Poesias de Mallarmé nas livrarias
Por André Dick
Está sendo lançado o livro Poesias de Mallarmé, pela Lumme Editor, conduzida pelo poeta e artista plástico Francisco dos Santos, com 144 páginas, texto introdutório crítico, “lances biográficos de Mallarmé” e traduções, feitas ao longo de alguns anos, do poeta francês, incluindo de alguns fragmentos de “Pour un tombeau d'Anatole”. Na capa, feita por Francisco, um dado aberto, indicando não só o lance, mas também as poesias de Mallarmé, e formando uma seta - apontada para o acaso.
Para um contato com a editora, o e-mail é vendas@lummeeditor.com
terça-feira, 15 de março de 2011
quarta-feira, 9 de março de 2011
Obra em dobras: a crítica poética de Michel Deguy
Por André Dick
Nascido em Paris, em 1930, o poeta Michel Deguy, em Reabertura após obras,* ingressa no campo em que Octavio Paz e Roland Barthes eram mestres: o da crítica poética. Não por acaso, ele dialoga sobretudo com o segundo – embora seja, de fato, um poeta (pertencente ao grupo Oulipo), como Paz. Por meio de conceitos que mesclam poesia e filosofia, ele alcança um limiar alcançado antes por poucos autores (talvez Derrida, Blanchot e Agamben). São memoráveis os fragmentos em que ele trata de Baudelaire, Celan e Heidegger, além de Hölderlin, ampliando um diálogo, prazeroso de se ler, entre a literatura e a sociedade – mesmo que não seja o mote do livro – com base no que pode vir a oferecer, ainda, a poesia. Deguy não tem a menor dúvida, ao contrário de Alain Badiou, que essa pode não ser a “era dos poetas”, mas que a poesia está longe de chegar a seu crepúsculo final.
A mescla entre crítica e poesia tem um ponto de contato com A preparação do romance I e II, seminários de Roland Barthes, lembrados por Deguy no capítulo “Já é tarde”, que enfocam o processo que o escritor enfrenta para compor sua obra. Se o primeiro livro é mais dedicado ao haicai, o segundo mostra uma inclinação para o universo poético da modernidade, tendo em mira os poetas Dante, Rimbaud e Mallarmé. Mas, para contar também o processo de criação, acaba passando, com atenção, por Proust e Kafka. É, possivelmente, o que de melhor escreveu Barthes sobre a poesia. Além de recuperar a desistência poética de Rimbaud, o crítico francês trata do Livro sonhado por Mallarmé e faz comentários sobre Vita nova, de Dante. A dicção utilizada nessas explicações, ao mesmo tempo tão orais e tão poéticas, mostra uma apropriação inteligente, por parte de Barthes, do que Jacques Scherer e outros escreveram sobre o projeto irrealizado de Mallarmé. O livro, no entanto, vai além: é impressionante como Barthes costura os elementos pelos quais passa o escritor (sua vida em comunidade ou em solidão, seu desejo de escrever, a relação entre a obra e o mundo). A preparação do romance II traz também o curioso seminário “Proust e a fotografia”, dedicado a analisar fotografias que Nadar tirou de escritores e outras personalidades.
Daí a semiosis pretendida por Barthes, aplicada na descontinuidade, no fato de as palavras perderem suas “referências particulares” para se “relacionarem umas com as outras para produzir” a significância, ter muito da Poética de Aristóteles. Ou seja, Aristóteles, como Barthes veio a fazer depois, abria campo para um diálogo entre representações, que na teoria literária moderna receberia a carga da intertextualidade de Julia Kristeva, Bakhtin etc., mas apostava numa narratologia poética, por meio da tragédia e da epopéia (gêneros superiores) e da comédia (gênero inferior). Os dois vão para lados opostos no momento de avaliar o discurso. Pois o conflito entre eles, como acontece nas obras do discurso amoroso, é muito mais no que se refere à forma. Enquanto isso, Barthes trabalha com a ideia de uma escritura poética moderna, que, em O grau zero da escritura, se contrapõe à literatura clássica: uma poética que trabalha com “estações de palavras” e não com discursos da epopeia, narrando ações de heróis e deuses. A poesia clássica investe no discurso; a poesia moderna, o contraria. Assim, a irrealidade é muito mais presente na poesia moderna – e aqui se coloca também o romance moderno, como é o caso de Werther –, que sobrevive mais de leituras do que de experiências vivenciadas, do que na poesia clássica. Se Aristóteles julgava que se o “poema contém impossibilidades, há uma falta; no entanto, isso nada quer dizer se o fim próprio da arte foi alcançado”, e se a mimesis é regulada pelo “verossímil e não pelo verdadeiro; pelas normas do espírito, não pelas da realidade fora do poema”, Barthes viria a afirmar que não há verossímil ou inverossímil, pois a literatura trata do impossível; e o espírito referido por Aristóteles (e também por Hegel) vira “leitura concreta” (da letra, da página, simbólica) em Barthes. A diferença se dá também na separação que Aristóteles faz entre história e poesia; a primeira trabalha com o que aconteceu; a segunda, com o que poderia ter acontecido. Barthes prefere a segunda hipótese: em Fragmentos de um discurso amoroso, por exemplo, ele estabelece uma ligação com a linguagem do discurso amoroso; com a reminiscência de sua linguagem, partindo de um discurso anterior (o da literatura), misturando-o com o fictício e o neurótico (psicológico); não à toa, dispõe os assuntos em tópicos em ordem alfabética, como se fosse um dicionário de amor. A ligação com outros autores já aparecia em Dante – que se vale da tradição dos trovadores para ter uma espécie de musa.
Em Reabertura após obras, Deguy incorpora essas lições de mimesis dadas por Aristóteles e Barthes, na composição de uma espécie de manual para o “encerramento do Romantismo” e o advento da modernidade – Deguy, como Barthes, coloca Mallarmé e Rimbaud nos limiares desse movimento. É claro que Deguy não acredita mais no poeta como medium, e, ao lançar nova luz sobre a relação entre poesia e música (em “Arte e inveja”), não esquece de colocar Mallarmé como aquele autor que se situa no limite da leitura moderna. Depois dele, todos autores passam a ser vistos como, na expressão de Deguy, “culturais”, ou seja, fazem suas obras imersos na consideração de que houve o fim do romantismo –para dar espaço ao universo cultural, que pretende produzir “o valor daquilo que vale”, o “transformador para a economia”. Nele, o poeta passaria a ser um “mentiroso”, por meio de uma depreciação intelectual (filosófica e científica), e aconteceria a “dessocialização da poesia, colocada fora do jogo pela experimentação: ressocialização pelo cultural que a consigna nas pequenas mídias (small is beautiful), nas performances, nos festivais-recitais, nas antologias temáticas, no lazer e no self service psicológico etc.”. Ao mesmo tempo, Deguy escreve:
O povo não tem mais lugar. A diferença extrema (“sagrada”?) entre o poeta mediador e os outros homens [...] tornou-se arcaica, por demais enfática e quase ridícula, como uma velha peça do repertório novamente encenada. [....] A relação do poeta com seu povo não tem mais existência, nunca teve existência (pelo menos, para nós, depois de 1885). O poeta não pode (não pôde) ser vicário do padre, da ausência ou da desaparição do clero (mesmo que Rimbaud ainda dedique uma iluminação “para o alto clero”).
Não é necessário dizer o quanto essa análise vai contra o Romantismo de Iena de Schlegel e companheiros. Deguy trata do sublime/da sublimação sob o ponto de vista dos acontecimentos: o sublime é absolutamente corporal, por meio dele o ser humano se anuncia. Ou, mais objetivamente, o “sublime é cotidiano”. Lembrando conceitos da modernidade – como o silêncio –, Deguy lança em discussão o nada que representa a página vazia, o quanto nela está escondida “fala cotidiana” de Mallarmé. A poesia, para ele, não é um “cavaleiro solitário” – discordando da separação drástica que Sartre faz entre poesia e prosa –, mas mistura-se à prosa. A “poesia é materialista”. Dante não falaria do paraíso “senão com o sol e a luz terrestre”; sendo assim, o “paraíso é o paraíso da Terra: a perfeição é deste mundo. O sentido se dá pelos sentidos. O sentido da vida é o sentido que acompanha a vida como a música acompanha a existência”. Deguy também afirma que a poesia aprende muito com a música – o material incorpora o abstrato, digamos assim, mas cujas notas são tão concretas como as letras das palavras. No entanto, Deguy analisa o equívoco de Heidegger ao prestigiar tanto os poemas de Hölderlin, não pela qualidade deste poeta ou de que ele sintetizaria a questão do Ser, referente ao filósofo, mas pelo viés que quis dar, de “poeta oficial da Alemanha” – e o consequente afastamento de Paul Celan.
Hölderlin, o poeta que arranha as paredes com as unhas, em seu processo de loucura, é a faceta romântica da poesia alemã, representada na modernidade do século XX por Celan. Em Hölderlin, os cantos são dos homens – apesar de seu viés romântico; em Celan, há “canções para cantar além dos homens” – apesar de sua concretude e consciência do Holocausto. Segundo Deguy, “O celaniano não fazia parte dos poemas de Heidegger, não tomava assento ao lado de Trakl, Rilke, George, nem mesmo, especialmente, de Hölderlin. Ora, a questão era justamente Hölderlin; dois modos poderosos, exclusivos, de se relacionar com Hölderlin. A estranheza recíproca dos dois deve ser entendida” – ambos constituindo duas margens, uma distante da outra, depois do encontro na Floresta Negra do século XX.
Para Deguy, exemplarmente, haja vista sua competência ao abordar, poeticamente, temas do campo crítico e filosófico, há duas maneiras de tratar (com) a coisa poética e as coisas da poesia – para que Celan e Pessoa não sejam esquecidos. Uma delas é aquela “do leitor da cultura (no sentido antigo), ou ainda dos saberes da Universidade”; a outra seria “do prático teórico (para não dizer do ‘escritor’ [...], ou seja aquele que quer viver-escrever na relação com essas coisas, colocar em causa e em jogo a poesia como fermento na massa, entre outros catalisadores, em suma, por apego ao mundo [...]”)”. Pode-se dizer que, hoje, o “prático teórico” ainda é a fonte substancial para o dito “leitor da cultura” – e imprescindível para a discussão de conceitos, quase esquecida por este. Deguy afirma também, nesse aspecto, que “O poema é aperitivo e cognitivo. Sua brevidade é a de um aperitivo (brinde ou saudação, na linguagem – e na experiência de Mallarmé). Não se acumula nele um saber – desde que a poesia deixou de ser didática ou máquina mnemotécnica”. Pode-se afirmar que Deguy deixa a “reabertura” para depois da leitura de sua obra; no entanto, é perceptível que tenta desvelar a faceta poética de qualquer modo, indo contra o que considera meramente cultural, tentando retomar o poema como um lugar de encontro e não meramente de saber.
Ele entende que a poesia “transforma-se em uma poética entendida como pensamento do poema pensando sobre a poesia ao esperar pelo poema” (a imagem da garrafa ao mar de Celan é subliminar). Nesse ponto – o ponto de encontro –, entendemos o quanto Deguy aprimora sua luz sobre as coisas poéticas e leva ao que considera poética: aquilo que “associa e articula dois ingredientes principais: uma formalidade com uma revelação”. Uma obra que não pode ser desvendada com poucas palavras – mas que abre um campo de diálogo vital para a linguagem.
* Lançado recentemente pela editora Unicamp, com tradução de Marcos Siscar e Paula Glenadel.
Por André Dick
Nascido em Paris, em 1930, o poeta Michel Deguy, em Reabertura após obras,* ingressa no campo em que Octavio Paz e Roland Barthes eram mestres: o da crítica poética. Não por acaso, ele dialoga sobretudo com o segundo – embora seja, de fato, um poeta (pertencente ao grupo Oulipo), como Paz. Por meio de conceitos que mesclam poesia e filosofia, ele alcança um limiar alcançado antes por poucos autores (talvez Derrida, Blanchot e Agamben). São memoráveis os fragmentos em que ele trata de Baudelaire, Celan e Heidegger, além de Hölderlin, ampliando um diálogo, prazeroso de se ler, entre a literatura e a sociedade – mesmo que não seja o mote do livro – com base no que pode vir a oferecer, ainda, a poesia. Deguy não tem a menor dúvida, ao contrário de Alain Badiou, que essa pode não ser a “era dos poetas”, mas que a poesia está longe de chegar a seu crepúsculo final.
A mescla entre crítica e poesia tem um ponto de contato com A preparação do romance I e II, seminários de Roland Barthes, lembrados por Deguy no capítulo “Já é tarde”, que enfocam o processo que o escritor enfrenta para compor sua obra. Se o primeiro livro é mais dedicado ao haicai, o segundo mostra uma inclinação para o universo poético da modernidade, tendo em mira os poetas Dante, Rimbaud e Mallarmé. Mas, para contar também o processo de criação, acaba passando, com atenção, por Proust e Kafka. É, possivelmente, o que de melhor escreveu Barthes sobre a poesia. Além de recuperar a desistência poética de Rimbaud, o crítico francês trata do Livro sonhado por Mallarmé e faz comentários sobre Vita nova, de Dante. A dicção utilizada nessas explicações, ao mesmo tempo tão orais e tão poéticas, mostra uma apropriação inteligente, por parte de Barthes, do que Jacques Scherer e outros escreveram sobre o projeto irrealizado de Mallarmé. O livro, no entanto, vai além: é impressionante como Barthes costura os elementos pelos quais passa o escritor (sua vida em comunidade ou em solidão, seu desejo de escrever, a relação entre a obra e o mundo). A preparação do romance II traz também o curioso seminário “Proust e a fotografia”, dedicado a analisar fotografias que Nadar tirou de escritores e outras personalidades.
Daí a semiosis pretendida por Barthes, aplicada na descontinuidade, no fato de as palavras perderem suas “referências particulares” para se “relacionarem umas com as outras para produzir” a significância, ter muito da Poética de Aristóteles. Ou seja, Aristóteles, como Barthes veio a fazer depois, abria campo para um diálogo entre representações, que na teoria literária moderna receberia a carga da intertextualidade de Julia Kristeva, Bakhtin etc., mas apostava numa narratologia poética, por meio da tragédia e da epopéia (gêneros superiores) e da comédia (gênero inferior). Os dois vão para lados opostos no momento de avaliar o discurso. Pois o conflito entre eles, como acontece nas obras do discurso amoroso, é muito mais no que se refere à forma. Enquanto isso, Barthes trabalha com a ideia de uma escritura poética moderna, que, em O grau zero da escritura, se contrapõe à literatura clássica: uma poética que trabalha com “estações de palavras” e não com discursos da epopeia, narrando ações de heróis e deuses. A poesia clássica investe no discurso; a poesia moderna, o contraria. Assim, a irrealidade é muito mais presente na poesia moderna – e aqui se coloca também o romance moderno, como é o caso de Werther –, que sobrevive mais de leituras do que de experiências vivenciadas, do que na poesia clássica. Se Aristóteles julgava que se o “poema contém impossibilidades, há uma falta; no entanto, isso nada quer dizer se o fim próprio da arte foi alcançado”, e se a mimesis é regulada pelo “verossímil e não pelo verdadeiro; pelas normas do espírito, não pelas da realidade fora do poema”, Barthes viria a afirmar que não há verossímil ou inverossímil, pois a literatura trata do impossível; e o espírito referido por Aristóteles (e também por Hegel) vira “leitura concreta” (da letra, da página, simbólica) em Barthes. A diferença se dá também na separação que Aristóteles faz entre história e poesia; a primeira trabalha com o que aconteceu; a segunda, com o que poderia ter acontecido. Barthes prefere a segunda hipótese: em Fragmentos de um discurso amoroso, por exemplo, ele estabelece uma ligação com a linguagem do discurso amoroso; com a reminiscência de sua linguagem, partindo de um discurso anterior (o da literatura), misturando-o com o fictício e o neurótico (psicológico); não à toa, dispõe os assuntos em tópicos em ordem alfabética, como se fosse um dicionário de amor. A ligação com outros autores já aparecia em Dante – que se vale da tradição dos trovadores para ter uma espécie de musa.
Em Reabertura após obras, Deguy incorpora essas lições de mimesis dadas por Aristóteles e Barthes, na composição de uma espécie de manual para o “encerramento do Romantismo” e o advento da modernidade – Deguy, como Barthes, coloca Mallarmé e Rimbaud nos limiares desse movimento. É claro que Deguy não acredita mais no poeta como medium, e, ao lançar nova luz sobre a relação entre poesia e música (em “Arte e inveja”), não esquece de colocar Mallarmé como aquele autor que se situa no limite da leitura moderna. Depois dele, todos autores passam a ser vistos como, na expressão de Deguy, “culturais”, ou seja, fazem suas obras imersos na consideração de que houve o fim do romantismo –para dar espaço ao universo cultural, que pretende produzir “o valor daquilo que vale”, o “transformador para a economia”. Nele, o poeta passaria a ser um “mentiroso”, por meio de uma depreciação intelectual (filosófica e científica), e aconteceria a “dessocialização da poesia, colocada fora do jogo pela experimentação: ressocialização pelo cultural que a consigna nas pequenas mídias (small is beautiful), nas performances, nos festivais-recitais, nas antologias temáticas, no lazer e no self service psicológico etc.”. Ao mesmo tempo, Deguy escreve:
O povo não tem mais lugar. A diferença extrema (“sagrada”?) entre o poeta mediador e os outros homens [...] tornou-se arcaica, por demais enfática e quase ridícula, como uma velha peça do repertório novamente encenada. [....] A relação do poeta com seu povo não tem mais existência, nunca teve existência (pelo menos, para nós, depois de 1885). O poeta não pode (não pôde) ser vicário do padre, da ausência ou da desaparição do clero (mesmo que Rimbaud ainda dedique uma iluminação “para o alto clero”).
Não é necessário dizer o quanto essa análise vai contra o Romantismo de Iena de Schlegel e companheiros. Deguy trata do sublime/da sublimação sob o ponto de vista dos acontecimentos: o sublime é absolutamente corporal, por meio dele o ser humano se anuncia. Ou, mais objetivamente, o “sublime é cotidiano”. Lembrando conceitos da modernidade – como o silêncio –, Deguy lança em discussão o nada que representa a página vazia, o quanto nela está escondida “fala cotidiana” de Mallarmé. A poesia, para ele, não é um “cavaleiro solitário” – discordando da separação drástica que Sartre faz entre poesia e prosa –, mas mistura-se à prosa. A “poesia é materialista”. Dante não falaria do paraíso “senão com o sol e a luz terrestre”; sendo assim, o “paraíso é o paraíso da Terra: a perfeição é deste mundo. O sentido se dá pelos sentidos. O sentido da vida é o sentido que acompanha a vida como a música acompanha a existência”. Deguy também afirma que a poesia aprende muito com a música – o material incorpora o abstrato, digamos assim, mas cujas notas são tão concretas como as letras das palavras. No entanto, Deguy analisa o equívoco de Heidegger ao prestigiar tanto os poemas de Hölderlin, não pela qualidade deste poeta ou de que ele sintetizaria a questão do Ser, referente ao filósofo, mas pelo viés que quis dar, de “poeta oficial da Alemanha” – e o consequente afastamento de Paul Celan.
Hölderlin, o poeta que arranha as paredes com as unhas, em seu processo de loucura, é a faceta romântica da poesia alemã, representada na modernidade do século XX por Celan. Em Hölderlin, os cantos são dos homens – apesar de seu viés romântico; em Celan, há “canções para cantar além dos homens” – apesar de sua concretude e consciência do Holocausto. Segundo Deguy, “O celaniano não fazia parte dos poemas de Heidegger, não tomava assento ao lado de Trakl, Rilke, George, nem mesmo, especialmente, de Hölderlin. Ora, a questão era justamente Hölderlin; dois modos poderosos, exclusivos, de se relacionar com Hölderlin. A estranheza recíproca dos dois deve ser entendida” – ambos constituindo duas margens, uma distante da outra, depois do encontro na Floresta Negra do século XX.
Para Deguy, exemplarmente, haja vista sua competência ao abordar, poeticamente, temas do campo crítico e filosófico, há duas maneiras de tratar (com) a coisa poética e as coisas da poesia – para que Celan e Pessoa não sejam esquecidos. Uma delas é aquela “do leitor da cultura (no sentido antigo), ou ainda dos saberes da Universidade”; a outra seria “do prático teórico (para não dizer do ‘escritor’ [...], ou seja aquele que quer viver-escrever na relação com essas coisas, colocar em causa e em jogo a poesia como fermento na massa, entre outros catalisadores, em suma, por apego ao mundo [...]”)”. Pode-se dizer que, hoje, o “prático teórico” ainda é a fonte substancial para o dito “leitor da cultura” – e imprescindível para a discussão de conceitos, quase esquecida por este. Deguy afirma também, nesse aspecto, que “O poema é aperitivo e cognitivo. Sua brevidade é a de um aperitivo (brinde ou saudação, na linguagem – e na experiência de Mallarmé). Não se acumula nele um saber – desde que a poesia deixou de ser didática ou máquina mnemotécnica”. Pode-se afirmar que Deguy deixa a “reabertura” para depois da leitura de sua obra; no entanto, é perceptível que tenta desvelar a faceta poética de qualquer modo, indo contra o que considera meramente cultural, tentando retomar o poema como um lugar de encontro e não meramente de saber.
Ele entende que a poesia “transforma-se em uma poética entendida como pensamento do poema pensando sobre a poesia ao esperar pelo poema” (a imagem da garrafa ao mar de Celan é subliminar). Nesse ponto – o ponto de encontro –, entendemos o quanto Deguy aprimora sua luz sobre as coisas poéticas e leva ao que considera poética: aquilo que “associa e articula dois ingredientes principais: uma formalidade com uma revelação”. Uma obra que não pode ser desvendada com poucas palavras – mas que abre um campo de diálogo vital para a linguagem.
* Lançado recentemente pela editora Unicamp, com tradução de Marcos Siscar e Paula Glenadel.
Assinar:
Postagens (Atom)