Por Nicole Cristofalo
Ao contrário da afirmação do Octavio Paz, no ensaio “O desconhecido de si mesmo – Fernando Pessoa”, os poetas possuem biografia, que pode ser mais ou menos relevante para a leitura de suas obras. Percebemos que Fernando Pessoa descreve a vida e a formação de Álvaro de Campos porque há alguma importância de termos esta informação antes de realizarmos a leitura dos poemas que o heterônimo engenheiro nos deixou. Álvaro teria nascido em Tavira, em 1890, e após seus estudos em um liceu foi para Escócia (Glasgow) se formar em Engenharia Mecânica, e depois Naval. Interessante notar que as duas cidades são marítimas, ou seja, tanto sua formação de engenheiro mecânico como também de engenheiro naval e a experiência de ter vivido (ficcionalmente) nestas cidades podem nos oferecer opções de leitura de seus diversos poemas com a temática marítima, assim como de suas odes publicadas no livro O engenheiro sensacionista, que pertence ao período de sua obra relacionado fortemente com o futurismo cosmopolita e veloz, sugado pelas máquinas e ruídos da tecnologia que trazia consigo a modernidade daquele momento.
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Segundo José Gil, no ensaio “Ritmos e intensidade: a velocidade abstracta”, que pertence ao livro Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações, Campos procura dispersar sua consciência e fragmentá-la para conseguir se metamorfosear em sua escrita: “há em Pessoa dois regimes da consciência: esta torna-se consciência de si quando reflecte sobre si própria, tomando-se como seu próprio objecto – separa-se então da vida, do mundo, do corpo: e é todo o tema da dicotomia consciência/vida que se desenrola. Mas quando o plano de consistência se forma e as intensidades percorrem o “corpo-sem-órgãos”, a consciência desprende-se do eu, para se tornar ‘consciência do corpo’: torna-se ‘espaço abstracto’, ‘névoa’ – e reúne ao mundo, fazendo um só com ele. Atinge então o mais alto grau de abstracção, transmutando-se em pura matéria sensitiva, que recebe todos os tipos de impulsos, de sacões (do volante)”. O “corpo-sem-órgãos” traz a “força vital” em vez da beleza aristotélica ao poema. Neste ensaio, trabalharemos a ideia de “metamorfose” relacionada ao conceito do “corpo-sem-órgãos”, de José Gil, e da velocidade como manifestação desta força vital que o crítico aponta nos textos de Álvaro de Campos, analisando poemas que procuram abranger diversas fases de sua obra.
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Reproduzimos as seguintes estrofes iniciais de “Lentidão dos vapores pelo mar”, publicado no livro O poeta decadente: “Lentidão dos vapores pelo mar... / Tanto que ver, tanto que abarcar. / No eterno presente da pupila / Ilhas ao longe, costas a despontar / Na imensidão oceânica e tranquila. / / Mais depressa... Sigamos... Hoje é o real... / O momento embriaga... A alma esquece / Que existe no mover-se... Cais, carnal... / Para os botes no cais quem é que desce? / Que importa? Vamos! Tudo é tão real! // (...)”. Quando se lê este início, o significado da velocidade, que se traduz no ritmo do poema, é bastante claro. O sujeito lírico exclama “Vamos!”, e em um primeiro momento pensamos que sua ânsia é a de ver novas paisagens. Porém, no decorrer da leitura, percebemos que sua ânsia é exatamente oposta, pois, se no início as viagens traziam a ele empolgação, agora estas mesmas paisagens o cansam, produzindo tédio quando são lembradas. Ao final do poema, o sujeito lírico procura parar completamente a velocidade: “Meu corpo inerte... Sigo, recostando / Minha cabeça no vidro que me treme / De encontro à consciência o meu ser todo; / Para que viajar? O tédio vai ao leme / De cada meu angustiado modo”. Quando o poema é lido tendo-se em mente a ideia do “corpo-sem-órgãos”, ocorrerá que “deixará de haver separação entre interior e exterior, entre sensação e coisa, e depois entre alma e corpo; e não haverá mais distâncias, nenhuma distância sequer entre a emoção e a paisagem, uma vez que o corpo terá adquirido o poder de matamorfosear o interior em paisagem, de ‘exfoliar’ ou reverter os seus órgãos intensivos para as formas exteriores (...)”. O corpo inerte do sujeito lírico deste poema realiza a metamorfose da emoção com a paisagem. Podemos dizer que este poema reflete a primeira fase de Álvaro de Campos, ligado ao romantismo e ao decadentismo, e que a velocidade está em lenta ascensão, ligada ao decadentismo, e ocorre fortemente apenas na fase seguinte.
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Se a primeira fase de Álvaro de Campos se relaciona ao simbolismo, a segunda, que se inicia com o livro O engenheiro sensacionista, é fortemente ligada ao futurismo por meio de imagens que exaltam a industrialização e a modernidade onomatopeicas. O sujeito lírico trará consigo (uma vez que seu corpo é metamorfoseado em máquinas) a velocidade daquela paisagem. Fábricas, automóveis, navios, bares e o cosmopolitismo europeu se traduzem nas suas odes e poemas, como em “Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades”: “Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades / A chegada pela manhã a cais ou a gares / Cheios de um silencio repousado e claro! / Os primeiros passantes nas ruas das cidades a que se chega... / E o som especial que o correr das horas tem nas viagens...”. Se na terceira estrofe pensamos que Campos tratará das manhãs tranquilas de “novas cidades”, na quinta estrofe o “correr das horas” acelera como se pisasse nos pedais dos “ómnibus ou os eléctricos ou os automóveis” do verso seguinte, observando o “aspecto das ruas de novas terras...” para, logo em seguida, o poema “frear” com o verso: “A paz que parecem ter para a nossa dor”, acelerando no verso seguinte: “O bulício alegre para a nossa tristeza”, e freando em seguida: “A falta de monotonia para o nosso coração cansado!”, como se todo o poema se metamorfoseasse em um automóvel que acelera e freia para acelerar novamente: “E através disso tudo, como uma coisa que inunda e nunca transborda, / O movimento, o movimento / Rápida coisa colorida e humana que passa e fica...”. Também ficam “Os portos com navios parados, / Excessivamente navios parados”, mas os “barcos pequenos ao pé” esperam o movimento dos navios, deixando como um “contínuo” o movimento do acelerar e frear dos veículos modernos.
Na terceira e última fase de sua obra, Álvaro de Campos traz, nos livros O engenheiro metafísico e O engenheiro aposentado, um sujeito lírico desiludido com suas experiências. Percebemos que, a partir de então, a velocidade, fluido vital do sujeito lírico, desacelera, dando lugar, em O engenheiro metafísico, a um quase permanente estado ébrio no qual o sujeito lírico se questiona a todo o momento sobre as circunstâncias nas quais sua existência o coloca (como a morte de uma criança e a rápida superação daquela família), e procura imprimir suas conclusões em diversos poemas deste período. No poema “Estou cansado da inteligência”, do terceiro livro de Campos, vemos a velocidade “amodorrar” com “aquelas coisas que o vinho tem”: “Estou cansado da inteligência / Pensar faz mal às emoções. / Uma grande reacção aparece. / Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo / Na casa antiga da quinta velha”. O sujeito lírico, saudosista, relembra sua infância, quando era o “sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!”, como se o ato de pensar acelerasse suas emoções e o ritmo do poema, o que, neste momento, o sujeito lírico não demonstra desejo. Sua desilusão, que se refletirá em todo o restante de sua obra, fica clara nestes dois versos: “Estou cansado da inteligência. / Se ao menos com ela se percebesse qualquer coisa!”. Além de não ter trazido a ele as respostas necessárias para a sua existência, a inteligência faz com que ele só perceba “um cansaço no fundo, como baixam na taça / Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho”, trazendo a ele um estado ébrio que desacelera as paisagens e circunstâncias. O “não pensar em nada” se tornará um dos meios mais efetivos para a inércia que o sujeito lírico busca.
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As imagens do saudosismo e lembranças de sua infância são também muito trabalhadas no quarto livro de Campos, O engenheiro aposentado. A procura pela desaceleração é cada vez mais intensa e, ao mesmo tempo, angustiante, como vemos no poema “Ah, que extraordinário”: “Ah, que extraordinário, / Nos grandes momentos do sossego da tristeza, / Como quando alguém morre, e estamos em casa dele e todos estão quietos, / O rodar de um carro na rua, ou o canto de um galo nos quintais... / Que longe da vida! É outro mundo. / Viramo-nos para a janela e o sol brilha lá fora – / Visto sossego plácido da natureza sem interrupções!”. O sossego, desaceleração da emoção, é desejado até mesmo quando vem acompanhado da tristeza causada pela morte de alguém. O sujeito lírico encontrado em O poeta decadente e O engenheiro sensacionista agora traz uma força oposta aos seus poemas: se antes a velocidade refletia a paisagem da cidade cosmopolita e industrial, agora há o distanciamento do sujeito lírico das emoções, e não encontramos, a partir de O engenheiro aposentado, a metamorfose de O engenheiro metafísico, quando a emoção se confunde com a paisagem, transformando-se na descrição de Campos exaltada e veloz. Agora, a desaceleração aproxima o sujeito lírico da insatisfação, do desejo de ser outra pessoa diante de sua existência e aproximação da morte, o que o faz buscar “O sossego da noite” e “O silêncio, que mais se acentua, / Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no escuro...”, resultado da “opressão de tudo isso!”. Porém, a consciência, “vaga náusea, a doença incerta, de me sentir”, traz a “inquietação” que, se no início fora desejo, agora não é mais.
Desta maneira, procuramos traçar a ideia do “corpo-sem-órgãos” na obra de Álvaro de Campos, assim como a velocidade que dita o ritmo e as imagens de seus poemas ao longo de sua obra, e que podemos enxergar como uma parábola, passando pelos primeiros poemas inertes, pelos textos sensacionistas altamente velozes, e terminando nos poemas do decadentismo novamente inerte.
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