domingo, 7 de novembro de 2010

A velocidade vital de Álvaro de Campos

Por Nicole Cristofalo

Ao contrário da afirmação do Octavio Paz, no ensaio “O desconhecido de si mesmo – Fernando Pessoa”, os poetas possuem biografia, que pode ser mais ou menos relevante para a leitura de suas obras. Percebemos que Fernando Pessoa descreve a vida e a formação de Álvaro de Campos porque há alguma importância de termos esta informação antes de realizarmos a leitura dos poemas que o heterônimo engenheiro nos deixou. Álvaro teria nascido em Tavira, em 1890, e após seus estudos em um liceu foi para Escócia (Glasgow) se formar em Engenharia Mecânica, e depois Naval. Interessante notar que as duas cidades são marítimas, ou seja, tanto sua formação de engenheiro mecânico como também de engenheiro naval e a experiência de ter vivido (ficcionalmente) nestas cidades podem nos oferecer opções de leitura de seus diversos poemas com a temática marítima, assim como de suas odes publicadas no livro O engenheiro sensacionista, que pertence ao período de sua obra relacionado fortemente com o futurismo cosmopolita e veloz, sugado pelas máquinas e ruídos da tecnologia que trazia consigo a modernidade daquele momento.


Segundo José Gil, no ensaio “Ritmos e intensidade: a velocidade abstracta”, que pertence ao livro Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações, Campos procura dispersar sua consciência e fragmentá-la para conseguir se metamorfosear em sua escrita: “há em Pessoa dois regimes da consciência: esta torna-se consciência de si quando reflecte sobre si própria, tomando-se como seu próprio objecto – separa-se então da vida, do mundo, do corpo: e é todo o tema da dicotomia consciência/vida que se desenrola. Mas quando o plano de consistência se forma e as intensidades percorrem o “corpo-sem-órgãos”, a consciência desprende-se do eu, para se tornar ‘consciência do corpo’: torna-se ‘espaço abstracto’, ‘névoa’ – e reúne ao mundo, fazendo um só com ele. Atinge então o mais alto grau de abstracção, transmutando-se em pura matéria sensitiva, que recebe todos os tipos de impulsos, de sacões (do volante)”. O “corpo-sem-órgãos” traz a “força vital” em vez da beleza aristotélica ao poema. Neste ensaio, trabalharemos a ideia de “metamorfose” relacionada ao conceito do “corpo-sem-órgãos”, de José Gil, e da velocidade como manifestação desta força vital que o crítico aponta nos textos de Álvaro de Campos, analisando poemas que procuram abranger diversas fases de sua obra.


Reproduzimos as seguintes estrofes iniciais de “Lentidão dos vapores pelo mar”, publicado no livro O poeta decadente: “Lentidão dos vapores pelo mar... / Tanto que ver, tanto que abarcar. / No eterno presente da pupila / Ilhas ao longe, costas a despontar / Na imensidão oceânica e tranquila. / / Mais depressa... Sigamos... Hoje é o real... / O momento embriaga... A alma esquece / Que existe no mover-se... Cais, carnal... / Para os botes no cais quem é que desce? / Que importa? Vamos! Tudo é tão real! // (...)”. Quando se lê este início, o significado da velocidade, que se traduz no ritmo do poema, é bastante claro. O sujeito lírico exclama “Vamos!”, e em um primeiro momento pensamos que sua ânsia é a de ver novas paisagens. Porém, no decorrer da leitura, percebemos que sua ânsia é exatamente oposta, pois, se no início as viagens traziam a ele empolgação, agora estas mesmas paisagens o cansam, produzindo tédio quando são lembradas. Ao final do poema, o sujeito lírico procura parar completamente a velocidade: “Meu corpo inerte... Sigo, recostando / Minha cabeça no vidro que me treme / De encontro à consciência o meu ser todo; / Para que viajar? O tédio vai ao leme / De cada meu angustiado modo”. Quando o poema é lido tendo-se em mente a ideia do “corpo-sem-órgãos”, ocorrerá que “deixará de haver separação entre interior e exterior, entre sensação e coisa, e depois entre alma e corpo; e não haverá mais distâncias, nenhuma distância sequer entre a emoção e a paisagem, uma vez que o corpo terá adquirido o poder de matamorfosear o interior em paisagem, de ‘exfoliar’ ou reverter os seus órgãos intensivos para as formas exteriores (...)”. O corpo inerte do sujeito lírico deste poema realiza a metamorfose da emoção com a paisagem. Podemos dizer que este poema reflete a primeira fase de Álvaro de Campos, ligado ao romantismo e ao decadentismo, e que a velocidade está em lenta ascensão, ligada ao decadentismo, e ocorre fortemente apenas na fase seguinte.


Se a primeira fase de Álvaro de Campos se relaciona ao simbolismo, a segunda, que se inicia com o livro O engenheiro sensacionista, é fortemente ligada ao futurismo por meio de imagens que exaltam a industrialização e a modernidade onomatopeicas. O sujeito lírico trará consigo (uma vez que seu corpo é metamorfoseado em máquinas) a velocidade daquela paisagem. Fábricas, automóveis, navios, bares e o cosmopolitismo europeu se traduzem nas suas odes e poemas, como em “Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades”: “Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades / A chegada pela manhã a cais ou a gares / Cheios de um silencio repousado e claro! / Os primeiros passantes nas ruas das cidades a que se chega... / E o som especial que o correr das horas tem nas viagens...”. Se na terceira estrofe pensamos que Campos tratará das manhãs tranquilas de “novas cidades”, na quinta estrofe o “correr das horas” acelera como se pisasse nos pedais dos “ómnibus ou os eléctricos ou os automóveis” do verso seguinte, observando o “aspecto das ruas de novas terras...” para, logo em seguida, o poema “frear” com o verso: “A paz que parecem ter para a nossa dor”, acelerando no verso seguinte: “O bulício alegre para a nossa tristeza”, e freando em seguida: “A falta de monotonia para o nosso coração cansado!”, como se todo o poema se metamorfoseasse em um automóvel que acelera e freia para acelerar novamente: “E através disso tudo, como uma coisa que inunda e nunca transborda, / O movimento, o movimento / Rápida coisa colorida e humana que passa e fica...”. Também ficam “Os portos com navios parados, / Excessivamente navios parados”, mas os “barcos pequenos ao pé” esperam o movimento dos navios, deixando como um “contínuo” o movimento do acelerar e frear dos veículos modernos.
Na terceira e última fase de sua obra, Álvaro de Campos traz, nos livros O engenheiro metafísico e O engenheiro aposentado, um sujeito lírico desiludido com suas experiências. Percebemos que, a partir de então, a velocidade, fluido vital do sujeito lírico, desacelera, dando lugar, em O engenheiro metafísico, a um quase permanente estado ébrio no qual o sujeito lírico se questiona a todo o momento sobre as circunstâncias nas quais sua existência o coloca (como a morte de uma criança e a rápida superação daquela família), e procura imprimir suas conclusões em diversos poemas deste período. No poema “Estou cansado da inteligência”, do terceiro livro de Campos, vemos a velocidade “amodorrar” com “aquelas coisas que o vinho tem”: “Estou cansado da inteligência / Pensar faz mal às emoções. / Uma grande reacção aparece. / Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo / Na casa antiga da quinta velha”. O sujeito lírico, saudosista, relembra sua infância, quando era o “sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!”, como se o ato de pensar acelerasse suas emoções e o ritmo do poema, o que, neste momento, o sujeito lírico não demonstra desejo. Sua desilusão, que se refletirá em todo o restante de sua obra, fica clara nestes dois versos: “Estou cansado da inteligência. / Se ao menos com ela se percebesse qualquer coisa!”. Além de não ter trazido a ele as respostas necessárias para a sua existência, a inteligência faz com que ele só perceba “um cansaço no fundo, como baixam na taça / Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho”, trazendo a ele um estado ébrio que desacelera as paisagens e circunstâncias. O “não pensar em nada” se tornará um dos meios mais efetivos para a inércia que o sujeito lírico busca.


As imagens do saudosismo e lembranças de sua infância são também muito trabalhadas no quarto livro de Campos, O engenheiro aposentado. A procura pela desaceleração é cada vez mais intensa e, ao mesmo tempo, angustiante, como vemos no poema “Ah, que extraordinário”: “Ah, que extraordinário, / Nos grandes momentos do sossego da tristeza, / Como quando alguém morre, e estamos em casa dele e todos estão quietos, / O rodar de um carro na rua, ou o canto de um galo nos quintais... / Que longe da vida! É outro mundo. / Viramo-nos para a janela e o sol brilha lá fora – / Visto sossego plácido da natureza sem interrupções!”. O sossego, desaceleração da emoção, é desejado até mesmo quando vem acompanhado da tristeza causada pela morte de alguém. O sujeito lírico encontrado em O poeta decadente e O engenheiro sensacionista agora traz uma força oposta aos seus poemas: se antes a velocidade refletia a paisagem da cidade cosmopolita e industrial, agora há o distanciamento do sujeito lírico das emoções, e não encontramos, a partir de O engenheiro aposentado, a metamorfose de O engenheiro metafísico, quando a emoção se confunde com a paisagem, transformando-se na descrição de Campos exaltada e veloz. Agora, a desaceleração aproxima o sujeito lírico da insatisfação, do desejo de ser outra pessoa diante de sua existência e aproximação da morte, o que o faz buscar “O sossego da noite” e “O silêncio, que mais se acentua, / Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no escuro...”, resultado da “opressão de tudo isso!”. Porém, a consciência, “vaga náusea, a doença incerta, de me sentir”, traz a “inquietação” que, se no início fora desejo, agora não é mais.
Desta maneira, procuramos traçar a ideia do “corpo-sem-órgãos” na obra de Álvaro de Campos, assim como a velocidade que dita o ritmo e as imagens de seus poemas ao longo de sua obra, e que podemos enxergar como uma parábola, passando pelos primeiros poemas inertes, pelos textos sensacionistas altamente velozes, e terminando nos poemas do decadentismo novamente inerte.

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