quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Raul Bopp: com o Brasil nos dentes

Por André Dick

O poeta Raul Bopp, gaúcho de Santa Maria, é uma das principais figuras do Modernismo. Autor de Cobra Norato, um dos clássicos da literatura brasileira, participou do movimento modernista de 1922. Como alguns autores, em outros períodos da literatura brasileira (a exemplo de Kilkerry e Sousândrade), foi um tanto esquecido. Quando se fala em Modernismo, surgem os nomes, acertadamente, de Oswald e Mário de Andrade – também de Luís Aranha (autor do excelente Cocktails) e Manuel Bandeira. Se o primeiro é, sem dúvida, um grande poeta, o segundo tem uma poesia mais prosaica, como na obra Macunaíma, o terceiro, por ter se aposentado precocemente, é pouco lembrado, e o quarto é referencial para estabelecer uma ligação entre poesia e crítica literária.


Bopp é moderno porque, como Oswald, soube selecionar o que era material de poesia para o mundo que recebia a radiação da Revolução Industrial e buscou compor sua obra a partir de uma visão primitiva. O Manifesto da Poesia Pau Brasil é uma porta de entrada no Manifesto Antropófago. Criado em razão do contato de Oswald e de Bopp com o quadro “Abaporu” (“antropófago”, em tupi-guarani) pintado por Tarsila do Amaral, o manifesto, publicado em maio de 1928, no primeiro número da Revista de Antropofagia, editada por Bopp e Alcântara Machado, assumiu o conceito com um texto telegráfico, indicando novos rumos para uma poética brasileira, mas não se restringindo à literatura - e podemos ver Bopp contar essa história em Movimentos modernistas no Brasil - 1922-1928. Oswald sonhava, desta vez, com uma atitude filosófica: “Só a antropologia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. A antropofagia era vista como “Única lei do mundo”, “Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos”. Consumia William Shakespeare por vias selvagens, na proposição “Tupy, or not tupy that is the question”.
E chama a atenção como Oswald cita Bopp, acertadamente, como referência, em Estética e política (organizado por Maria Eugenia Boaventura), colocando-o, inclusive, acima de sua poesia e da de Mário, quando trata, por exemplo, de Cobra Norato, no texto “COBRA NORATO: (O Brasil na boca)”, publicado em março de 1929, na Feira Literária:

E como COBRA NORATO, sua viva expressão autobiográfica, ele soube trazer-nos o Brasil na boca.
Raul Bopp aparece diverso de Mário e seus cacoetes e diverso do Pau Brasil litorâneo. É a terceira forma do Brasil atualista.
Em Cobra Norato, pela primeira vez, se realizou a poesia brasileira grandiosa e sem fraude. Bopp fez o que Gonçalves Dias não conseguiu e o que mais de um modernista, viciado nos conchavos eleitorais do talento, teima em fracassar.
Aventura perigosa essa de trazer o Brasil nos dentes. E, portanto, aventura de alto sentido. Bopp a realizou.


O livro de Bopp recebeu elogios inflamados de poetas como Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes (além de críticos como Sérgio Buarque de Holanda, Augusto Meyer). Murilo (que foi diplomata como Bopp e Luís Aranha) afirma que o poeta, com seu “dom de síntese, sua espontaneidade (ainda que trabalhada artisticamente, a léguas de distância do trovador flor-do-mato), sua dimensão cósmica que implica um contato mais profundo com o sentido vital da terra, ainda superou Mário” (referindo-se à obra Macunaíma). Desse modo, Bopp, “forjador de um léxico saboroso, fundiu exatamente vozes indígenas e africanas, alterando a sintaxe, sem cair nos exageros e preciosismos de Mário de Andrade”.
Bopp deve ser trabalhado não somente a partir de Cobra Norato (o clássico já conhecido e destacado por Oswald) ou porque deu o nome de Pagu a Patrícia Galvão, mas a partir de poemas que dialogam ainda mais com a poesia contemporânea. Trata-se de uma poesia baseada no olhar fotográfico, no take dos versos, na ruptura com a linguagem correta, optando por uma sintaxe rebuscada, nervosa.
A Poesia Completa de Raul Bopp (organizada e comentada por Augusto Massi, com o selo da José Olympio/Edusp) é dividida por partes, o que facilita o acesso do leitor a textos diversos. “De São Paulo a Curitiba” é um texto precioso, deve ser conhecido, sem dúvida, pelo leitor que se introduz em Bopp e também porque apenas nesse livro ele ganha uma circulação maior, pois antes tinha sido publicado apenas num jornal. O texto é excepcional, impressionando por sua atualidade, com flashes do cotidiano, ao mesmo tempo regionais e universais, mesclando um certo tradicionalismo às colagens poéticas do início de século. Lembra um pouco a prosa oswaldiana de Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, o que não tira o brilho de Bopp, pois seu texto é absolutamente pessoal, mistura de prosa e poesia, envolta por uma aura de vanguarda sem abdicar de uma linguagem regional, e também porque “De São Paulo a Curitiba” foi publicado em 1921, três antes de Oswald publicar João Miramar e doze antes de Serafim.


Vejamos a sua primeira parte:

Deixei a cidade sumida no silêncio da madrugada.

Ficaram para trás os estirões de asfalto e as ruas tecidas de ferro e de cimento armado.

Agora o subúrbio. Pinheiros e o Butantã. Sombras longas abraçando a cintura das casas.

Sopra um vento insistente. Mãos no fundo dos bolsos.

Rolam, sob pneumáticos rápidos, trechos encaroçados de macadame.

São Paulo vai fugindo, amassada no fundo da memória, embrulhada de névoa, faiscante e encolhida de frio.

Estiram-se agora quilômetros de estrada, batida e larga, enroscada nos morros e aterros.

No fundo indeciso e longínquo, se derrama a primeira nódoa triste da manhã.

Galos ao longe.

Cruzam, rápidos, rumo à cidade, caminhões carregados de cebolas.

Fazendas encapuçadas espiam das janelas.

Dia claro.

Num volteamento da estrada avista-se Cotia, friorenta e vermelha, acordando com a primeira ducha de sol.

Já na Poesia Pau Brasil, Oswald buscava uma poesia “de exportação”, conduzindo seu olhar para o hibridismo das artes, com a evolução nos meios de comunicação, segundo ele “um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo”. Este fenômeno trouxe o Naturalismo, a pirogravura, fazendo artistas as “meninas de todos os lares”, a máquina fotográfica (com o artista).


Na música, analisa que o piano “invadiu as saletas nuas, de folinha na parede”, fazendo de todas as meninas pianistas; surgiu o piano de manivela, o piano de patas. Sob o influxo quase atonal do início do século XX, lembra Stravinski. E, com toda a ironia, comenta que só não se inventou uma “máquina de fazer versos” porque já havia o poeta parnasiano. Tal revolução, como Oswald mesmo coloca no manifesto, indicou que “a arte voltava para as elites”, que estavam desmanchando. Assinala duas fases: “1ª) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne a Mallarmé, Rodin e Debussy até agora; 2ª) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva”. Havia o “Brasil profiteur” e o “Brasil doutor”. Além da “coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral”, que seria exatamente a Poesia Pau Brasil. Assim, destaca, sobretudo, alguns elementos da era moderna: a síntese, o equilíbrio e a invenção. Eles foram sintetizados no seguinte pensamento: “O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia – pela invenção e pela surpresa”.
Como escreve Oswald, buscando uma aproximação com os manifestos do futurismo, ao exaltar a indústria: “O reclame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros. Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tiques de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos”. O poeta, por meio da antropofagia, anuncia a volta ao “sentido puro”, aproximando-se da exatidão do cubismo: “Um quadro são linhas e cores”. De certo modo, podemos ver os poemas de Bopp como sínteses dessas características.


Seus poemas chamam a atenção exatamente por serem parecidos com quadros. Dos “Versos antigos”, alguns especiais: “Vesperal” (“(...) no hospital do ocaso morre / O sol enfermo do outono”), “Matinal” (“Manhã... sobre um tapete verde-louro, / A Natureza em luz, que em haustos bebe, / Como uma enferma Salomé, recebe / A cabeça do sol num prato de ouro”) e “Copacabana” – o “barco ébrio” (para lembrar Rimbaud) de Bopp: “Manchas do Atlântico parecem / coagulações de clorofila. / / Ouço o rumor da maré cheia / em ritmos de monotonia. / Ondas desmancham-se na areia. / Imperceptivelmente, a tarde / encolhe as pálpebras do dia. / / Tudo escurece lentamente / Sombras se estendem no ar pesado. / Junto da praia, de repente, / a luz se acende em cachos de ouro / como um colar iluminado”.
Entre os sonetos, alguns aparecem, em sua clássica disposição, com um ar moderno, como “Gota-d’água” – com a estrofe “Presa na ponta de um pecíolo extreme, / de irradiação de uma ágata intranquila, / toda beijada pelo sol, vacila... / – delicadeza líquida que freme” – e “Almas rebeldes”, com o qual Leminski (sobretudo o de Distraídos venceremos) dialoga, guardadas as diferentes linguagens: “A alma do que não crê vive sozinha, / A errar pela dúvida, intranquila; / Sofre, deseja, não tem fé, vacila / E anda a procurar o que não tinha”, assim como “Portuguesa”, com a bela estrofe: “A dor secreta de uma longa ausência / destilou-se essa íntima tristeza. / Sozinha em sua estranha natureza / vive o seu mundo de reminiscência”. Lembre-se aqui que o soneto é uma forma clássica, a qual Bopp utilizou num sentido moderno. Como é o caso de Bopp. Há também o imagético “Sino”: “Sempre de tarde, na hora em que escurece, / este sino na torre alta e sombria / começa a dar adeus ao fim do dia, / até que a última cor desaparece”. E “Temporal amazônico”: “O raio estala e, em rasgos, relampeia. / Surdo, um rumor corre embaixo da terra. / / Chove. Erra o vento em golpes e a água em jarro / Alagada, a floresta uiva e se arqueia, / Com os braços verdes a pedir socorro”.


Em Cobra Norato, a simetria das imagens de Bopp se integra à natureza, como num quadro de Tarsila Amaral: “Aqui é a escola das árvores / Estão estudando geometria” (Poema V); “Passo por baixo de arcadas folhudas / Arbustos incógnitos perguntam: / – já será dia? / Manchas de luz abrem buracos nas copas altas / / Árvores-comadres / passaram a noite tecendo folhas em segredo / Vento-ventinho assoprou de fazer cócegas nos ramos / Desmanchou escrituras decifradas” (Poema VI); “Movem-se arbustos cúbicos / sob arcadas de samaúma” (Poema XXVIII). Além de todos os poemas dialogarem com o universo infantil próprio de Oswald de Andrade, mostrando, por exemplos, árvores com sensações humanas, por exemplo: “Floresta ventríloqua brinca de cidade” (Poema XXVIII). Ou o surrealismo de imagens como “Jacarés em férias / mastigam estrelas que se derretem dentro dágua” (Poema XXVI).
Excelentes, também, os poemas de Urucungo, que mais dialoga com a Poesia Pau Brasil do Oswald e do Blaise Cendrars, sendo, ao mesmo tempo, uma volta às raízes da África do Sul. Versos ímpares se encontram em “África” (“A floresta era um útero. / / Quando a noite chegou / As árvores incharam”), em “Diamba” (“Os coqueiros debruçaram-se na praia / para dizer adeus”), em “Tapuia” (“Então te entregas à água / demoradamente / como uma flor selvagem / ante a curiosidade das estrelas”), em “Favela” (novamente com a “humanização” das coisas: morro que cochila, sol que resvala pela rua, casa de janelas com dor de dente, coqueiro amarrado, um pé de meia fazendo exercícios no arame, bananeiras botando suas tetas para fora, mamoeiros de papo inchado) e em “Favela nº 2” (o melhor, com seus versos luminosos: “As janelas dos fundos se reuniram / para ver o trem que vinha de São Paulo”), entre outros. Diante deles, não há dúvida de que a obra completa de Raul Bopp é uma das mais importantes não apenas do modernismo, mas da modernidade brasileira. Antropofágico, como diz Oswald, Bopp traz o Brasil nos dentes.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A poesia de Macunaíma nas estrelas

Por André Dick

O poeta e crítico literário Haroldo de Campos (1929-2003) procura investigar, em seu Morfologia do Macunaíma, livro teórico influenciado pelas teorias formalistas e estruturalistas, uma das obras de prosa modernistas mais instigantes. Segundo Haroldo, Mário de Andrade, por meio de sua obra, possui uma consciência perfeita sobre seus movimentos e sua incorporação de lendas e linguagens nacionais e estrangeiras. Haroldo ainda investiga Macunaíma a partir das estruturas do teórico russo Vladímir Propp, autor de Morfologia do conto maravilhoso.


Para o crítico e poeta brasileiro, o livro de Mário é sustentado não só pela observação de lendas e no instinto nacional, mas pela criação ponderada que remete ao esquema proposto por Propp em sua morfologia. Assim, “a coerência do Macunaíma deve ser buscada em outro tipo de lógica (como também o seu tempo, a sua ‘cronia’, e a sua psicologia): trata-se da lógica do pensamento fabular, de certo modo da logique concrète da pensée sauvage de que fala Lévi-Strauss; de qualquer modo, da lógica enquanto semiologia da narração, definível a partir de um corpus (o lendário de Koch-Grünberg) que tem muitos pontos de afinidade com o repositório empiricamente investigado por Vladímir Propp”. Daí haver, no livro teórico de Haroldo, uma aproximação da obra marioandradina com os escritos de Lévi-Strauss sobre o pensamento selvagem.
Macunaíma é uma obra também influenciada pelos movimentos de vanguarda do início do século XX, como o Dadaísmo e o Futurismo – e dezenas de estudos que apontam que isso seria uma característica etnocêntrica enganam o leitor. Ou seja, é uma obra que parece nacional, mas é extremamente internacional, brincando com a linguagem por meio do folclore. Além de dialogar com a cultura nacional, em sua obra perturbadora, Mário de Andrade compõe o estilo único de seu personagem principal.


O curioso é que o autor, ao escrever seu livro em seis dias, não parecia ter noção da síntese que estava realizando de uma certa maneira de compreender o brasileiro. Mas Macunaíma, de algum modo, também é Oswald de Andrade e sua Poesia Pau Brasil, que visava a uma ingenuidade, a uma exploração linguística. Antes de Oswald de Andrade compor sua obra, muitos contatos transcorreram entre ele e Mário.
Mário, no entanto, não alcança o sentido oswaldiano de Alteridade e analogia ao relegar a poética de Mallarmé a segundo plano, observando que a poesia “pura” não possui o mesmo espaço no seu programa quanto a poesia “desvairada”. Uma pergunta feita no “Prefácio” (“Você já leu São João Evangelista? Walt Whitman? Mallarmé? Verhaeren?”) não esclarece a relação entre Mário e a poesia de Mallarmé, pois, ao mesmo tempo em que parece destacar a do francês, colocando-o ao lado de leituras importantes (um pensamento de E. Verhaeren serve de epígrafe para o mesmo “Prefácio”), Mário parece diminuí-lo, instituindo um paradoxo.
Apoiado no subjetivismo, Mário julgava impossível chegar, com objetividade, a “fatores de proximidade e semelhança relacionando palavra no espaço, tendo em vista a simultaneidade”, o que, observa Pignatari, Mallarmé já havia feito em Un coup de dés. No entanto, a música de Mário é visível na composição de Macunaíma, criado em saltos horizontais, numa miscelânea de provocações, uma rapsódia – o que Haroldo de Campos avalia em seu estudo. Se há uma música em Macunaíma – e há, mesmo que implícita –, ela vem da linguagem corrente brasileira, do folclore singular, em que convergem personagens dos mais diversos tipos. Esta fala, no entanto, torna-se universal quando Macunaíma é produto da localidade latino-americana. Sua desconfiança em relação à fonte europeia é uma espécie de sátira de Mário em relação ao próprio modernismo, insustentável sem ser relacionado com os movimentos europeus. Ou seja, o personagem é retrato de um reprocessamento de Mário no interior da mata – em que escreveu o livro, para depois reescrevê-lo e chegar a novas versões.


Haroldo de Campos, no epílogo de Morfologia do Macunaíma, seu estudo sobre a obra de Mário de Andrade, afirma que este, apesar de sua aversão a Mallarmé, tinha conhecimento comprovado de sua obra. Haroldo lembra que na biblioteca particular de Mário há um livro de Mallarmé, La poésie de Stéphane Mallarmé. Nele, Mário, ao lado de alguns poemas, escreve observações do crítico Albert Thibaudet. Imbuído pela vontade de ligar Macunaíma ao poema Un coup de dés, Haroldo chama a atenção para o fato de que o herói sem nenhum caráter se transformar, em seu final, na “Ursa-Maior”, o que poderia remeter à constelação final do poema de Mallarmé: “Macunaíma se transforma no ‘brilho bonito mas inútil porém de mais uma constelação’, depois de provar o sem-sentido de sua-existência. Esta constelação é a Ursa-Maior. No céu metafórico do Coup de dés, depois que o Mestre [...], náufrago solitário, percebe a inutilidade do lance de dados (que jamais abolirá o acaso), desenha-se, com uma esperança-probabilidade última (para além de todo acte inutile, de ‘todo resultado nulo humano’), suspensa pelo fio de um ‘talvez’ (‘EXCEPTÉ PEUT-ÊTRE…’), uma ‘constelação’, ‘fria de olvido e dessuetude’, a Grande Ursa com suas sete estrelas… É um ‘cálculo total em formação’, que se enumera ‘vigiando duvidando rolando brilhando e meditando’, ‘sobre alguma superfície vacante e superior’ (assim como o herói-Ursa Maior ‘banza solitário no campo vasto do céu’)”.


Para Haroldo, Mário realiza, de forma inconsciente (Haroldo não utiliza essa palavra, que, no entanto, parece ser mais adequada), uma espécie de “sequestro” da obra de Mallarmé. De qualquer modo, em carta de 7 de novembro de 1927, Mário pedia que Manuel não confundisse o símbolo em que se transformou Macunaíma, o herói malandro da prosa moderna, com o símbolo de Mallarmé, que retrataria o Simbolismo.
Mário perguntava no texto A escrava que não é Isaura sobre a estética modernista: “[...] onde nos levou a contemplação do pletórico século XX?”. E respondia: “Ao redescobrimento da Eloquência. Teorias e exemplo de Mallarmé, o errado Prends l’éloquence et tords-lui son cou de Verlaine, deliciosos poetas do não-vai-nem-vem não preocupam mais a sinceridade do poeta modernista”. Exclamando, em maiúsculas, que “É PRECISO EVITAR MALLARMÉ!”, Haroldo de Campos entende que para Mário o pecado do poeta francês havia sido a “intelectualização”, optando pelo “elogio do sentimento e do subconsciente (no fundo, a escrita automática dos surrealistas, estes rhéteurs por excelência da poesia moderna [...])”.
Mário de Andrade, ao destacar a importância do “redescobrimento da Eloquência”, estaria configurando a eloquência, segundo Nelly Novaes Coelho, como se identificada “à autenticidade vivencial, ao dinamismo criador [...] e nunca a uma retórica balofa e gratuita que define os diluidores românticos e parnasianos, ainda remanescentes naquele princípio de século, entre nós”. Nelly lembra que Mário destaca em seu texto que a eloquência é “filha legítima da vida”. Dessa maneira, o repúdio a Mallarmé, no pedido (ou grito?) “É PRECISO EVITAR MALLARMÉ!”, encontrado em A escrava que não é Isaura, prender-se-ia ao “intelectualismo estetizante do grande poeta francês”, ignorando, ao mesmo tempo, sua analogia, que se preocupava com a correspondência dos símbolos, o que não instigava Mário. Nos apêndices desse texto, Mário considerava ainda que

Mallarmé tinha o que chamaremos sensações por analogia. Nada de novo. Poetas de todas as épocas as tiveram. Mas Mallarmé, percebida a analogia inicial, abandonava a sensação, o lirismo, preocupando-se unicamente com a analogia criada. Contava-a e o que é pior desenvolvi-a intelectualmente, obtendo assim enigmas que são joias de factura mas desprovidos muitas vezes de lirismo e sentimento. [...] Inegavelmente com esse processo de desenvolver pela inteligência a imagem inicial, com estar sempre ao lado do sentimento em contínuas analogias e perífrases a obra de Mallarmé apresenta um aspecto de coisa falsa, de preciosismo, muito pouco aceitável para a sinceridade sem vergonha dos modernistas.


Como lembra Nelly, é mais do que normal, portanto, que Mário considerasse Rimbaud um perfeito exemplo de poesia modernista, como se fosse o resultado “daquilo que o subconsciente envia à inteligência do Poeta”, embora, mais tarde, ele também viesse a desconsiderar o autor de Illuminations, atacando-o nos mesmos pontos de Mallarmé.
O fato é que, a princípio, Mário não apreciava realmente a obra de Mallarmé, a ponto de escrever em cartas trocadas com Manuel Bandeira muitas críticas a ele. Em carta de 16 de dezembro de 1924, ao ser solicitado, por Bandeira, em missiva de 8 de dezembro, a discorrer sobre a posição de Pierre (embora o tivesse chamado de Paul) Reverdy na poesia moderna, criticando este autor, cujos poemas lhe soavam cansativos, Mário o coloca na mesma descendência de Mallarmé. Este, para Mário, porém (isso, à exceção de outros comentários, é um elogio), “tinha uma arte de compor e uma graça de dizer infinitas que fazem prazer”, ao contrário de Reverdy, “mais pesado, mais desgracioso”. Mário liga este tipo de poesia à música, que é “de todas as artes a que com mais facilidade consegue atingir a chamada Arte Pura, isto é, sem nenhuma relação com os interesses da vida e nenhuma referência a esta, por não ser inteligentemente compreensível”. As “artes da palavra” constituíam-se, para Mallarmé, naquilo que menos se pode aproximar dessa “Arte Pura” musical, ao lidar com vozes, “diretamente e unicamente compreensíveis pela inteligência”. Desse modo, para Mallarmé, as “artes da palavra” deveriam ser “impuras”, representando “coisas inteligíveis”, pois “Toda e qualquer rebusca literária que prejudica a clareza da expressão literária relacionada é defeito”. Isso se explica, na concepção de Mário, por seu pouco interesse por Mallarmé, Góngora e Reverdy. Acusando, ainda, a incompreensibilidade de alguns poemas, Mário lamenta que a poesia de Reverdy, na mesma linha mallarmeana, “pau, cansativa e não-me-amólica”, apenas dificulte o processo de interpretação do leitor, sem dar maior alegria quando o significado é atingido.


A “negação”, ou mesmo o desconhecimento, de Mário de Andrade em relação a Mallarmé é curiosa, pois este buscava uma ligação entre a música e a literatura, em seus poemas – destacadamente no objeto em questão, que é Un coup de dés – e textos teóricos (“La musique et les lettres”, “Richard Wagner”, entre outros), o que Mário fazia na época, sobretudo porque era um estudioso de música brasileira, uma vez que também escreveu, entre outros, o livro Pequena história da música (1944).
Também no “Prefácio interessantíssimo”, Mário perde a oportunidade, segundo Décio Pignatari no artigo “Poesia concreta: organização” (1957), de se aproximar de Mallarmé. Ele lembra que Mário afirma, neste texto, que a poética, com “rara exceção até meados do século 19 francês, foi essencialmente melódica”. Para Mário, o “verso melódico” seria o mesmo que “melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, contendo pensamento inteligível”. Se forem reunidas “palavras sem ligação imediata entre si”, que, “pelo fato mesmo de não se seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias”, apostando numa enumeração, em que cada uma forma uma fase, “período elíptico, reduzido ao mínimo talegráfico”, teremos, então, segundo Mário, o verso harmônico, sem melodia, isto é, frase gramatical, mas com “acorde arpejado, harmonia”. Em sua obra, porém, Mário afirma usar não só palavras, mas frases soltas, com a mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodia)”, resultando numa “polifonia poética”. Para Pignatari, Mário não conseguiu enxergar a “sintaxe visual”, como o fez a poesia concreta. Apoiado no subjetivismo, Mário julgava impossível chegar, com objetividade, a “fatores de proximidade e semelhança relacionando palavra no espaço, tendo em vista a simultaneidade”, o que, observa Pignatari, Mallarmé já havia feito em Un coup de dés.
Em outra carta, esta de 13 de julho de 1929, Mário criticava o fato de os surrealistas considerarem Mallarmé parte de sua estirpe, o que seria uma “bobagem clara”, uma vez que não há nada mais “contrário ao automatismo psíquico” do que Mallarmé e Paul Valéry. Ou seja, Mário se colocava contra a escolha de Mallarmé por uma poesia “pura”, hermética, próxima à música, da qual ele mesmo compartilhava, em estudos e obras nesse campo, o que sugere um interessante paradoxo dentro de sua concepção modernista, por escolha de autores ligados pelo caráter combativo e agressivo de suas obras. Afinal, Macunaíma é – e continua sendo – sua mais forte rapsódia, o que prova Haroldo de Campos em seu estudo referencial, uma das prosas com calibre poético mais interessantes feitas no âmbito latino-americano. E muito superior à obra essencialmente poética de Mário.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Uma semana para a modernidade

Por André Dick

Foi Oswald de Andrade quem liderou, através de jornais e na procura de companheiros para defender seus ideais poéticos, a propagação do Modernismo, baseado nas correntes de vanguarda europeia. Ele teria como ponto de difusão a Semana de Arte Moderna, que aconteceu, sob aplausos e vaias, entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Sem a poesia e a teoria de Oswald, possivelmente o modernismo não teria sido o que foi. Em “Como se produziu a Semana de Arte Moderna” (de Estética e o política), afirma: “Os elementos que utilizamos contra os velhos recursos da poesia sabida e metrificada são a pela liberdade da criação, a valorização do inconsciente, do cotidiano e do mecânico. Do cotidiano que vai até o vulgar estão o popular e o revolucionário. No inconsciente escondem-se o primitivo, o nativo, o geográfico e o telúrico. Nesses caminhos se cria a poesia nova no Brasil”.


O país estava, como a literatura, em fase de mudança, dividido, claramente, entre o rural e o urbano. Os senhores rurais estavam no poder, fortalecidos pela economia do café, cuja centralização se dava no eixo São Paulo-Minas Gerais; a sociedade era organizada em oligarquias, com famílias e grupos políticos se perpetuando no poder e os presidentes eram eleitos por São Paulo ou Minas Gerais, gerando a política café-com-leite, cuja duração se estendeu até 1930. As cidades, principalmente São Paulo, conheciam uma rápida industrialização, causada pela Primeira Guerra Mundial, que proporcionava lucros somente à burguesia industrial, embora marginalizada pelo governo federal, voltado para a produção e a exportação do café. Nesse panorama, também aumentava, consideravelmente, o número de imigrantes europeus, sobretudo italianos, que se dirigiam tanto para a zona urbana quanto para a zona rural. A sociedade era, então, claramente dividida. Havia os barões do café e a alta burguesia lucrando e a pequena burguesia, formada por funcionários públicos e comerciantes, entre outros, deixada de lado. São Paulo era o palco de uma gama considerável de trabalhadores, muitos deles anarquistas, responsáveis por uma série de greves históricas. A imprensa da época, assim, acostumava-se, cada vez mais, com artigos da Revolução Russa, antecedendo a entrada, em terras brasileiras, do Partido Comunista, exatamente no mesmo ano da Semana de Arte Moderna.
Esta se apresentou como um ataque, duro e contundente, à aristocracia e à burguesia, dominante e impopular – no entanto, partia, em parte, de dentro dela, como quase todos os movimentos de vanguarda (a começar pela emblemática figura de Oswald). Depois da Semana de Arte Moderna, Oswald não deixou de ir à França, lugar onde vislumbrou, em 1923, o que mais tarde constituiria a poesia Pau Brasil, a poesia brasileira de exportação, voltada, para uma linguagem adequada aos novos conceitos poéticos, despertados pelo Dadaísmo, pelo Cubismo e pelo Futurismo, além de inimiga principal dos sonetos de Olavo Bilac.


Isso aconteceu quando Oswald estava em Paris, numa de suas viagens ao continente europeu. Como observa Paulo Prado – principal patrocinador da Semana de Arte Moderna –, no prefácio do livro de poemas Pau Brasil, lançado em 1925, um ano depois do manifesto, com o mesmo nome, “Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra”. Paulo Prado afirma mais, em seu prefácio: que, para Oswald, “a volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia ‘pau-brasil’”.
Para Paulo Prado, “a poesia ‘pau-brasil’ é, entre nós, o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro”. Esse esforço, obviamente, vinha acompanhado de uma nova visão artística europeia, alimentada pela entrada de Oswald pelo mundo das vanguardas. Como ele confessou mais tarde, num de seus tantos livros de memórias, o que importava para ele não era o marxismo, comentado como nunca àquela época, mas o Futurismo de Marinetti, combatido pelas rodas literárias burocratas.
A visão empregada pelo livro de poemas Pau Brasil – a melhor obra do modernismo, ao lado dos manifestos, das pinturas de Tarsila, Anita Malfatti e de Di Cavalcanti, dos poemas de Bopp, Bandeira, Ronald Carvalho e Luís Aranha, do Macunaíma, de Mário de Andrade, da música de Villa-Lobos, dos ensaios de Paulo Prado e do jornalismo de Pagu –, no entanto, só pode ser devidamente explorada se tivermos um conhecimento do manifesto que o precedeu, assim como da Semana de Arte Moderna, e, no fundo, acabou por constituí-lo, originado, obviamente, desse novo olhar de Oswald sobre Paris, sobre o Brasil e sobre o mundo. Se Oswald descobriu o Brasil em cima da Torre Eiffel, é porque descobriu que somos tão melancólicos quanto os europeus. O próprio caderno de poesias de Oswald de Andrade, com referências diretas à infância, além dos desenhos, mostra uma vida que não existe mais. Resta a visão dos cafezais devastados pela quebra na bolsa - e esse é também o retrato da Semana, de uma cultura ao mesmo tempo dominada pela força de lei e à busca de uma liberdade para a linguagem.


Se Mário tinha o sonho de fazer uma gramática com as palavras grafadas da maneira que o povo as falava, Oswald realiza, em seu programa de Poesia Pau Brasil, nela própria, e ainda no Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade, o que pode se chamar de “poética da infância”. Seu objetivo era oferecer a noção de que o novo vinha do vocabulário do povo, mas não em seu elemento digerido, antropófago – se não levarmos em conta aqui, é claro, a influência de Blaise Cendrars, devorado no banquete oswaldiano –, e sim de seu primeiro olhar, de criança, primitivo de outra maneira, não a mesma, portanto, de Mário. O primitivo de Mário era mais de raiz popular, o de Oswald, embora baseado num suposto olhar de criança, mais crítico - como o índio antropófago. Se Mário diz, no “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada, que “na minha poesia a gramática às vezes é desprezada” e “Escrevo brasileiro”, Oswald define no poema “3 de maio”: “Aprendi com meu filho de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que nunca vi”.
Este primitivismo, segundo Benedito Nunes, “correspondeu ao sobressalto étnico que atingiu o século XX, encurvando a sensibilidade moderna menos na direção da arte primitiva propriamente dita do que no rumo, por essa arte apontado, em decorrência do choque que a sua descoberta produziu na cultura europeia, do ‘pensamento selvagem’ – pensamento mito-poético, que participa da lógica do imaginário, e o que é selvagem por oposição ao pensar cultivado, utilitário e domesticado”. Mário de Andrade, por exemplo, tinha ressalvas claras ao futurismo.
Antes de Oswald de Andrade constituir sua obra, muitos contatos transcorreram entre eles. Mário de Andrade já possuía dois livros, Há uma gota de sangue em cada poema (1917), que seria negado por ele, e Pauliceia desvairada (1921), considerado o clássico do autor.


Tais livros exerceriam estranhamento em Oswald, a ponto de este dedicar a Mário, em maio de 1921, um artigo chamado “O meu poeta futurista”, em que o futuro pai de João Miramar discorria sobre as ligações do parceiro com os movimentos de vanguarda europeus, sobretudo com o futurismo, o que seria rebatido no “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada, se não de maneira completa, pelo menos de forma contundente. Ao mesmo tempo, Mário faria um mea-culpa:

Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que discutiriam minhas ideias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já agora não me calo. Tanto ridicularizariam meu silêncio como esta grita.

Ainda sobre Marinetti, comenta mais adiante: “Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo, simbólico, universal, musical da palavra em liberdade”, tão “velha como Adão”, mas cometeu um erro, fazendo dela sistema, quando é “apenas auxiliar poderosíssimo”. Na verdade, Mário era um modernista ponderado – mas não menos importante para o modernismo como conceito.
Oswald de Andrade lidava com o mesmo homem primitivo, talvez rude, do companheiro de geração, Mário, mas possuía um olhar mais crítico, antropofágico, recebendo com muito interesse o diálogo que alguns poetas queriam travar, com o jornal, mais destacadamente. Oswald, assim, incorporou bem as ideias de Mallarmé e dos dadaístas na correspondência entre a poesia e o jornal, não só quando passou a pedir uma poética baseada nos fatos no cotidiano, mas, sobretudo, através do tratamento dado à tipografia ao trabalho gráfico dos poemas, valorizando os cortes, a sintaxe menos linear, a dispersão de palavras.


A “Antropofagia” de Oswald, por meio da produção do manifesto e dos poemas, para Haroldo, é “o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’ (...), mas sob o ponto de vista desabusado do ‘mau selvagem’, devorador de brancos, antropófago”. Sob este ponto de vista, o que Oswald realiza em sua obra representa os resíduos da poesia de Blaise Cendrars apenas em sua forma. Ele oferece ao leitor uma visão crítica da história, não encontrada no exotismo sublimado por Cendrars nas paisagens do Brasil que o encantaram, mas diz mais: o poeta sabe que não existe o Brasil que imagina, por isso se faz melancólico. Esta questão é muito mais complexa, como prova o movimento de Gregório de Matos Guerra, que, depois de sua passagem pela Europa, volta à Bahia, trazendo o Barroco na bagagem e fazendo uma literatura formalista num século em que o Brasil já estava começando a querer ser romântico.
Benedito destaca, no artigo “Do tabu ao totem”, que “Quando nos mirássemos no espelho do estrangeiro, passaríamos a estranhar-nos e a descobrir nossa originalidade nativa”, convertendo-se a assimilação “numa atitude devoradora generalizada”, comeríamos “nossa herança cultural ambígua com suas reservas inconscientes de imaginário, poeticamente transladáveis, e também com seu imenso poder repressor, que aliou a catequese aos Governos Gerais”. Oswald culpava, fundamentalmente, a religião - por seu desencantamento diante de Deus, sintomático de certa modernidade (não a de um poeta como Murilo Mendes, por exemplo, da segunda fase modernista). Como escreveu em “Imprecação a Tristão de Ataíde” (de Estética e política): “O que me interessa, pois nessa curiosa Europa que para não morrer se recolheu à única trincheira que lhe restara, a do homem ‘primitivo’, a fim de dali partir - você verá - para qualquer construção oposta à lamentável Babel da civilização católico-puritana. O que me interessa é só a ‘retirada’ dessa civilização ocidental, na direção moral e mental do nosso índio. Isso sim, porque dá razão à única coisa que é nossa - o índio”.


Utilizando-se de Sigmund Freud e da antropologia, Oswald também tentava proporcionar aos seus estudos uma dimensão psicológica, a fim de estruturar o conceito de antropofagia, mas nunca ligando-o à ingenuidade que muitos críticos procuraram suscitar, apenas e simplesmente, na poesia Pau Brasil. Oswald saudava a vida do selvagem, associando às revelações freudianas do comportamento humano próprias do início do século XX: “O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido”. Com tal postura, Oswald se colocava claramente, como ele mesmo observa, “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucuras, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”. Por isso, Oswald, em cápsulas telegráficas, ponderava: “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais”; “Nunca fomos catequizados”; “Fizemos foi carnaval”; “Expulsamos a dinastia”. Utilizando o vocabulário do “pai” da psicanálise, Oswald queria a “transfiguração do Tabu em totem”, inaugurando a antropofagia.
A opção de Oswald, conforme Benedito Nunes, é “devorar as proibições e interditos ancestrais e coletivos – designados globalmente pela palavra polinésia tabu, correntemente usada pelos antropólogos, e que Freud uniria à outra, no título de seu famoso Totem e tabu”. Essa devoração viria “na companhia da má literatura”, neutralizando “a repressora força do tabu, convertendo-o em totem, ou seja, em imagem rememorativa propiciatória, como vínculo histórico com o passado”. Oswald também aprova o mesmo caminho futurista já degustado no Manifesto da Poesia Pau Brasil: “A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue”. Porém, de forma crítica, sem aceitar a dominação, embora compreenda o processo de devoração cultural.


E é esse primitivismo de vanguarda e essa devoração as bases da Semana de Arte Moderna. Mas que não se concentram na Semana, por esta não representar o modernismo brasileiro (Tarsila do Amaral, por exemplo, não participou do evento, e é mais modernista do que alguns que estiveram nele) em sua totalidade, embora seja seu principal evento. Depois dela, seria retomado mais claramente um fio de modernidade brasileira, iniciada em Sousândrade, passando por Kilkerry, Augusto dos Anjos, até os modernistas (vendo sob o ponto de vista poético, que é a principal herança da Semana). E o primitivismo de saber que algo muito forte sempre existiu no Brasil (a cultura indígena) e será retomado – desta vez, impondo-se diante da Europa.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A palavra inconcebível de Wislawa Szymborska

Por André Dick

A obra da poeta polonesa Wislawa Szymborska, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 1996, representa não apenas uma dor calculada pelas perdas da Segunda Guerra Mundial, da Guerra do Vietnã (lembrada num de seus poemas) e do terrorismo, mas também uma visão contemporânea – direcionada ao presente e ao futuro – de temas do dia a dia, como solidão, amizade, morte, esperança. Podemos ver isso no recém-lançado volume Poemas, em que Szymborska apresenta o melhor elemento da poesia polonesa: um registro de imagens ao mesmo tempo frias e intensas. Se formos lembrar, porém, outras poetas do século XX (sem querer, aqui, demarcar um gênero, mas ver a potencialidade especial da poesia escrita por mulheres), Szymborska não se parece, em termos de linguagem, com Marianne Moore ou Sylvia Plath. Sua poesia, de certo modo, é linear – mas um linear complexo, e nisso ela ganha uma intensidade incomum.


A seleção, introdução e tradução competentes de Regina Przybycien feita para o volume colabora na difícil empreitada de enfrentar uma poeta que não recita o passado, nem apresenta a poesia como um veículo edificante. Os 44 poemas da edição (de oito livros diferentes, feitos entre 1957 e 2002, ficando de fora os dois primeiros e os dois mais recentes) recuperam o que existe de mais instigante nesse trabalho: um canto desesperado de saber o quanto a poesia está deslocada, mas que remete às sensações mais complexas. Seus dois primeiros livros, como lembra a organizadora, surgiram ainda na era stalinista e “rezam pela cartilha da ideologia vigente, abordando temas edificantes em tom otimista”. De qualquer modo – acrescenta a tradutora –, “Após a morte de Stálin houve uma relativa distensão política do regime na Polônia, que permitiu aos autores expressar uma voz individual”. Nesse sentido, a poesia de Szymborska guarda uma tensão com a política (como em “Filhos da época”, no qual escreve: “Versos apolíticos também são políticos, / e no alto a lua ilumina / com um brilho já pouco lunar”). Seu conterrâneo, o excelente Czeslaw Milosz, que escreveu Mente cativa, se perfila a seu lado. Para ambos, a palavra é eminentemente política, e isso esclarece em cada construção verbal, por também ajudar a compreender o significado da ética cotidiana. É interessante como uma poeta tão sintética, mas não elíptica, nem simples ou simplista, consegue transformar seus poemas em uma matéria impenetrável (seu poema “Conversa com a pedra” resume isso: “Bato à porta da pedra / – Sou eu, me deixa entrar. / / – Não tenho porta – diz a pedra”).


Percebe-se, porém, como ela converte o que é em parte sisudo em João Cabral e Paul Celan (Modesto Carone fez uma comparação na abordagem deles a respeito da pedra, em A poética do silêncio) em algo mais fabular, embora não de acesso mais fácil. Szymborska, a partir dos poemas, quer, através do eu (os verbos na primeira pessoa perpassam, em grande conta, o livro), expor a História, presente ou futura, que, para ela, continua sendo um enigma – de qualquer modo, a universalidade do que ela diz, sem, em nenhum momento, restringir-se a um espaço determinado, do qual falaria, cria um impacto a cada leitura.
Quando escreve, Szymborska não é hermética: a construção de seus poemas tem cortes e sonoridades usuais, usando atentamente a técnica do paralelismo na maioria deles (como no ótimo “Esqueleto de dinossauro”) – no entanto, em seu discurso poético, ficam surpreendentes. Se em certos momentos sua temática alcança Paul Celan, outro autor referencial pós-guerra, sua composição contradiz, quase completamente, os hiatos entre palavras e versos. Há apenas um poema que, a meu ver, os aproxima, em “As três palavras mais estranhas” (com seu Nada e Silêncio em caixa alta, também em diálogo com o Simbolismo francês):

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.

Dessa maneira, dialoga com Celan (na tradução de João Barrento e Y.K. Centeno): “NOS RIOS a norte do futuro / lanço a rede que tu / hesitante afundas / com sombras escritas por / pedras”. Para Szymborska e Celan, a palavra reserva o Futuro, mesmo que nos remeta, também, ao passado – e o Silêncio e o Nada são imponderáveis, assim como a rede que colhe sombras escritas por pedras.


Por sua vez, seu poema “Alguns gostam de poesia” cria uma ponte com Marianne Moore, quando esta diz, em “Poesia”: “Também não gosto. / Lendo-a, no entanto, com total desprezo, a gente acaba / descobrindo / nela, afinal de contas, um lugar para o genuíno” (em tradução de José Antonio Arantes). Szymborska escreve: “Alguns – / ou seja nem todos. / Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria. / [...] / Gostam – / mas também se gosta de canja de galinha, / [...] / [...] e me agarro a isso / como a uma tábua de salvação”. Aqui, a poesia, apesar de não agradar a todos, é vista, por Marianne, como um “lugar para o genuíno”, enquanto para Szymborska é uma “tábua de salvação” – acentuando a dramaticidade, convertida em bom humor por Marianne.
Às vezes, sobressai uma certa harmonia na sua poesia, inclusive nos temas. Assim, salta aos olhos a proximidade que tem, em termos de construção, do Drummond que vai de José a Sentimento do mundo – o que a organizadora percebe, em seu prefácio instrutivo. Assim como Drummond, Szymborska não emprega a dificuldade extrema na sua composição, o que lhe permite a caudalosa montagem verbal que aciona a cada poema. Muitas vezes, os poemas lembram fábulas, histórias demarcadas e não raro a metaforização tenta encobrir o que, se não fosse assim, seria excessivamente coloquial e previsível. Sobram a ambos, também, uma espécie humor pessimista, um otimismo às avessas e um cansaço existencial de saber que tudo parece ser repetição. Isso desemboca na ironia de que fala a tradutora na introdução, “dirigida, sobretudo, para a função do poeta”, ao desmistificar a “visão romântica do poeta-criador, demiurgo e profeta sem o qual a humanidade não conseguiria resistir” – fazendo o verso ser também a narrativa de um sujeito falho, comum.


Leminski, um dos autores brasileiros de origem polonesa (escreve em Distraídos venceremos: “a Polônia na memória, / [...] / o Vístula na veia”), já apontava que isso era característico a Drummond, que se alimenta exatamente da ideia de uma narrativa mais extensa e, às vezes, preferia encerrar a estrutura com uma pausa reflexiva do sujeito.
Szymborska faleceu ontem, aos 88 anos de idade, em Cracóvia. Como ela escreve em “Entre muitos”: “Sou quem sou. / Inconcebível acaso / como todos os acasos”. Ou em “Sou uma estrela pequenina”: “Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade”. Essa poesia, assim como necessita do acaso, também é inconcebível – e se dirige tanto ao presente quanto ao futuro.