tão somente histórica – é profundamente aistórica.
Aristóteles, em sua Poética, já julgava a superioridade da poesia em relação à história, pois esta era específica. A poesia de Celan não representa nenhum tempo específico. Ela é aistórica, como o acontecimento de Auschwitz. Não é preciso ter sido contemporâneo do Holocausto ou saber dos rumos da II Guerra Mundial para entender a profunda dor da alma de Celan, que existe também dessa releitura da experiência, mas nela não se interrompe. De qualquer modo, a poesia deve buscar explicação também na história, no que a ergueu: a aistoricidade, portanto, se abriga na história. E isso é o que mais abala em seu contínuo tom de desintegração. Porque se fosse apenas o retrato de um tempo que passou, talvez passasse também, para aliviar o pensamento humano. Porém, a poesia de Celan não passa – nesse sentido, ela não perdoa. Celan é mais trágico que Mallarmé na medida em que ao francês ainda impressionava a página em branco, a harmonia das palavras em um poema como Un coup de dés, enquanto Celan compreende que a palavra existe sim, mas é retrato de uma força quebrada e fazer poemas é como jogar garrafas ao mar, ou seja, não há mais plateia – não importa se antes ou depois de Auschwitz, já que se trata de uma postura estética. No entanto, continua sendo uma força, uma parede, uma resistência. Por isso, a sonoridade abafada de Celan: sem rimas, sem aliterações, sem ritmo musical.


Como João Cabral, também nascido em 1920 (Modesto Carone aproximou o poeta alemão do poeta pernambucano no seu estudo A poética do silêncio), ele enxerga vida pulsante nas pedras (como escreveu Gerard de Nerval: “Uma alma pura jaz sob a casca das pedras”, em tradução de Augusto de Campos). Não trabalhando com metros fixos, constrói seus poemas através de uma respiração presa. Sua liberdade na quebra dos versos é permanente, mas não é um jogo formal: ele quebra para desfazer as palavras e não para dotá-las de outro ritmo; percebe-se que há uma síntese, um domínio especial em cada verso, e que isto custou trabalho. Ao mesmo tempo, nesse domínio, não há espaço para o experimentalismo exagerado: cada poema de Celan lembra uma ferida aberta que a palavra tentará estancar. Recuperando o silêncio que traz o ser humano em sua incerteza de esperança, os poemas de Celan estabelecem uma determinada palidez que só os retratos e os escritos atemporais podem trazer.
Peguemos um livro como A morte é uma flor, com poemas não aproveitados pelo autor em seus livros. Mesmo de alto nível, não passaram pelo crivo de Celan, tão exigente quanto João Cabral – e próximo da “ética da recusa” de Valéry. Do poeta brasileiro, Celan se aproximava até nas reflexões: “O que importa para essa linguagem... é a precisão. Ela não transfigura, ela não ‘poetiza’, ela nomeia e compõe, ela tenta delimitar a esfera do oferecido e do possível” (extraído do ensaio “A poesia do exílio”, de Paul Auster, A arte da fome). Difícil não lembrar do verso cabralino: “sem poetizar o poema”. Nesse ponto, Celan destaca a linguística de sua poética. Um poeta que, como lembra George Steiner, dizia que nunca foi capaz de “inventar nada”, conseguiu recriar, por meio da memória e das palavras, o sentido da sua experiência. Nessa impotência para a imaginação – como percebe Paul Auster no artigo do qual se extraiu a declaração acima –, não havia, porém, espaço para uma simples produção da realidade, mas para uma reprodução imaginária e sensível, na qual se localizavam os temores de Celan.


Trabalho contínuo, pois a poesia de Celan, prolongando o pensamento de sua aistoricidade, não existe apenas em razão da perda dos pais, do acontecimento terrível do assassinato em massa dos judeus, mas também em razão de suas leituras (de poetas russos e franceses, sobretudo). E as leituras, o conhecimento, ajudam a estruturar o sujeito. Ou seja, é tão incorreto dizer que sua poesia existiria sem a morte de seus pais quanto dizer que tudo em sua poesia depende apenas de sua experiência de vida, de que é uma poesia basicamente ligada à história, a datas. Quando Celan escreve, é como se ele desaparecesse e desse lugar à palavra do Outro, que se ergue por trás de suas leituras. Num pronunciamento, ele revela: “O poema quer ir ao encontro de um Outro, precisa desse Outro, de um interlocutor”. É o Outro que lhe interessa, e sua poesia não existiria sem o “tu”, recorrente em diversos poemas. Cada poema de Celan é como se fosse o pedaço de um reencontro com seus pais –um reenocntro também com a tradição na qual se insere, por intermédio do poema. Ele, por vezes, parece apenas dar silêncio à dor alheia – e nisso mora sua grande qualidade como artista. Num poema como “Grão-de-lobo”, no qual relembra a mãe: “Mãe, eles ficam calados. / Mães, eles consentem que / a ignomínia me difame. / Mãe, ninguém / cala a boca aos assassinos. / / Mãe, eles escrevem poemas. / Oh, / mãe, quanto / chão do mais estranho dá o teu fruto!”. E assinala: “Ontem / veio um deles e / matou-te / outra vez no / meu poema”. Ou no poema que lembra do pai: “NO MEU JOELHO DESFEITO POR UMA BALA, / ali estava ele, o meu pai, / / grande, / mais do que a morte, estava / ali, / / Michailowka e / o cerejal à sua volta: / / eu sabia que isto / ia acontecer, disse ele”. O poema como o transtorno de seu momento, de sua memória - mas que se intensifica para fora da história, tornando-se um momento único, que não se repete.


George Steiner pergunta-se como Celan pode ter escrito na língua dos assassinos de seus pais. É uma escolha sutil de Celan: sabendo separar a língua com a qual se criou daqueles que a usaram para cometer atrocidades, como diz Barthes: “A língua vem antes da língua”. E, não escrevendo em alemão, Celan perderia de vez toda sua identidade. Escrever na língua dos assassinos de seus pais faria com que as pessoas dessa língua sentissem a mesma dor que ele sentiu, pois seu objetivo não é o ódio – isso ele já tenta abafar – e sim o perdão. O próprio poeta assim se pronuncia em "O meridiano", de sua Arte poética: “No meio de tantas perdas, uma coisa permaneceu acessível, próxima e salva – a língua. Sim, apesar de tudo, ela, a língua, permaneceu a salvo. Mas depois de atravessar o seu próprio vazio de respostas, o terrível emudecimento, as mil trevas de um discurso letal. Ela fez uma travessia e não gastou uma palavra com o que aconteceu, mas atravessou esses acontecimentos. Fez a travessia e pôde reemergir ‘enriquecida’ com tudo isso”. É uma bela imagem que constrói Celan: a de a língua atravessar "as mil trevas de um discurso letal". Para completar, escreve: “Nesses anos e nos seguintes tentei escrever poemas nesta língua: para falar, para me orientar, para saber onde me encontrava e onde isso iria me levar, para o meu projeto de realidade”. Pois o projeto possível de realidade de Celan não era simplesmente histórico.


Celan não deseja ficar na história porque sabe que seu discurso, poético, está à margem dela. Como assinala Auster, a preocupação dele com o Holocausto transcende essa posição puramente histórica. É, sim, o “momento primal, a primeira causa e o efeito de toda uma cosmologia”, uma vez que Celan é um poeta essencialmente religioso. Auster, com isso, observa que Celan, apesar de desamparado por Deus, “nunca abandona a luta por achar um sentido no que carece de sentido, de enfrentar sua própria condição judaica”. Um poeta que, se no início ainda procurava amparo no verso, logo vai dizimá-lo, e, ao final de sua trajetória, em livros como “Fiapos de luz”, por meio de uma quantidade de referências, enigmáticas ou não, quer apenas lapidar seu silêncio. Como escreve Eduardo Milán, em “Três notas sobre a poesia em sua ausência” (Coyote, out. 2003, n. 5), Celan perdeu a palavra, porém é a perda que “o obriga a falar”. Nesse ponto, também ultrapassa Mallarmé, que se isolou na “Torre de Marfim” como reação à sua época literária. O “poeta em greve”. Celan, por sua vez, não queria mais esse isolamento, pois este só lhe traria a mesma contínua tragédia que desmoronava em seus pensamentos. Numa carta de 1960, Celan dizia a seu interlocutor, Hans Bender, o seguinte: “Vivemos sob céus sombrios e... existem poucos seres humanos. Talvez por isso existam também tão poucos poemas”.


Poucos poetas. Poucas pessoas. É interessante lembrar que, nessa modernidade sem redenções, Mallarmé, desapontado com o universo escolar (não gostava de ser professor do colegial), tinha vontade de se jogar no Sena, como lembra Manuel Bandeira num discurso proferido sobre os 100 anos do poeta em 1942, na Academia Brasileira de Letras. Em 1970, Celan, com mania de perseguição e acusado de plágio (como lembra Steiner, isso atormentou seu fim de vida), fez o gesto apenas imaginado por Mallarmé, desaparecendo nas águas do rio parisiense. Ele não queria fazer história; para obtê-la, realmente, já tinha nos deixado a crueldade de sua escrita. Esta, independente dele ou de seu destino, continua sempre trágica e a ferir quem a lê, como uma rosa aparentemente sem pétalas, só com espinhos. No entanto, ela guarda a mesma palavra que o autor busca no Outro: amor. Nela, a poesia moderna pode buscar até alento.

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