sábado, 16 de junho de 2012
Apresentamos uma seleção de textos sobre James Joyce (“Fragmentos de um discurso amoroso de James Joyce”, “Jacqumes Lalíngua Lajoycean” e “A epifania de Joyce por Barthes e Lacan”) e uma seleção de livros do escritor. Convidamos à leitura.
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Dossiê James Joyce
Fragmentos de um discurso amoroso de James Joyce
Por Nicole Cristofalo e André Dick
Segundo Michel Foucault, no ensaio “A escrita de si” (O que é um autor?), “A carta enviada atua, em virtude do próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como atua, pela leitura e a releitura, sobre aquele que a recebe”, Fernando Pessoa é mais direto: “Todas as cartas de amor são ridículas”.
No romance de Goethe, as cartas de Werther são endereçadas a um amigo: Wilhelm. A carta faz com que o destinatário dela precise refletir sobre aquilo que recebeu, e, de preferência, escrever uma carta, mais reflexiva, menos improvisada. Escreve-se como um diário, onde Werther, aliás, vê como avançou passo a passo, que agiu com consciência e não como uma criança.
Foucault prossegue: “A carta faz o diretor ‘presente’ àquele a quem a dirige. E presente não apenas pelas informações que lhe dá acerca da vida, das suas atividades, dos seus sucessos e fracassos, das suas venturas ou infortúnios; presente de uma espécie de presença imediata e quase física”, “uma maneira de se apresentar ao correspondente no decorrer da vida quotidiana”. Ora, é natural que quem não está apaixonado não queira a presença quase física do outro através da palavra. Mas quem está apaixonado quer escrever o que sente, pois escrever é “mostrar-se, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”, “uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz”. Werther não escreve a Carlota; escreve a Wilhelm: desse modo, ele compõe uma narrativa que gostaria de estar vivenciando com a amada, ou dizendo tudo isso diretamente a ela.
As cartas também reproduzem “o movimento que leva de uma impressão subjetiva a um exercício de pensamento”. Na verdade, a carta relata muitas vezes episódios que podem marcar o escrevente, mas “justamente na medida em que ele nada tem para deixar de ser igual a todos os outros, atestando assim, não a relevância de uma atividade, mas a qualidade de um modo de ser”. Também é um gesto de eremita: um Buda concentrado atingindo o Nirvana, um haicaísta olhando as folhas de outono. Werther é egocêntrico e também eremita. Pela carta, sujeitamo-nos ao fragmentarismo, que somos dois, afinal, a leitura da carta precisa ser feita: minha escrita só se completa com a leitura do outro.
Lembremos das cartas extraordinariamente românticas do insuspeito James Joyce a Martha Fleischmann, que conheceu em Trieste. Ela, segundo Edna O’Brien (na biografia James Joyce), era
uma aristocrática beldade mantida por um rico engenheiro, Rudolf Hiltplold, num apartamento bastante próximo de onde Joyce morava em Trieste. Uma dama do prazer que fumava, punha lenços perfumados com água de rosas no rego dos seixos e lia novelinhas como Molly Bloom. Deve ter ficado perplexa com aquele novo e excitável pretendente. Uma história diz-nos que ao vê-la entrando em sua própria porta ele ficou boquiaberto e disse-lhe que ela lhe lembrava uma moça que vira anos antes em Berlim entrando no mar - sua futura Nausícaa. Atacou-a com cartas antes mesmo de saber seu nome. Depois de entregá-las no apartamento dela, ficava parado na rua e via-a ler. Ela deve ter ficado intrigada e na certa lisonjeada com tais cânticos impacientes, bombásticos e operísticos.
Essas cartas foram incluídas no volume Joyce e o romance moderno, com ensaios de Umberto Eco, Michel Butor e Italo Svevo. A primeira é de dezembro de 1918 – quando já estava com Nora, com quem se casou em 1931 (os fragmentos em vermelho lembram o início e o fim de Giacomo Joyce, escrito também em Trieste, em 1914):
Você não está zangada então.
Tive febre ontem à noite, esperando um sinal de sua parte.
Mas por que você não quer me escrever uma só palavra – seu nome? E por que você sempre fecha as venezianas da janela? Quero vê-la.
Não sei o que você pensa de mim.
Como já lhe disse nós nos vimos e – falamos – mas você me esqueceu.
Quer que eu lhe diga alguma coisa?
Minha impressão de você.
Aqui está.
Você estava vestida de preto com um grande chapéu de abas flutuantes. A cor lhe caía muito bem. E pensei: um lindo animal.
Porque havia alguma coisa de franco e de quase impudico em sua postura. Depois, olhando-a, observei a indolência dos traços regulares e a suavidade dos olhos. E pensei: uma judia. Se me enganei não precisa ficar ofendida. Jesus Cristo tomou seu corpo luminoso no ventre de uma mulher judia.
Pensei muitas vezes em você e depois, quando a reconheci na janela olhava para você numa espécie de fascinação de que não posso me libertar.
Pode ser que tudo isso a deixe indiferente.
Pode ser que eu lhe pareça ridículo.
Aceito seu julgamento.
Mas ontem à noite você me fez um sinal e meu coração pulou de alegria.
Não sei sua idade.
Eu, sou velho – e me sinto mais velho ainda.
Talvez eu vivi demais.
Tenho 35 anos. É a idade que Shakespeare tinha quando concebeu sua dolorosa paixão pela “dama de preto”. É a idade que Dante tinha quando entrou na noite de seu ser.
Não sei o que acontece comigo.
É possível que uma pessoa tenha sentimentos como os meus e que a outra não tenha nada?
Não sei o que quero.
Queria falar com você.
Prevejo para mim uma noite nebulosa. Espero – e vejo você se aproximar de mim, vestida de preto, jovem, estranha e suave. Olho você nos olhos e meus olhos lhe dizem que eu sou um pobre alguém que procura neste mundo, que não compreendo nada nem de meu destino nem do destino dos outros, que vivi e pequei e criei, que irei embora, um dia, sem nada ter compreendido, na obscuridade que nos pariu a todos.
Compreendo você talvez o mistério de seu corpo quando você se olha no espelho, donde veio a luz alourada de seus olhos, a cor de seus cabelos?
Como você estava graciosa, ontem à noite, sentada na mesa, sonhadora e depois, repentinamente, levando minha carta junto à luz.
Você pensa, algumas vezes, em mim?
Escreva-me alguma coisa para o endereço que eu estou lhe dando.
Pode me escrever também em alemão. Entendo-o muito bem.
Diga-me alguma coisa de você mesma.
Sim, escreva-me amanhã.
Creio que você é boa...
Vejamos os fragmentos inicial e final de Giacomo Joyce, que lembram essas passagens em vermelho (na tradução de Paulo Leminski):
Quem? Um rosto pálido circundado por pesadas peles perfumadas. Os movimentos dela são tímidos, nervosos. Ela usa um monóculo.
Sim: uma sílaba breve. Um riso breve. Um breve bater de pálpebras.
...
Despreparo. Um apartamento nu. Nojenta luz do dia. Um grande piano preto: túmulo da música.
Equilibrado em sua borda um chapéu de mulher, com flores vermelhas, o guarda-chuva, fechado. Seu brasão: capacete, escarlate, e lança sem ponta sobre um fundo, preto.
O trecho em verde revela o que Edna O’Brien anota em sua biografia: “Ele esperava que ela fosse judia, uma Maria pagã. Sua Maria irlandesa esperava ressentida com o trabalho doméstico. Ele pediu uma resposta, desusadamente invocando a ajuda de Deus”. É difícil discordar, também, de que essas cartas não são “cânticos impacientes, bombásticos e operísticos”.
Joyce demonstra muito interesse em Martha, e o mostra com persuasão e imagens que se equilibram entre um romantismo epistolar (com a pressa telegráfica da modernidade) e a alegria de um novo amor (e neste ponto não há diferença entre o olhar que lança sobre Martha daquele que Dante lança sobre Beatriz, não levando em consideração a importância que teve Beatriz para a obra de Dante). Passa por uma febre, sugerindo que em razão dela; quer que ela abra as venezianas para que ele possa vê-la; quer dar sua impressão sobre ela; prevê para si uma “noite nebulosa”; considera-se um “pobre alguém”.
Nesse sentido, a carta pode tanto atenuar o “perigo da solidão” – dando, como afirma Foucault, a ver o que se viu (aqui, sentiu) a um “olhar possível” – como se aprofundar na solidão, com a “não-resposta”. Por isso, como Barthes dizia, ao escrever a carta, “Abandono alegremente tarefas ínspidas, escrúpulos razoáveis, condutas reativas, impostos pelo mundo, em prol de uma tarefa inútil, oriunda de um Dever vivo: o Dever amoroso. Faço discretamente coisas loucas; sou a única testemunha de minha loucura. O que o amor desnuda em mim é a energia”.
Segundo Derrida, a imaginação propicionada pela imagem (que é sempre representada pela morte, pois lembra um quadro, mesmo que no momento visto em movimento, mas morta, como se percebe pela escrita que Joyce deixou) é sempre excessiva, quer sair da linguagem real e ingressar na utopia da linguagem absoluta: é um imagem de piedade (de Martha em relação a ele) e autopiedade que Joyce compõe.
Alguns momentos de insegurança: acha estar sendo ridículo (o mesmo sentimento de Fernando Pessoa diante das cartas de amor), acredita ser velho demais para ela e não sabe direito o que quer.
Talvez Jacques Lacan, em seu curso O sinthoma, sobre Joyce, dê pistas a partir das cartas que o escritor escreveu a Nora (sua mulher):
O que nos indicam as cartas de amor para Nora? Há um certo número de coordenadas que é preciso marcar.
Que é, portanto, essa relação de Joyce com Nora? Direi, coisa singular, que é uma relação sexual, ainda que eu diga que não há relação sexual. Mas é uma relação sexual bem esquisita.
[...]
Para Joyce,só há uma mulher. Ela é sempre do mesmo modelo, e ele só a enluva com a maior das repugnâncias. É visível que apenas com a maior das depreciações é que ele faz de Nora uma mulher eleita. Não apenas é preciso que ela lhe caia como uma luva, mas que ela o cerre como um luva. Ela não serve absolutamente para nada.
Talvez a visão de Lacan seja excessivamente contundente a certa visão idealizada que Joyce fazia de suas amadas - característica de alguém moderno, e sem imaginar uma psicanálise futura a colocá-lo de forma tão despojada, mesmo que de forma muito criativa.
Joyce, em suas cartas, já começa se posicionando como Dante e Shakespeare, cuja força literária já havia se estabelecido quando começou a produzir - transformando de suas palavras quase uma continuação do sentimento daqueles autores, sobretudo da ideia de “vita nova” do primeiro (que fazia uma análise, em sua obra, de cada sensação despertada por Beatriz). E a equipara sempre a uma figura de santa (resultado certamente de sua formação católica, a qual abandonaria mais adiante, embora não para Lacan). Tudo em Joyce, mesmo essas cartas, é calculado.
No mesmo mês, sem resposta, Joyce se desespera, e cada frase escapa num estilo telegráfico, como se sua paciência para fazê-las estivesse terminando (as palavras falam por si só):
Que é que há?
Você não me cumprimentou!
Desço para a porta com esta carta.
Ofendi?
Mas como?
Peço-lhe que me mande uma palavra imediatamente. Junto um envelope já preparado. Ponha-o no correio com uma só palavra dentro.
Está zangada? Sim ou não?
Não compreendo nada.
Pelo amor de Deus me mande uma palavra.
Que linda noite vou passar.
Mais uma carta (de 9 de dezembro de 1918), enviada junto com exemplar de Chamber music (em vermelho se mostra como Joyce se sente, e faz questão de deixar claro):
Pobre e querida Martha.
O que você teve?
Ainda estou em dúvida mas me parece tê-la visto hoje à noite.
Tinha medo de lhe escrever porque não sabia quem estava em sua casa e pensei que minhas cartas poderiam cair em mãos de gente estranha.
Todas as noites eu ficava olhando.
Até me censurei pensando que sua doença fosse consequência do resfriado daquela ultima noite.
Depois pensei, eu ia lhe escrever mesmo assim e com o nome de uma amiga.
Continuo em francês porque o alemão não me vai.
Se você sofreu muito nestes dias, eu também sofri.
Parecia que o único raio de luz que nestes últimos anos atravessou a obscuridade de minha vida tinha-se apagado.
Eu estava o próprio imbecil!
Toda manhã eu abria, abria o jornal e tinha medo de ler seu nome na notícia dos falecimentos! Eu o abria sempre com angústia, muito, muito lentamente.
Pensava: ela vai partir – ela que me olhou com piedade – com ternura talvez.
A doença muda muita coisa.
Ela nos leva à beira da morte: e vemos as coisas de outra maneira.
Você não tem medo da morte – eu tenho!
Você talvez pensou que seu sentimento para comigo era uma loucura; você entreviu as sombras do além. Pois bem! São sombras mentirosas!
Gostaria de lhe mandar flores, mas tenho medo.
Esperarei ainda. Talvez não fosse você quem eu vi?
Vi meu livro de poesia em sua mão.
Você o entendeu?
Escrevi alguma coisa enquanto você esteve doente – algo de muito amargo que muito feriu meus amigos.
Sim, eu também sofri.
Hesito ainda antes de lhe mandar esta carta.
E se ela cair nas mãos de uma outra pessoa???
11 horas
Vou pôr esta carta no correio.
Não posso esperar mais!
Assim, destaca Foucault, “Por meio da missiva, abrimo-nos ao olhar dos outros e instalamos o nosso correspondente no lugar do deus interior. Ela é uma maneira de nos darmos ao olhar do qual devemos dizer a nós próprios que penetra até o fundo do nosso coração [...] no momento em que pensamos”. O gesto exige uma “introspecção”, mas há que se entender esta “menos como uma decifração de si por si mesmo do que como uma abertura de si mesmo que se dá ao outro”.
A sensações descritas por Joyce, apaixonado, provavelmente não estão de acordo com o fato de que as cartas não despertavam interesse em Martha; que seria mesmo um alívio para ela se caíssem em outras mãos, pois a pouparia de lê-las. E a doença? Seria Martha doente? E recomeça a melancolia: acha que o raio de luz (Martha) havia se apagado; considera-se um “imbecil”; diz ter medo de ler no jornal a notícia do falecimento da amada (para que ela se sinta culpada de não procurá-lo); pensa que ela o olhou com piedade (talvez com ternura); sente medo de enviar flores e ainda quer saber se ela leu seu livro de poesia (Música de câmara (Chamber music), que tem uma bela tradução de Alípio Correia de Franca Neto, um notável especialista brasileiro em Joyce), e pergunta se ela o entendeu; compara o sofrimento da doença dela com um escrito que seus amigos não gostaram (a isso Joyce se refere); e insiste no medo de que a carta caia nas mãos de outras pessoas. E, como se pergunta Edna O’Brien, “Perdera o juízo? Certamente ele o perdera quando lhe disse que olhava o jornal toda manhã temendo ler o nome dela nos anúncios de mortes”, finalizando: “A esposa (Nora) não sabia e, se soubesse, haveria briga”.
E há, por fim, outra carta, de 2 de fevereiro de 1919 (Dia da Candelária e dia do aniversário de Joyce), com suas imagens extremamente românticas (o escritor vê os lábios de Martha caindo em seu coração, “macios com folhas de rosa, suave como orvalho”), depois do encontro que finalmente conseguiu com ela:
Depois de longa espera ontem à noite vi seu rosto tão pálido, tão triste e cansado.
O primeiro cumprimento nesse dia veio de você – na noite e na noite de amargura de minha alma os beijos de seus lábios caíram no meu coração – macios como folhas de rosa, suaves como orvalho.
“O rosa mistica, ora pro me!”
Maria Candelária 1919
Para o quarto de encontro, Edna O’Brien assinala: “Ele (Joyce) acendera as velas tanto por serem românticas quanto porque desejava ser a visitante a uma luz lisonjeira”.
Martha, em dezembro de 1941, onze meses depois da morte de Joyce, procura o professor de literatura inglesa Heinrich Straumann, na Universidade de Zurique. Precisando de dinheiro, quer se desfazer de um exemplar de Chamber music, com dedicatória, quatro cartas e um cartão postal enviado por Joyce. O professor, sem querer pagá-la, deixa-a ir embora. Sete anos depois, ele compra de Elsa, irmã de Martha, o volume e as cartas. O cartão postal desaparecera. Martha Fleischmann já havia se transformado em Martha Clifford, personagem de Ulysses (mas pode-se dizer que Molly Bloom tem muito dela também).
Por Nicole Cristofalo e André Dick
Segundo Michel Foucault, no ensaio “A escrita de si” (O que é um autor?), “A carta enviada atua, em virtude do próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como atua, pela leitura e a releitura, sobre aquele que a recebe”, Fernando Pessoa é mais direto: “Todas as cartas de amor são ridículas”.
No romance de Goethe, as cartas de Werther são endereçadas a um amigo: Wilhelm. A carta faz com que o destinatário dela precise refletir sobre aquilo que recebeu, e, de preferência, escrever uma carta, mais reflexiva, menos improvisada. Escreve-se como um diário, onde Werther, aliás, vê como avançou passo a passo, que agiu com consciência e não como uma criança.
Foucault prossegue: “A carta faz o diretor ‘presente’ àquele a quem a dirige. E presente não apenas pelas informações que lhe dá acerca da vida, das suas atividades, dos seus sucessos e fracassos, das suas venturas ou infortúnios; presente de uma espécie de presença imediata e quase física”, “uma maneira de se apresentar ao correspondente no decorrer da vida quotidiana”. Ora, é natural que quem não está apaixonado não queira a presença quase física do outro através da palavra. Mas quem está apaixonado quer escrever o que sente, pois escrever é “mostrar-se, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”, “uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz”. Werther não escreve a Carlota; escreve a Wilhelm: desse modo, ele compõe uma narrativa que gostaria de estar vivenciando com a amada, ou dizendo tudo isso diretamente a ela.
As cartas também reproduzem “o movimento que leva de uma impressão subjetiva a um exercício de pensamento”. Na verdade, a carta relata muitas vezes episódios que podem marcar o escrevente, mas “justamente na medida em que ele nada tem para deixar de ser igual a todos os outros, atestando assim, não a relevância de uma atividade, mas a qualidade de um modo de ser”. Também é um gesto de eremita: um Buda concentrado atingindo o Nirvana, um haicaísta olhando as folhas de outono. Werther é egocêntrico e também eremita. Pela carta, sujeitamo-nos ao fragmentarismo, que somos dois, afinal, a leitura da carta precisa ser feita: minha escrita só se completa com a leitura do outro.
Lembremos das cartas extraordinariamente românticas do insuspeito James Joyce a Martha Fleischmann, que conheceu em Trieste. Ela, segundo Edna O’Brien (na biografia James Joyce), era
uma aristocrática beldade mantida por um rico engenheiro, Rudolf Hiltplold, num apartamento bastante próximo de onde Joyce morava em Trieste. Uma dama do prazer que fumava, punha lenços perfumados com água de rosas no rego dos seixos e lia novelinhas como Molly Bloom. Deve ter ficado perplexa com aquele novo e excitável pretendente. Uma história diz-nos que ao vê-la entrando em sua própria porta ele ficou boquiaberto e disse-lhe que ela lhe lembrava uma moça que vira anos antes em Berlim entrando no mar - sua futura Nausícaa. Atacou-a com cartas antes mesmo de saber seu nome. Depois de entregá-las no apartamento dela, ficava parado na rua e via-a ler. Ela deve ter ficado intrigada e na certa lisonjeada com tais cânticos impacientes, bombásticos e operísticos.
Essas cartas foram incluídas no volume Joyce e o romance moderno, com ensaios de Umberto Eco, Michel Butor e Italo Svevo. A primeira é de dezembro de 1918 – quando já estava com Nora, com quem se casou em 1931 (os fragmentos em vermelho lembram o início e o fim de Giacomo Joyce, escrito também em Trieste, em 1914):
Você não está zangada então.
Tive febre ontem à noite, esperando um sinal de sua parte.
Mas por que você não quer me escrever uma só palavra – seu nome? E por que você sempre fecha as venezianas da janela? Quero vê-la.
Não sei o que você pensa de mim.
Como já lhe disse nós nos vimos e – falamos – mas você me esqueceu.
Quer que eu lhe diga alguma coisa?
Minha impressão de você.
Aqui está.
Você estava vestida de preto com um grande chapéu de abas flutuantes. A cor lhe caía muito bem. E pensei: um lindo animal.
Porque havia alguma coisa de franco e de quase impudico em sua postura. Depois, olhando-a, observei a indolência dos traços regulares e a suavidade dos olhos. E pensei: uma judia. Se me enganei não precisa ficar ofendida. Jesus Cristo tomou seu corpo luminoso no ventre de uma mulher judia.
Pensei muitas vezes em você e depois, quando a reconheci na janela olhava para você numa espécie de fascinação de que não posso me libertar.
Pode ser que tudo isso a deixe indiferente.
Pode ser que eu lhe pareça ridículo.
Aceito seu julgamento.
Mas ontem à noite você me fez um sinal e meu coração pulou de alegria.
Não sei sua idade.
Eu, sou velho – e me sinto mais velho ainda.
Talvez eu vivi demais.
Tenho 35 anos. É a idade que Shakespeare tinha quando concebeu sua dolorosa paixão pela “dama de preto”. É a idade que Dante tinha quando entrou na noite de seu ser.
Não sei o que acontece comigo.
É possível que uma pessoa tenha sentimentos como os meus e que a outra não tenha nada?
Não sei o que quero.
Queria falar com você.
Prevejo para mim uma noite nebulosa. Espero – e vejo você se aproximar de mim, vestida de preto, jovem, estranha e suave. Olho você nos olhos e meus olhos lhe dizem que eu sou um pobre alguém que procura neste mundo, que não compreendo nada nem de meu destino nem do destino dos outros, que vivi e pequei e criei, que irei embora, um dia, sem nada ter compreendido, na obscuridade que nos pariu a todos.
Compreendo você talvez o mistério de seu corpo quando você se olha no espelho, donde veio a luz alourada de seus olhos, a cor de seus cabelos?
Como você estava graciosa, ontem à noite, sentada na mesa, sonhadora e depois, repentinamente, levando minha carta junto à luz.
Você pensa, algumas vezes, em mim?
Escreva-me alguma coisa para o endereço que eu estou lhe dando.
Pode me escrever também em alemão. Entendo-o muito bem.
Diga-me alguma coisa de você mesma.
Sim, escreva-me amanhã.
Creio que você é boa...
Vejamos os fragmentos inicial e final de Giacomo Joyce, que lembram essas passagens em vermelho (na tradução de Paulo Leminski):
Quem? Um rosto pálido circundado por pesadas peles perfumadas. Os movimentos dela são tímidos, nervosos. Ela usa um monóculo.
Sim: uma sílaba breve. Um riso breve. Um breve bater de pálpebras.
...
Despreparo. Um apartamento nu. Nojenta luz do dia. Um grande piano preto: túmulo da música.
Equilibrado em sua borda um chapéu de mulher, com flores vermelhas, o guarda-chuva, fechado. Seu brasão: capacete, escarlate, e lança sem ponta sobre um fundo, preto.
O trecho em verde revela o que Edna O’Brien anota em sua biografia: “Ele esperava que ela fosse judia, uma Maria pagã. Sua Maria irlandesa esperava ressentida com o trabalho doméstico. Ele pediu uma resposta, desusadamente invocando a ajuda de Deus”. É difícil discordar, também, de que essas cartas não são “cânticos impacientes, bombásticos e operísticos”.
Joyce demonstra muito interesse em Martha, e o mostra com persuasão e imagens que se equilibram entre um romantismo epistolar (com a pressa telegráfica da modernidade) e a alegria de um novo amor (e neste ponto não há diferença entre o olhar que lança sobre Martha daquele que Dante lança sobre Beatriz, não levando em consideração a importância que teve Beatriz para a obra de Dante). Passa por uma febre, sugerindo que em razão dela; quer que ela abra as venezianas para que ele possa vê-la; quer dar sua impressão sobre ela; prevê para si uma “noite nebulosa”; considera-se um “pobre alguém”.
Nesse sentido, a carta pode tanto atenuar o “perigo da solidão” – dando, como afirma Foucault, a ver o que se viu (aqui, sentiu) a um “olhar possível” – como se aprofundar na solidão, com a “não-resposta”. Por isso, como Barthes dizia, ao escrever a carta, “Abandono alegremente tarefas ínspidas, escrúpulos razoáveis, condutas reativas, impostos pelo mundo, em prol de uma tarefa inútil, oriunda de um Dever vivo: o Dever amoroso. Faço discretamente coisas loucas; sou a única testemunha de minha loucura. O que o amor desnuda em mim é a energia”.
Segundo Derrida, a imaginação propicionada pela imagem (que é sempre representada pela morte, pois lembra um quadro, mesmo que no momento visto em movimento, mas morta, como se percebe pela escrita que Joyce deixou) é sempre excessiva, quer sair da linguagem real e ingressar na utopia da linguagem absoluta: é um imagem de piedade (de Martha em relação a ele) e autopiedade que Joyce compõe.
Alguns momentos de insegurança: acha estar sendo ridículo (o mesmo sentimento de Fernando Pessoa diante das cartas de amor), acredita ser velho demais para ela e não sabe direito o que quer.
Talvez Jacques Lacan, em seu curso O sinthoma, sobre Joyce, dê pistas a partir das cartas que o escritor escreveu a Nora (sua mulher):
O que nos indicam as cartas de amor para Nora? Há um certo número de coordenadas que é preciso marcar.
Que é, portanto, essa relação de Joyce com Nora? Direi, coisa singular, que é uma relação sexual, ainda que eu diga que não há relação sexual. Mas é uma relação sexual bem esquisita.
[...]
Para Joyce,só há uma mulher. Ela é sempre do mesmo modelo, e ele só a enluva com a maior das repugnâncias. É visível que apenas com a maior das depreciações é que ele faz de Nora uma mulher eleita. Não apenas é preciso que ela lhe caia como uma luva, mas que ela o cerre como um luva. Ela não serve absolutamente para nada.
Talvez a visão de Lacan seja excessivamente contundente a certa visão idealizada que Joyce fazia de suas amadas - característica de alguém moderno, e sem imaginar uma psicanálise futura a colocá-lo de forma tão despojada, mesmo que de forma muito criativa.
Joyce, em suas cartas, já começa se posicionando como Dante e Shakespeare, cuja força literária já havia se estabelecido quando começou a produzir - transformando de suas palavras quase uma continuação do sentimento daqueles autores, sobretudo da ideia de “vita nova” do primeiro (que fazia uma análise, em sua obra, de cada sensação despertada por Beatriz). E a equipara sempre a uma figura de santa (resultado certamente de sua formação católica, a qual abandonaria mais adiante, embora não para Lacan). Tudo em Joyce, mesmo essas cartas, é calculado.
No mesmo mês, sem resposta, Joyce se desespera, e cada frase escapa num estilo telegráfico, como se sua paciência para fazê-las estivesse terminando (as palavras falam por si só):
Que é que há?
Você não me cumprimentou!
Desço para a porta com esta carta.
Ofendi?
Mas como?
Peço-lhe que me mande uma palavra imediatamente. Junto um envelope já preparado. Ponha-o no correio com uma só palavra dentro.
Está zangada? Sim ou não?
Não compreendo nada.
Pelo amor de Deus me mande uma palavra.
Que linda noite vou passar.
Mais uma carta (de 9 de dezembro de 1918), enviada junto com exemplar de Chamber music (em vermelho se mostra como Joyce se sente, e faz questão de deixar claro):
Pobre e querida Martha.
O que você teve?
Ainda estou em dúvida mas me parece tê-la visto hoje à noite.
Tinha medo de lhe escrever porque não sabia quem estava em sua casa e pensei que minhas cartas poderiam cair em mãos de gente estranha.
Todas as noites eu ficava olhando.
Até me censurei pensando que sua doença fosse consequência do resfriado daquela ultima noite.
Depois pensei, eu ia lhe escrever mesmo assim e com o nome de uma amiga.
Continuo em francês porque o alemão não me vai.
Se você sofreu muito nestes dias, eu também sofri.
Parecia que o único raio de luz que nestes últimos anos atravessou a obscuridade de minha vida tinha-se apagado.
Eu estava o próprio imbecil!
Toda manhã eu abria, abria o jornal e tinha medo de ler seu nome na notícia dos falecimentos! Eu o abria sempre com angústia, muito, muito lentamente.
Pensava: ela vai partir – ela que me olhou com piedade – com ternura talvez.
A doença muda muita coisa.
Ela nos leva à beira da morte: e vemos as coisas de outra maneira.
Você não tem medo da morte – eu tenho!
Você talvez pensou que seu sentimento para comigo era uma loucura; você entreviu as sombras do além. Pois bem! São sombras mentirosas!
Gostaria de lhe mandar flores, mas tenho medo.
Esperarei ainda. Talvez não fosse você quem eu vi?
Vi meu livro de poesia em sua mão.
Você o entendeu?
Escrevi alguma coisa enquanto você esteve doente – algo de muito amargo que muito feriu meus amigos.
Sim, eu também sofri.
Hesito ainda antes de lhe mandar esta carta.
E se ela cair nas mãos de uma outra pessoa???
11 horas
Vou pôr esta carta no correio.
Não posso esperar mais!
Assim, destaca Foucault, “Por meio da missiva, abrimo-nos ao olhar dos outros e instalamos o nosso correspondente no lugar do deus interior. Ela é uma maneira de nos darmos ao olhar do qual devemos dizer a nós próprios que penetra até o fundo do nosso coração [...] no momento em que pensamos”. O gesto exige uma “introspecção”, mas há que se entender esta “menos como uma decifração de si por si mesmo do que como uma abertura de si mesmo que se dá ao outro”.
A sensações descritas por Joyce, apaixonado, provavelmente não estão de acordo com o fato de que as cartas não despertavam interesse em Martha; que seria mesmo um alívio para ela se caíssem em outras mãos, pois a pouparia de lê-las. E a doença? Seria Martha doente? E recomeça a melancolia: acha que o raio de luz (Martha) havia se apagado; considera-se um “imbecil”; diz ter medo de ler no jornal a notícia do falecimento da amada (para que ela se sinta culpada de não procurá-lo); pensa que ela o olhou com piedade (talvez com ternura); sente medo de enviar flores e ainda quer saber se ela leu seu livro de poesia (Música de câmara (Chamber music), que tem uma bela tradução de Alípio Correia de Franca Neto, um notável especialista brasileiro em Joyce), e pergunta se ela o entendeu; compara o sofrimento da doença dela com um escrito que seus amigos não gostaram (a isso Joyce se refere); e insiste no medo de que a carta caia nas mãos de outras pessoas. E, como se pergunta Edna O’Brien, “Perdera o juízo? Certamente ele o perdera quando lhe disse que olhava o jornal toda manhã temendo ler o nome dela nos anúncios de mortes”, finalizando: “A esposa (Nora) não sabia e, se soubesse, haveria briga”.
E há, por fim, outra carta, de 2 de fevereiro de 1919 (Dia da Candelária e dia do aniversário de Joyce), com suas imagens extremamente românticas (o escritor vê os lábios de Martha caindo em seu coração, “macios com folhas de rosa, suave como orvalho”), depois do encontro que finalmente conseguiu com ela:
Depois de longa espera ontem à noite vi seu rosto tão pálido, tão triste e cansado.
O primeiro cumprimento nesse dia veio de você – na noite e na noite de amargura de minha alma os beijos de seus lábios caíram no meu coração – macios como folhas de rosa, suaves como orvalho.
“O rosa mistica, ora pro me!”
Maria Candelária 1919
Para o quarto de encontro, Edna O’Brien assinala: “Ele (Joyce) acendera as velas tanto por serem românticas quanto porque desejava ser a visitante a uma luz lisonjeira”.
Martha, em dezembro de 1941, onze meses depois da morte de Joyce, procura o professor de literatura inglesa Heinrich Straumann, na Universidade de Zurique. Precisando de dinheiro, quer se desfazer de um exemplar de Chamber music, com dedicatória, quatro cartas e um cartão postal enviado por Joyce. O professor, sem querer pagá-la, deixa-a ir embora. Sete anos depois, ele compra de Elsa, irmã de Martha, o volume e as cartas. O cartão postal desaparecera. Martha Fleischmann já havia se transformado em Martha Clifford, personagem de Ulysses (mas pode-se dizer que Molly Bloom tem muito dela também).
Jacqumes Lalíngua Lajoycean
Por André Dick
Haroldo de Campos, no ensaio “O afreudisíaco Lacan na Galáxia de lalíngua (Freud, Lacan e a escritura)” – incluído em O segundo arco-íris branco –, lembra a consideração conclusiva, apresentada por Jan Miel, na revista Yale French Studies, na qual a obra de Lacan era apresentada ao público de língua inglesa: “Uma palavra final sobre o estilo de Jacques Lacan. Como amigo ou médico de alguns dos principais artistas e poetas deste século, e sendo ele próprio um agudo crítico da literatura, o Dr. Lacan não regateia as vantagens de uma expressão literária complexa. Seu estilo, chamado mallarmeano por seus próprios colegas e, por vezes, imensamente difícil, de um modo deliberado...”.
Haroldo acrescenta: “O paralelo cabe à maravilha, já que, na esteira de Mallarmé, Lacan é também um ‘syntaxier’ (um ‘sintaxista’), um exímio manipulador da sintaxe francesa até os seus extremos limites da diagramação frásica”. A este argumento de Haroldo, Leyla Perrone-Moisés acrescenta no ensaio “Lacan, o bruxo”:
Em seu próprio estilo de escritor, Lacan soube receber e desenvolver as lições poéticas dos poetas do barroco espanhol, de Mallarmé, Joyce e Lewis Carroll. É nesses geniais “trocadilhistas”, e não nos surrealistas, formalmente acadêmicos, que Lacan reconhece um saber relativo ao inconsciente. [...] O texto de Lacan é um discurso duplo, teoria-escritura que, ao mesmo tempo, fala do inconsciente e diz o inconsciente, mimando suas torções sintáticas, seus deslocamentos, suas compressões, seus chistes. [...] Que texto é esse, senão o da poesia? Mas Lacan é bruxo porque é poeta, e os poetas sabiam do inconsciente antes mesmo de Freud.
É interessante observar que alguns dos maiores escritores de uma prosa estranha – que lembra a poesia –, na França, depois de Rimbaud e Mallarmé são filósofos (como Jacques Derrida), críticos literários (Roland Barthes) e psicanalistas (como é o caso de Jacques Lacan). Quando lemos livros como O sinthoma (dedicado à análise da obra de Joyce), Mais, ainda (com apresentações seminais sobre o Barroco e a linguística) e De um discurso que não fosse semblante (com textos sobre o Oriente), é possível considerar que, por meio do Real-Simbólico-Imaginário (RSI), Lacan compôs uma teoria poética.
É importante lembrar que Freud trabalha com três instâncias para caracterizar o indivíduo: o Id, o Ego e o Superego (ao qual, aqui, não daremos especial atenção). Ao invés de utilizar essa tripartição freudiana, Lacan criará outra, constituída pelo Simbólico, pelo Imaginário e pelo Real. O Simbólico seria o que preexiste ao sujeito (dependendo da “linguagem” social), atuando como uma espécie de Imaginário visível. Não se pode, portanto, separá-lo totalmente do Imaginário, que contém elementos do Id e do Ego freudiano, no qual se funda uma espécie de sistema ilusório, em que se processariam todos os problemas do ser humano, sobretudo sua histeria, suas neuroses, seus atos falhos, compondo o que chamamos de personalidade. Mas esta se situa à margem do Real, não sofrendo uma interferência do social, no que coincide com a teoria de Lacan, na qual a “subjetividade, na origem, não é de nenhuma relação com o Real, mas de uma sintaxe nela engendrada pela marca significante”. Nessa sintaxe, a subjetividade revela o que o sujeito se constrói através dos símbolos, sendo sua linguagem, como diz Barthes, complementando Lacan, um “lugar dialético onde as coisas se fazem e se desfazem, onde ele imerge e desfaz a sua própria subjetividade”. É importante, nesse sentido, a avaliação de Lacan de que o subjetivo não é “o valor de sentimento” com que é confundido; suas leis (da intersubjetividade) são matemáticas.
O Real, consequentemente, deixando de ter relação com o social, está fora daquilo que se compõe como Simbólico, ou seja, não consegue absorvê-lo. Estando fora do Simbólico, o Real se apresenta, conforme Lacan, em “categorias negativas”. Em tal negatividade, desvinculada de qualquer motivo particular, reside a junção entre o Simbólico e o Real. Na realidade que o sujeito precisa compor, o Real já está presente, mas é como se fosse um resíduo do que não foi capturado pelo Simbólico.
O sujeito, então, sempre serve como representação de uma ligação entre o Real, o Imaginário e o Simbólico, mas o primeiro é inatingível, pois ele não participa ativamente dessa composição em triângulo. Colocado fora da linguagem, ele apenas proporciona o objeto do desejo pulsante no inconsciente, representado pela letra, pela escritura.
Avaliemos mais atentamente o Simbólico. Baseado na linguística de Saussure e de Jakobson, Lacan tornará o Simbólico como um fundamento próprio do significante, pois, se o homem chega à ordem simbólica, é porque já está aprisionado nela, sendo “na sua relação imaginária com o semelhante que ele pôde entrar nessa ordem como sujeito”. O sujeito, como percebe Rene Major, é reinscrito por Lacan “como sujeito do significante, como sujeito constituído no e pelo significante”, uma vez que também o inconsciente, a partir de Lacan, passou a ser estruturado como uma linguagem, utilizando-se dos casos da metáfora e da metonímia, além de não ser mais simplesmente “algo fora da consciência”, como em Freud, mas também um “parasita da consciência”.
Igualmente, Lacan afirma que “O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado”. Mas a verdade pode ser resgatada”, segundo o psicanalista francês, “em monumentos” (os corpos); em “documentos de arquivo” (como lembranças da infância); na “evolução semântica” (como o vocabulário com o qual se convive); “nas tradições” (que compõem a história do indivíduo) e nos “vestígios” – tudo o que veremos em James Joyce. Consequentemente, o homem é governado pelo Simbólico, que representa o “Grande Outro” em Lacan, ou seja, a cultura informal e formante do sujeito, no caso toda a sua formação como escritor e seu interesse pelas diversas artes.
O Imaginário, que, em Lacan, está sempre ligado ao Simbólico, constrói-se durante o “estágio do espelho”, quando o sujeito assume uma imagem que permite a ele analisar determinados objetos do mundo ao redor. Tal imagem (ou imago, o que novamente nos remete à mímesis) tanto pode aliená-lo (o que é a libido narcísica em acordo com a função alienante) quanto controntá-lo. O primeiro efeito dessa imago é um efeito de “alienação do sujeito”, sendo no Outro que o sujeito passa a se identificar e se experimentar a princípio. Esta Imagem visa “à noção de um evento, à marca de uma impressão ou à organização por uma ideia”, sendo ela uma “sensação enfraquecida, na medida em que atesta menos seguramente a realidade”. O Imaginário se constitui numa espécie de Simbólico mais subjetivo.
É pelo Real-Simbólico-Imaginário de Joyce que Lacan está interessado em seu seminário O sinthoma. Imbuído da vontade de desnudar o autor de Finnegans wake e Ulysses por meio de seu discurso psiquiátrico, Lacan se pergunta: Joyce era louco? Obviamente, ele não dá a resposta de forma previsível: prefere analisar o autor irlandês por sua necessidade de mostrar que tem vigor – fruto de uma relação conturbada tanto com o Deus da religião, dos seus estudos de origem, quanto com seu pai. Para Lacan, Joyce quer mostrar, por meio da obra, um vigor que na realidade não existia. Tenta, por isso, desmistificá-lo, falando de sua relação com Nora (a mulher com quem dividiu sua vida), mas negando-se a romantizá-lo: para ele, Joyce não via nenhuma consideração pelo amor referente a um feminino.
Lacan afirma em determinada altura:
O pai, como nome e como aquele que nomeia, não é o mesmo. O pai é esse quarto elemento – evoco aí alguma coisa que somente uma parte de meus ouvintes poderá considerar – esse quarto elemento sem o qual nada é possível no nó do simbólico, do imaginário e do real.
Mas há um outro nome de chamá-lo. É nisso que o que diz respeito ao Nome-do-Pai, no grau em que Joyce testemunha isso, eu o revisto hoje com o que é conveniente chamar de sinthoma.
Na medida em que o inonsciente se enoda ao sinthoma, que é o que há de mais singular em cada indivíduo, podemos dizer que Joyce, como ele escreveu em algum lugar, identifica-se com o individual.
Ou seja, para além do Real-Imaginário-Simbólico, Lacan elege o quarto elemento – o sinthoma – como o que chama de “nó borromeano”, sendo o que há de mais “singular” no indivíduo – ou seja, o individual, e o que há de individual em Joyce abarca qualquer linguagem. Lacan avalia, diante da experiência que resultou, para Joyce, em obras como Stephen Hero – a qual não admirava especialmente, tendo feito Retrato do artista quando jovem para complementá-la –, Ulysses e Finnegans wake, na qual se coloca na contraformação de seus dias de jovem. Joyce quer, através de sua arte, tornar sua família ilustre – esta, diz, é a sua missão.
Equilibrando os conceitos de sonho e pesadelo, assim como enlaça o Imaginário e o Simbólico na sua análise, Jacques Lacan diz, em seu seminário O sinthoma, sobre Finnegans wake:
O incrível é que Joyce – que tinha o maior desprezo pela história, com efeito fútil, qualificada por ele de pesadelo, e que se caracteriza por despejar sobre nós as palavras grandiosas que nos fazem tanto mal – só conseguiu encontrar esta solução: escrever Finnegans wake, ou seja, um sonho que, como todo sonho, ainda é um pesadelo, ainda que seja um pesadelo moderado. Com a diferença, diz ele, e é assim que é feito esse Finnegans wake, de que o sonhador não é nenhum personagem particular desse livro, mas o próprio sonho.
Para Lacan, Joyce “desliza até Jung, desliza até o inconsciente coletivo. Que o inconsciente coletivo seja um sinthoma, não há melhor prova que Joyce, pois não se pode dizer que Finnegans wake, em sua imaginação, não participa desse sinthoma”.
De que história fala Lacan senão da sua própria: de acordar do sonho da psicanálise moderna? Ela parece ingressar no próprio sonho – enredada com sua linguagem que rompe com as convenções, sobretudo por meio de criação de palavras: esse SINTHOMA esconde (ou revela) Saint Thomas D’Aquino - que Joyce citava em suas perambulações noturnas, como Leopold Bloom e Stephen Dedalus, vagando pelas ruas de Dublin - e do mesmo modo os filhos de Anna Livia, SHEM e SHAUN. O inconsciente em Joyce, embora censurado, segundo Lacan, irrompe em toda sua profusão linguística, no ingresso da linguagem e no pesadelo que ela proporciona. Joyce torna-se um sonhador da própria linguagem – e é nisto que ele tem de mais linguístico e sonhador da literatura. Se as palavras-montagem se caracterizam pela multiplicidade, é porque Joyce não está interessado em se fixar – mas de remover novas palavras de dentro do que escreve (o que se pode constatar na excelente tradução de Ulysses feita por Antônio Houaiss, em que há uma recriação detalhada da sonoridade original). É no mesmo sentido que Michel Butor escreve seus ensaios referenciais “Pequeno cruzeiro preliminar para um reconhecimento do arquipélago Joyce” e “Esboço para um limiar de Finnegans” (de Repertório). No primeiro, escreve, indo ao encontro de Lacan (embora o curso deste seja posterior ao do ensaio, feito em 1948): “Toda obra está simplesmente no plano do sono e dum sonho do qual todas as coisas participam, um sonho quase sempre assustador, por vezes atroz, repleto de um riso que mascara uma profunda ansiedade. É um pesadelo que vai terminar num despertar”.
Lacan, em seu curso, está utilizando não só a técnica psiquiátrica para trazer Joyce da sua mitologia à terra, mas recompondo-o para os estudiosos que querem cercá-lo de uma aura pura, de um criador louco ou inconsciente – para os quais só importa a realização de um autor capaz de dar espaços para um pretenso discurso de vanguarda. Mesmo nesse ponto, Lacan não se ilude, e fala sobre os comentadores de Joyce: “E ele não esperava nada menos que lhes dar ocupação até a extinção da Universidade. E é de fato por esse caminho que a coisa anda. E é evidente que isso só pode acontecer porque o texto de Joyce é repleto de problemas totalmente cativantes, fascinantes para o universitário mastigar”. Por isso – e apenas por isso –, Joyce deixou manuscritos, rascunhos e cartas – papéis com uma obra porvir ou em progresso, para os pesquisadores futuros, pois “o ego cumpre nele uma função da qual só posso dar conta pelo meu modo de escrita”.
Lacan continua tratando da linguagem joyciana: “Eu disse que o incosciente é estruturado como uma linguagem. É estranho que se possa também chamar desabonado do inconsciente alguém que joga estritamente apenas com a linguagem, ainda que se sirva de uma língua entre outrras e que é, não a sua – pois a sua é justamente uma língua apagada do mapa, a saber, o gaélico, da qual ele sabia alguns pedacinhos, o bastante para se orientar, mas não muito mais –, portanto não a sua, mas aquela dos invasores, dos opressores”. Para Butor, “A linguagem de Finnegans wake é certamente o maior esforço jamais tentado por um homem para transcender a linguagem a partir dela mesma, mas o peso da linguagem é apenas uma expressão do próprio peso da história sobre nós, e o mito de Finnegans wake é certamente uma das maiores tentativas de transcender a história através da própria história”. Consequentemente, na visão de Lacan, foi havendo, na progressão da obra de Joyce, uma certa relação com a fala, cada vez mais imposta: e essa fala, “ao ser quebrada, desmantelada, acaba por ser escrita”, “a ponto de dissolver a própria linguagem”, ou seja, o escritor “acaba por impor à própria linguagem um tipo de quebra, de decomposição, que faz com que não haja mais identidade fonatória” – invadida pela “polifonia da fala”.
Lacan ecoa, sem dúvida, essas palavras, ainda mais quando define, em relação a Joyce: “[...] o sinthoma é puramente o que a lalíngua condiciona, mas de certa maneira Joyce o eleva à potência da linguagem, sem torná-lo com isso analisável”. Para Haroldo, “alíngua poderia significar carência de língua, como alíngue seria o contrário absoluto de plurilíngue, multilíngue, equivalendo a ‘deslinguado’”. No entanto, destaca que “LALANGUE, pode-se dizer, é o oposto de não língua, de privação da língua. É antes uma língua enfatizada, uma língua tensionada pela ‘função poética’, uma língua que ‘serve a coisas inteiramente diversas da comunicação’”.
Por André Dick
Haroldo de Campos, no ensaio “O afreudisíaco Lacan na Galáxia de lalíngua (Freud, Lacan e a escritura)” – incluído em O segundo arco-íris branco –, lembra a consideração conclusiva, apresentada por Jan Miel, na revista Yale French Studies, na qual a obra de Lacan era apresentada ao público de língua inglesa: “Uma palavra final sobre o estilo de Jacques Lacan. Como amigo ou médico de alguns dos principais artistas e poetas deste século, e sendo ele próprio um agudo crítico da literatura, o Dr. Lacan não regateia as vantagens de uma expressão literária complexa. Seu estilo, chamado mallarmeano por seus próprios colegas e, por vezes, imensamente difícil, de um modo deliberado...”.
Haroldo acrescenta: “O paralelo cabe à maravilha, já que, na esteira de Mallarmé, Lacan é também um ‘syntaxier’ (um ‘sintaxista’), um exímio manipulador da sintaxe francesa até os seus extremos limites da diagramação frásica”. A este argumento de Haroldo, Leyla Perrone-Moisés acrescenta no ensaio “Lacan, o bruxo”:
Em seu próprio estilo de escritor, Lacan soube receber e desenvolver as lições poéticas dos poetas do barroco espanhol, de Mallarmé, Joyce e Lewis Carroll. É nesses geniais “trocadilhistas”, e não nos surrealistas, formalmente acadêmicos, que Lacan reconhece um saber relativo ao inconsciente. [...] O texto de Lacan é um discurso duplo, teoria-escritura que, ao mesmo tempo, fala do inconsciente e diz o inconsciente, mimando suas torções sintáticas, seus deslocamentos, suas compressões, seus chistes. [...] Que texto é esse, senão o da poesia? Mas Lacan é bruxo porque é poeta, e os poetas sabiam do inconsciente antes mesmo de Freud.
É interessante observar que alguns dos maiores escritores de uma prosa estranha – que lembra a poesia –, na França, depois de Rimbaud e Mallarmé são filósofos (como Jacques Derrida), críticos literários (Roland Barthes) e psicanalistas (como é o caso de Jacques Lacan). Quando lemos livros como O sinthoma (dedicado à análise da obra de Joyce), Mais, ainda (com apresentações seminais sobre o Barroco e a linguística) e De um discurso que não fosse semblante (com textos sobre o Oriente), é possível considerar que, por meio do Real-Simbólico-Imaginário (RSI), Lacan compôs uma teoria poética.
É importante lembrar que Freud trabalha com três instâncias para caracterizar o indivíduo: o Id, o Ego e o Superego (ao qual, aqui, não daremos especial atenção). Ao invés de utilizar essa tripartição freudiana, Lacan criará outra, constituída pelo Simbólico, pelo Imaginário e pelo Real. O Simbólico seria o que preexiste ao sujeito (dependendo da “linguagem” social), atuando como uma espécie de Imaginário visível. Não se pode, portanto, separá-lo totalmente do Imaginário, que contém elementos do Id e do Ego freudiano, no qual se funda uma espécie de sistema ilusório, em que se processariam todos os problemas do ser humano, sobretudo sua histeria, suas neuroses, seus atos falhos, compondo o que chamamos de personalidade. Mas esta se situa à margem do Real, não sofrendo uma interferência do social, no que coincide com a teoria de Lacan, na qual a “subjetividade, na origem, não é de nenhuma relação com o Real, mas de uma sintaxe nela engendrada pela marca significante”. Nessa sintaxe, a subjetividade revela o que o sujeito se constrói através dos símbolos, sendo sua linguagem, como diz Barthes, complementando Lacan, um “lugar dialético onde as coisas se fazem e se desfazem, onde ele imerge e desfaz a sua própria subjetividade”. É importante, nesse sentido, a avaliação de Lacan de que o subjetivo não é “o valor de sentimento” com que é confundido; suas leis (da intersubjetividade) são matemáticas.
O Real, consequentemente, deixando de ter relação com o social, está fora daquilo que se compõe como Simbólico, ou seja, não consegue absorvê-lo. Estando fora do Simbólico, o Real se apresenta, conforme Lacan, em “categorias negativas”. Em tal negatividade, desvinculada de qualquer motivo particular, reside a junção entre o Simbólico e o Real. Na realidade que o sujeito precisa compor, o Real já está presente, mas é como se fosse um resíduo do que não foi capturado pelo Simbólico.
O sujeito, então, sempre serve como representação de uma ligação entre o Real, o Imaginário e o Simbólico, mas o primeiro é inatingível, pois ele não participa ativamente dessa composição em triângulo. Colocado fora da linguagem, ele apenas proporciona o objeto do desejo pulsante no inconsciente, representado pela letra, pela escritura.
Avaliemos mais atentamente o Simbólico. Baseado na linguística de Saussure e de Jakobson, Lacan tornará o Simbólico como um fundamento próprio do significante, pois, se o homem chega à ordem simbólica, é porque já está aprisionado nela, sendo “na sua relação imaginária com o semelhante que ele pôde entrar nessa ordem como sujeito”. O sujeito, como percebe Rene Major, é reinscrito por Lacan “como sujeito do significante, como sujeito constituído no e pelo significante”, uma vez que também o inconsciente, a partir de Lacan, passou a ser estruturado como uma linguagem, utilizando-se dos casos da metáfora e da metonímia, além de não ser mais simplesmente “algo fora da consciência”, como em Freud, mas também um “parasita da consciência”.
Igualmente, Lacan afirma que “O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado”. Mas a verdade pode ser resgatada”, segundo o psicanalista francês, “em monumentos” (os corpos); em “documentos de arquivo” (como lembranças da infância); na “evolução semântica” (como o vocabulário com o qual se convive); “nas tradições” (que compõem a história do indivíduo) e nos “vestígios” – tudo o que veremos em James Joyce. Consequentemente, o homem é governado pelo Simbólico, que representa o “Grande Outro” em Lacan, ou seja, a cultura informal e formante do sujeito, no caso toda a sua formação como escritor e seu interesse pelas diversas artes.
O Imaginário, que, em Lacan, está sempre ligado ao Simbólico, constrói-se durante o “estágio do espelho”, quando o sujeito assume uma imagem que permite a ele analisar determinados objetos do mundo ao redor. Tal imagem (ou imago, o que novamente nos remete à mímesis) tanto pode aliená-lo (o que é a libido narcísica em acordo com a função alienante) quanto controntá-lo. O primeiro efeito dessa imago é um efeito de “alienação do sujeito”, sendo no Outro que o sujeito passa a se identificar e se experimentar a princípio. Esta Imagem visa “à noção de um evento, à marca de uma impressão ou à organização por uma ideia”, sendo ela uma “sensação enfraquecida, na medida em que atesta menos seguramente a realidade”. O Imaginário se constitui numa espécie de Simbólico mais subjetivo.
É pelo Real-Simbólico-Imaginário de Joyce que Lacan está interessado em seu seminário O sinthoma. Imbuído da vontade de desnudar o autor de Finnegans wake e Ulysses por meio de seu discurso psiquiátrico, Lacan se pergunta: Joyce era louco? Obviamente, ele não dá a resposta de forma previsível: prefere analisar o autor irlandês por sua necessidade de mostrar que tem vigor – fruto de uma relação conturbada tanto com o Deus da religião, dos seus estudos de origem, quanto com seu pai. Para Lacan, Joyce quer mostrar, por meio da obra, um vigor que na realidade não existia. Tenta, por isso, desmistificá-lo, falando de sua relação com Nora (a mulher com quem dividiu sua vida), mas negando-se a romantizá-lo: para ele, Joyce não via nenhuma consideração pelo amor referente a um feminino.
Lacan afirma em determinada altura:
O pai, como nome e como aquele que nomeia, não é o mesmo. O pai é esse quarto elemento – evoco aí alguma coisa que somente uma parte de meus ouvintes poderá considerar – esse quarto elemento sem o qual nada é possível no nó do simbólico, do imaginário e do real.
Mas há um outro nome de chamá-lo. É nisso que o que diz respeito ao Nome-do-Pai, no grau em que Joyce testemunha isso, eu o revisto hoje com o que é conveniente chamar de sinthoma.
Na medida em que o inonsciente se enoda ao sinthoma, que é o que há de mais singular em cada indivíduo, podemos dizer que Joyce, como ele escreveu em algum lugar, identifica-se com o individual.
Ou seja, para além do Real-Imaginário-Simbólico, Lacan elege o quarto elemento – o sinthoma – como o que chama de “nó borromeano”, sendo o que há de mais “singular” no indivíduo – ou seja, o individual, e o que há de individual em Joyce abarca qualquer linguagem. Lacan avalia, diante da experiência que resultou, para Joyce, em obras como Stephen Hero – a qual não admirava especialmente, tendo feito Retrato do artista quando jovem para complementá-la –, Ulysses e Finnegans wake, na qual se coloca na contraformação de seus dias de jovem. Joyce quer, através de sua arte, tornar sua família ilustre – esta, diz, é a sua missão.
Equilibrando os conceitos de sonho e pesadelo, assim como enlaça o Imaginário e o Simbólico na sua análise, Jacques Lacan diz, em seu seminário O sinthoma, sobre Finnegans wake:
O incrível é que Joyce – que tinha o maior desprezo pela história, com efeito fútil, qualificada por ele de pesadelo, e que se caracteriza por despejar sobre nós as palavras grandiosas que nos fazem tanto mal – só conseguiu encontrar esta solução: escrever Finnegans wake, ou seja, um sonho que, como todo sonho, ainda é um pesadelo, ainda que seja um pesadelo moderado. Com a diferença, diz ele, e é assim que é feito esse Finnegans wake, de que o sonhador não é nenhum personagem particular desse livro, mas o próprio sonho.
Para Lacan, Joyce “desliza até Jung, desliza até o inconsciente coletivo. Que o inconsciente coletivo seja um sinthoma, não há melhor prova que Joyce, pois não se pode dizer que Finnegans wake, em sua imaginação, não participa desse sinthoma”.
De que história fala Lacan senão da sua própria: de acordar do sonho da psicanálise moderna? Ela parece ingressar no próprio sonho – enredada com sua linguagem que rompe com as convenções, sobretudo por meio de criação de palavras: esse SINTHOMA esconde (ou revela) Saint Thomas D’Aquino - que Joyce citava em suas perambulações noturnas, como Leopold Bloom e Stephen Dedalus, vagando pelas ruas de Dublin - e do mesmo modo os filhos de Anna Livia, SHEM e SHAUN. O inconsciente em Joyce, embora censurado, segundo Lacan, irrompe em toda sua profusão linguística, no ingresso da linguagem e no pesadelo que ela proporciona. Joyce torna-se um sonhador da própria linguagem – e é nisto que ele tem de mais linguístico e sonhador da literatura. Se as palavras-montagem se caracterizam pela multiplicidade, é porque Joyce não está interessado em se fixar – mas de remover novas palavras de dentro do que escreve (o que se pode constatar na excelente tradução de Ulysses feita por Antônio Houaiss, em que há uma recriação detalhada da sonoridade original). É no mesmo sentido que Michel Butor escreve seus ensaios referenciais “Pequeno cruzeiro preliminar para um reconhecimento do arquipélago Joyce” e “Esboço para um limiar de Finnegans” (de Repertório). No primeiro, escreve, indo ao encontro de Lacan (embora o curso deste seja posterior ao do ensaio, feito em 1948): “Toda obra está simplesmente no plano do sono e dum sonho do qual todas as coisas participam, um sonho quase sempre assustador, por vezes atroz, repleto de um riso que mascara uma profunda ansiedade. É um pesadelo que vai terminar num despertar”.
Lacan, em seu curso, está utilizando não só a técnica psiquiátrica para trazer Joyce da sua mitologia à terra, mas recompondo-o para os estudiosos que querem cercá-lo de uma aura pura, de um criador louco ou inconsciente – para os quais só importa a realização de um autor capaz de dar espaços para um pretenso discurso de vanguarda. Mesmo nesse ponto, Lacan não se ilude, e fala sobre os comentadores de Joyce: “E ele não esperava nada menos que lhes dar ocupação até a extinção da Universidade. E é de fato por esse caminho que a coisa anda. E é evidente que isso só pode acontecer porque o texto de Joyce é repleto de problemas totalmente cativantes, fascinantes para o universitário mastigar”. Por isso – e apenas por isso –, Joyce deixou manuscritos, rascunhos e cartas – papéis com uma obra porvir ou em progresso, para os pesquisadores futuros, pois “o ego cumpre nele uma função da qual só posso dar conta pelo meu modo de escrita”.
Lacan continua tratando da linguagem joyciana: “Eu disse que o incosciente é estruturado como uma linguagem. É estranho que se possa também chamar desabonado do inconsciente alguém que joga estritamente apenas com a linguagem, ainda que se sirva de uma língua entre outrras e que é, não a sua – pois a sua é justamente uma língua apagada do mapa, a saber, o gaélico, da qual ele sabia alguns pedacinhos, o bastante para se orientar, mas não muito mais –, portanto não a sua, mas aquela dos invasores, dos opressores”. Para Butor, “A linguagem de Finnegans wake é certamente o maior esforço jamais tentado por um homem para transcender a linguagem a partir dela mesma, mas o peso da linguagem é apenas uma expressão do próprio peso da história sobre nós, e o mito de Finnegans wake é certamente uma das maiores tentativas de transcender a história através da própria história”. Consequentemente, na visão de Lacan, foi havendo, na progressão da obra de Joyce, uma certa relação com a fala, cada vez mais imposta: e essa fala, “ao ser quebrada, desmantelada, acaba por ser escrita”, “a ponto de dissolver a própria linguagem”, ou seja, o escritor “acaba por impor à própria linguagem um tipo de quebra, de decomposição, que faz com que não haja mais identidade fonatória” – invadida pela “polifonia da fala”.
Lacan ecoa, sem dúvida, essas palavras, ainda mais quando define, em relação a Joyce: “[...] o sinthoma é puramente o que a lalíngua condiciona, mas de certa maneira Joyce o eleva à potência da linguagem, sem torná-lo com isso analisável”. Para Haroldo, “alíngua poderia significar carência de língua, como alíngue seria o contrário absoluto de plurilíngue, multilíngue, equivalendo a ‘deslinguado’”. No entanto, destaca que “LALANGUE, pode-se dizer, é o oposto de não língua, de privação da língua. É antes uma língua enfatizada, uma língua tensionada pela ‘função poética’, uma língua que ‘serve a coisas inteiramente diversas da comunicação’”.
De tanto não ser analisável e enfatizar a língua, Lacan passa a ecoar Joyce mesmo em sua apresentação, pois, acima de tudo, como o autor de Ulysses, é um poeta:
“Entretanto, retifico. Ptom, Pt’homenzim, Pt’homendebem ainda vive, na língua que se crê obrigada, entre outras línguas, a ptomar a coisa coincidente. Pois é o que isso quer dizer”.
A epifania de Joyce por Barthes e Lacan
Por André Dick
Em determinado momento de seu curso A preparação do romance, Roland Barthes se refere a dois barqueiros que podem levá-lo à verdade do romance: James Joyce e Marcel Proust. Ele evoca Joyce sobretudo por meio do conceito de epifania.
Ele lembra que Joyce escreveu, de 1900 a 1903, o que se poderia chamar de “poemas em prosa”, mas que ele não desejava chamar assim, e sim de “epifanias. Barthes relembra que epifania = manifestação de um deus (phainó = aparecer). No entanto, para Barthes, não se trata disso em Joyce: embora ele tenha vínculos com a teologia e a filosofia religiosas da Idade Média, sobretudo São Tomás de Aquino, para ele “o maior dos filósofos porque seu raciocínio é como uma espada afiada”, e Duns Scot. A epifania joyciana seria a “revelação súbita da sequididade (Watness) de uma coisa”, o que a assemelha, segundo Barthes, ao haicai.
Barthes se questiona: Para quem aparecem as epifanias? E responde: “Para o artista: seu papel é o de se achar ali, no meio dos homens, em certos momentos”. E quais seriam esses momentos espifânicos? Barthes afirma que “não são definidos pela beleza, o êxito (no sentido apolíneo, goethiano), a sobre-significância → momentos fortuitos, discretos, que podem ser também de plenitude, de paixão [...] ou vulgares, desagradáveis: vulgaridade de um gesto, de uma fala, experiência desagradável, coisas que devem ser rejeitadas, exemplos de tolice ou de insensibilidade”. Não por acaso, podemos ver as cartas de Joyce a Martha Fleischmann como momentos claros de epifania – de plenitude, de paixão.
Qual seria, para Barthes, a função de Joyce?: “conter sua tendência ao lirismo, tornar seu estilo cada vez mais meticuloso”.
O que aconteceria com Epifanias? Os fragmentos não foram utilizados como tais, mas incluídos por Joyce no seu romance Stephen Hero. Barthes avalia que essa experiência de Joyce com as epifanias o agrada muito, sendo aquilo que ele chama de “incidente”, e aparece tanto em sua obra Incidentes quanto em Roland Barthes por Roland Barthes e Fragmentos de um discurso amoroso. Ou quando ele escreve sobre o momento verdade do Zen para Bashô, em O império dos signos:
Quando nos dizem que foi o ruído da rã que despertou Bashô para a verdade do Zen, podemos entender (embora esta seja ainda uma maneira de dizer demasiadamente ocidental) que Bashô descobriu nesse ruído não o motivo de uma “iluminação”, de uma hiperestesia simbólica, mas antes um fim da linguagem: há um momento em que a linguagem cessa (momento obtido à custa de muitos exercícios), e é esse corte sem eco que institui, ao mesmo tempo, a verdade do Zen e a forma, breve e vazia, do haicai. A denegação do “desenvolvimento” é aqui radical, pois não se trata de deter a linguagem num silêncio pesado, pleno, profundo, místico, nem mesmo num vazio da alma que se abriria à comunicação divina (o Zen sem Deus); o que é colocado não deve ser desenvolvido nem no discurso nem no fim do discurso; o que é colocado é fosco, e tudo que dele podemos fazer é repeti-lo; é isso que se recomenda ao praticante que trabalha um koan (ou anedota que lhe é proposta por seu mestre): não se trata de resolvê-lo, como se ele tivesse um sentido, nem mesmo de perceber sua absurdidade (que é ainda um sentido), mas de ruminá-lo “até que o dente caia”.
Tanto a epifania quanto o haicai trazem, para Barthes, um “acontecimento geralmente significante [...] e, ao mesmo tempo, nenhuma pretensão a um sentido geral, sistemático, doutrinal → razão, sem dúvida, da recusa do discurso, do recolhimento na ‘dobra’ (incidente), do fragmento descontínuo”. Barthes pede que se confira o que o biógrafo de Joyce, Ellmann, diz das Epifanias, e “de sua homogeneidade com relação ao romance moderno: técnica ‘arrogante e humilde, ao mesmo tempo: ela tem pretensões de importância, mesmo não pretendendo nada’”.
Daí a extrema dificuldade, para Joyce, da epifania e do haicai: “não dar o sentido, um sentido; privada de todo comentário, a futilidade do Incidente se põe a nu, e assumir a futilidade é quase heroico”.
Barthes considera isso um “malogro de Joyce”, no gesto de “verter as Epifanias no Romance, afogar o intolerável do breve, do curto, da narrativa; mediação pacificadora, tranquilizante; elaboração de um grande sentido”. Como aponta José Antonio Arantes – em outra tradução brasileira de Giacomo Joyce –, “Joyce quer mais do que aprender a epifania, quer produzi-la”. Para Lacan, as epifanias de Joyce “são caracterizadas sempre pela mesma coisa, que é, de modo muito preciso,a consequência resultante do nó, a saber, que o inconsciente está ligado ao real. Coisa fantástica, o próprio Joyce não diz a mesma coisa. É totalmente legível em Joyce que a epifania é o que faz com que, graças à falha, inconsciente e real se enodem”. Ou seja, a percepção joyciana que poderia ser resgatada de um momento referente a uma iluminação (claritas) produz-se via linguagem – pois é o campo onde ele domina e inconscientemente reconhece.
Para Lacan, o sujeito, então, sempre serve como representação de uma ligação entre o Real, o Imaginário e o Simbólico, mas o primeiro é inatingível, pois ele não participa ativamente dessa composição em triângulo. Colocado fora da linguagem, ele apenas proporciona o objeto do desejo pulsante no inconsciente, representado pela letra, pela escritura - e mesmo a epifania musical se converte em polifonia de palavras na página. Ou seja, nada mais epifânica que a obra de James Joyce – no que ela tem de grande e atrativa.
Num poema de La vie en close em que Leminski aparentemente se despede do leitor e cria sua linha básica de grandes autores, ele cita Guimarães Rosa e Graciliano Ramos e as obras Finnegans wake, de James Joyce, e Un coup de dés, de Stéphane Mallarmé – numa espécie de epifania canônica. O poeta se lamenta por não se sentir capacitado a produzir algo melhor que as obras de Guimarães, Graciliano, Joyce e Mallarmé.
De uma noite, vim.
Para uma noite, vamos,
uma rosa de guimarães
nos ramos de Graciliano.
Finnegans Wake, à direita,
un coup de dés à esquerda,
que coisa pode ser feita
que não seja pura perda?
Por André Dick
Em determinado momento de seu curso A preparação do romance, Roland Barthes se refere a dois barqueiros que podem levá-lo à verdade do romance: James Joyce e Marcel Proust. Ele evoca Joyce sobretudo por meio do conceito de epifania.
Ele lembra que Joyce escreveu, de 1900 a 1903, o que se poderia chamar de “poemas em prosa”, mas que ele não desejava chamar assim, e sim de “epifanias. Barthes relembra que epifania = manifestação de um deus (phainó = aparecer). No entanto, para Barthes, não se trata disso em Joyce: embora ele tenha vínculos com a teologia e a filosofia religiosas da Idade Média, sobretudo São Tomás de Aquino, para ele “o maior dos filósofos porque seu raciocínio é como uma espada afiada”, e Duns Scot. A epifania joyciana seria a “revelação súbita da sequididade (Watness) de uma coisa”, o que a assemelha, segundo Barthes, ao haicai.
Barthes se questiona: Para quem aparecem as epifanias? E responde: “Para o artista: seu papel é o de se achar ali, no meio dos homens, em certos momentos”. E quais seriam esses momentos espifânicos? Barthes afirma que “não são definidos pela beleza, o êxito (no sentido apolíneo, goethiano), a sobre-significância → momentos fortuitos, discretos, que podem ser também de plenitude, de paixão [...] ou vulgares, desagradáveis: vulgaridade de um gesto, de uma fala, experiência desagradável, coisas que devem ser rejeitadas, exemplos de tolice ou de insensibilidade”. Não por acaso, podemos ver as cartas de Joyce a Martha Fleischmann como momentos claros de epifania – de plenitude, de paixão.
Qual seria, para Barthes, a função de Joyce?: “conter sua tendência ao lirismo, tornar seu estilo cada vez mais meticuloso”.
O que aconteceria com Epifanias? Os fragmentos não foram utilizados como tais, mas incluídos por Joyce no seu romance Stephen Hero. Barthes avalia que essa experiência de Joyce com as epifanias o agrada muito, sendo aquilo que ele chama de “incidente”, e aparece tanto em sua obra Incidentes quanto em Roland Barthes por Roland Barthes e Fragmentos de um discurso amoroso. Ou quando ele escreve sobre o momento verdade do Zen para Bashô, em O império dos signos:
Quando nos dizem que foi o ruído da rã que despertou Bashô para a verdade do Zen, podemos entender (embora esta seja ainda uma maneira de dizer demasiadamente ocidental) que Bashô descobriu nesse ruído não o motivo de uma “iluminação”, de uma hiperestesia simbólica, mas antes um fim da linguagem: há um momento em que a linguagem cessa (momento obtido à custa de muitos exercícios), e é esse corte sem eco que institui, ao mesmo tempo, a verdade do Zen e a forma, breve e vazia, do haicai. A denegação do “desenvolvimento” é aqui radical, pois não se trata de deter a linguagem num silêncio pesado, pleno, profundo, místico, nem mesmo num vazio da alma que se abriria à comunicação divina (o Zen sem Deus); o que é colocado não deve ser desenvolvido nem no discurso nem no fim do discurso; o que é colocado é fosco, e tudo que dele podemos fazer é repeti-lo; é isso que se recomenda ao praticante que trabalha um koan (ou anedota que lhe é proposta por seu mestre): não se trata de resolvê-lo, como se ele tivesse um sentido, nem mesmo de perceber sua absurdidade (que é ainda um sentido), mas de ruminá-lo “até que o dente caia”.
Tanto a epifania quanto o haicai trazem, para Barthes, um “acontecimento geralmente significante [...] e, ao mesmo tempo, nenhuma pretensão a um sentido geral, sistemático, doutrinal → razão, sem dúvida, da recusa do discurso, do recolhimento na ‘dobra’ (incidente), do fragmento descontínuo”. Barthes pede que se confira o que o biógrafo de Joyce, Ellmann, diz das Epifanias, e “de sua homogeneidade com relação ao romance moderno: técnica ‘arrogante e humilde, ao mesmo tempo: ela tem pretensões de importância, mesmo não pretendendo nada’”.
Daí a extrema dificuldade, para Joyce, da epifania e do haicai: “não dar o sentido, um sentido; privada de todo comentário, a futilidade do Incidente se põe a nu, e assumir a futilidade é quase heroico”.
Barthes considera isso um “malogro de Joyce”, no gesto de “verter as Epifanias no Romance, afogar o intolerável do breve, do curto, da narrativa; mediação pacificadora, tranquilizante; elaboração de um grande sentido”. Como aponta José Antonio Arantes – em outra tradução brasileira de Giacomo Joyce –, “Joyce quer mais do que aprender a epifania, quer produzi-la”. Para Lacan, as epifanias de Joyce “são caracterizadas sempre pela mesma coisa, que é, de modo muito preciso,a consequência resultante do nó, a saber, que o inconsciente está ligado ao real. Coisa fantástica, o próprio Joyce não diz a mesma coisa. É totalmente legível em Joyce que a epifania é o que faz com que, graças à falha, inconsciente e real se enodem”. Ou seja, a percepção joyciana que poderia ser resgatada de um momento referente a uma iluminação (claritas) produz-se via linguagem – pois é o campo onde ele domina e inconscientemente reconhece.
Para Lacan, o sujeito, então, sempre serve como representação de uma ligação entre o Real, o Imaginário e o Simbólico, mas o primeiro é inatingível, pois ele não participa ativamente dessa composição em triângulo. Colocado fora da linguagem, ele apenas proporciona o objeto do desejo pulsante no inconsciente, representado pela letra, pela escritura - e mesmo a epifania musical se converte em polifonia de palavras na página. Ou seja, nada mais epifânica que a obra de James Joyce – no que ela tem de grande e atrativa.
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domingo, 10 de junho de 2012
A antimodernidade de Roland Barthes e Antoine Compagnon
Por André Dick
Os antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes, de Antoine Compagnon, publicado pela Editora UFMG (Tradução de Laura Taddei Brandini), vem acompanhado de um grande atrativo: trata-se de uma obra que não reduz a modernidade a rótulos e se arrisca no terreno da contradição – algo cada vez mais raro no campo da crítica literária. Compagnon, nascido em 1950, na Bélgica, não é um filósofo da literatura (falta-lhe a poeticidade, por exemplo, do seu mestre, enfocado no livro, Roland Barthes), mas um filólogo dos melhores – um paralelo de Giorgio Agamben na França –, capaz de arrebatar o leitor com os detalhes mais profícuos da história literária, enredando diversas teorias sob seu olhar, mais apropriado para analisá-las – o que já acontecia em Os cinco paradoxos da modernidade e O demônio da teoria.
Fazendo uso de uma liberdade poética – de que os antimodernos são os mais modernos, pois são modernos em liberdade, sem se prender a rótulos ou algo parecido –, ele desenha algumas das características centrais desses autores, entre as quais inclui o sublime, a vituperação, a contrarrevolução, o pessimismo (que dialoga diretamente com a melancolia), o anti-Iluminismo e o pecado original.
Talvez seja Baudelaire o moderno mais referencial para muitos, que cultivou o emblema da contradição e aliou todos esses elementos a uma modernidade dividida em duas faces (por isso, na visão de Compagnon, seria um antimoderno). Ele, como outros autores enfocados por Compagnon, cultiva a doce contradição da modernidade: vai à frente, mas olha para trás ao mesmo tempo, ou seja, não se perde num novo invento sem ao menos lamentar o que está se perdendo. São modernos não arrependidos, mas conscientes de uma tradição que se manifesta em cada novo texto. Não acreditam na inovação que não esteja ligada a um passado – mesmo que remoto. São os que mais verdadeiramente querem mudar – “mudar a língua”, como queria Barthes lembrando Mallarmé em sua Aula inaugural no Collège de France –, mas não românticos ou de vanguarda, imaginando que poderiam ser a referência eterna para seus pares. Ou seja, livres.
Devemos notar que, por vezes, Compagnon confunde as vanguardas com a modernidade – o que não poderia ser aceito num crítico de sua estatura e visão literária –, o que não chega a prejudicar sua inclinação para a descoberta de todo um espaço em que o moderno é, na verdade, um clássico inclinado às mudanças. Barthes já deixava isso claro em seu curso A preparação do romance, uma de suas obras em esboço mais bem acabadas – muito mais interessante do que outras, transformadas em livros impressos mesmo antes do conhecimento de sua teoria. Desde O demônio da teoria, Compagnon privilegia a interpretação da crítica de Barthes. Se lá ele condenava a falta de aceitação de Barthes da mímesis aristotélica – o que é um desvio do que realmente importava a Barthes: uma retratação da mímesis, sobretudo na condenação da retórica –, aqui ele diz que mudanças do mundo contemporâneo desagradavam a Barthes, como quando condenava o fato de que os livros seriam reduzidos a pizzas congeladas – o que, ainda mais hoje em dia, se mostra realmente verdadeiro.
É claro que Compagnon tem um interesse especial pelas obras de poetas modernos, como Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé, mas muito mais pelas obras críticas de Albert Thibaudet – para ele, o último dos críticos felizes –, Julie Gracq – com sua fina ironia e deboche em relação às teorias estruturalistas, como as do grupo Tel Quel (e é interessante notar como Compagnon espera que o passado não seja removido em prol apenas de novos autores, que, quando levados para o romance, não mantiveram o mesmo experimentalismo teórico, como Phillipe Sollers e Julia Kristeva). Ao notar que Barthes elege a poesia como a salvação da literatura em seus últimos cursos, no Collège de France, Compagnon percebe que ela está associada à solidão do autor, que irrompe não apenas na escrita impressa, mas sobretudo nas linhas originais do autor, deixadas em rascunhos e esboços para suas aulas – e Compagnon se penaliza com a condição final de Barthes por não ter visto que ele, afinal, precisava de ajuda.
Compagnon é um autor capaz de desenhar essa linha de Joseph de Maistre a Roland Barthes com a mesma intuição que analisava os cinco paradoxos da modernidade, a partir de Charles Baudelaire e da tradição da ruptura de Octavio Paz. Por isso, esse Os antimodernos parece uma continuação daquela obra: por se opor a uma visão facilitarista da poesia moderna, de que tudo que ela significa pode trazer uma ruptura decisiva com tudo o que vem antes. Para Compagnon, essa ideia é não só um engano, mas faz paralisar toda a interpretação de poesia que merecemos ter após autores como Barthes, que puxa o fio da meada, no final das contas, dessa teoria. Compagnon revela a aversão de Barthes por certa poesia moderna – e o faz de, por um lado, de maneira acertada e, por outro, equivocada, o que analisaremos a partir daqui.
Em seu primeiro livro, O grau zero da escritura, quando ainda propunha uma relação estreita entre literatura e sociedade (mesmo que opte pela neutralidade do escritor e tenha uma visão menos centrada que a de Hugo Friedrich), Barthes observa que “não há humanismo poético da modernidade: esse discurso de pé é um discurso cheio de terror, isto é, coloca o homem em ligação não com outros homens, mas com as imagens mais desumanas da Natureza: o céu, o inferno, o sagrado, a infância, a loucura, a matéria pura etc.”. Quando fala no interesse dos modernos pela Palavra, Barthes escreverá que essa palavra torna a palavra poética “terrível e desumana”, instituindo “um discurso cheio de buracos e cheio de luzes, cheio de ausências e de signos supernutritivos, sem previsão nem permanência de intenção e por isso mesmo tão oposto à função social da linguagem, que o simples recurso a uma palavra descontínua abre a via de todas as Sobrenaturezas” (Grifos meus). Na poesia moderna, as palavras surgiriam como objetos que excluem os homens, “equipadas com toda a violência de sua explosão, cuja vibração puramente mecânica toca estranhamente a palavra seguinte mas de imediato se apaga”. Barthes fica contrariado porque a poesia moderna nega a sociologia (conforme trecho em itálico) – que tanto lhe encantava no início da trajetória, e vai findando até seu curso final, A preparação do romance, quando, não por acaso, volta à poesia moderna como lugar para impedir a falência completa da literatura (como também observa Michel Deguy em Reabertura após obras).
Todavia, Barthes não se encaixa em algumas características desses antimodernos. Ao falar que no Collège de France Barthes “teria se tornado reacionário” - conceito cada vez mais político e, portanto, duvidoso em qualquer contexto: há muitos autores e políticos ditos de vanguarda completamente reacionários, por exemplo - e dado “as costas à modernidade”, ele comete dois equívocos seguidos, assim como afirmar que, depois do excelente Fragmentos de um discurso amoroso, Barthes teria se tornado uma “vedete midiática” (como se Barthes se comparasse a outros escritores efêmeros), afirmando ainda que em seus cursos finais ele “se preocupa pouco com a erudição, mas acima de tudo com a ressonância de uma cultura compósita em sua sensibilidade” (dando a entender que esses elementos divergem). Ele já havia sido injusto com Barthes em O demônio da teoria - mas, em Os antimodernos, parece que o ataque aparece em equilíbrio com a admiração (que existe também em boa escala). Ou seja, Barthes é antirrevolucionário ao final de sua vida, assim como cultiva o pessimismo, mas não se desinteressou pela modernidade, como um regresso ao sublime – pelo contrário, parece-me, inclusive, que tenta anulá-lo em sua obra, não significando que isso o desconsidere como conceito -, o que confere outra falha na teoria de Compagnon.
Para Longino, o poeta que atinge o sublime é aquele que, ao deixar sua alma “empolgada”, ascende a uma “altura soberba”, enchendo-se de “alegria e exaltação, como se ela mesma tivesse criado o que ouviu”. Tal processo acontece em razão de um “dom inato da natureza”, capaz de educar a alma para o arrebatamento, arrancando-a do corpo. O sublime nasce, sobretudo, do orador que não tem “sentimentos rasteiros e ignóbeis”, o que significa que “frases sublimes” pertencem apenas a pessoas de “sentimentos elevados”. Ele opta pela “amplificação”, “abundância”, “amplificação”, constituindo-se essas, para Longino, num “fruto da genialidade”. Consequentemente,
Quando, pois, uma passagem, escutada muitas vezes por um homem sensato e versado em literatura, não dispõe a sua alma a sentimentos elevados, nem deixa no seu pensamento matéria para reflexões além do que dizem as palavras e, bem examinada sem interrupção, perde em apreço, já não haverá um verdadeiro sublime, pois dura apenas o tempo em que é ouvida. Verdadeiramente grande é o texto com muita matéria para reflexão, de árdua ou, antes, impossível resistência e forte lembrança, difícil de apagar.
Os românticos, posicionando-se como sujeitos com um “dom inato”, tentavam agradar ao público, pois compunham para representar uma determinada emoção, que fosse comum a todos, em razão de sua possível transcendência. Por isso, assinala Barthes, o sublime representa uma espécie de “Retórica ‘transcendental’”, sendo a sublimitas uma “elevação do estilo” e a literaturidade, “defendida em tom caloroso, inspirado”, pelo qual o mito da criatividade começa a despontar, assim como o “mito humanista da frase viva, eflúvio de um modelo orgânico, a uma só vez fechado ou gerador”. É óbvio que, aqui, Compagnon distorce Barthes ao caracterizar o sublime como uma de suas preocupações. Seria contrariar, e mesmo desconsiderar, tudo o que ele escreveu ao longo de sua trajetória, sobretudo em sua contestação do Deus-Autor.
Quando trata do Eu imaginário que gostaria de ver na literatura, Barthes esquematiza:
1. O Eu é odioso → Clássicos
2. O Eu é adorável → Românticos
3. O Eu é démodé → “Modernos”
4. Imagino um
“clássico moderno” → o Eu é incerto, trapaceado
Perceba-se, nessa síntese própria de um curso, Barthes escolhe o “clássico” e o “moderno” de maneira a constituir um sujeito próprio aos dias atuais – que seria, para ele, certamente lacaniano, entre o Simbólico e o Imaginário.
O Simbólico seria o que preexiste ao sujeito (dependendo da “linguagem” social), atuando como uma espécie de Imaginário visível. Não se pode, portanto, separá-lo totalmente do Imaginário, que contém elementos do Id e do Ego freudiano, no qual se funda uma espécie de sistema ilusório, no qual se processariam todos os problemas do ser humano, sobretudo sua histeria, suas neuroses, seus atos falhos, compondo o que chamamos de personalidade. Mas esta se situa à margem do Real, não sofrendo uma interferência do social, no que coincide com a teoria de Lacan, na qual a “subjetividade, na origem, não é de nenhuma relação com o Real, mas de uma sintaxe nela engendrada pela marca significante”. Nessa sintaxe, a subjetividade revela o que o sujeito se constrói através dos símbolos, sendo sua linguagem, como diz Barthes, complementando Lacan, um “lugar dialético onde as coisas se fazem e se desfazem, onde ele imerge e desfaz a sua própria subjetividade”.
Barthes avalia a ruptura de Rimbaud, no curso, de maneira mais produtiva do que o “terrível e desumano” moderno que emana das linhas de O grau zero da escritura, baseando-se em suas fases (a primeira, preenchida pela poesia, e a segunda, quando parte para a África), quando diz:
Rimbaud é moderno (fundador da Modernidade) não por seus escritos – ou menos por seus escritos do que pelo deslumbramento, o jeté de sua ruptura. Não é nem mesmo a radicalidade, a pureza, a liberdade da ruptura, que é moderna; é que ela permite ver, torna visível que o sujeito – o sujeito da linguagem – está fendido, esquizoide, como uma via em que cada trilho corre e segue diretamente diante dele, um paralelo ao outro; como se Rimbaud tivesse tido, nele, dois “condicionamentos” estanques: um para a poesia (através do liceu), outro para a viagem [...]; ele falou duas linguagens descontínuas: entre o poeta, o viajante, o colono e o crente final [...], não há junção, e é essa esquize que age como uma tentação moderna: Maquiavel fala de Lourenço de Médicis (grave e voluptuoso), e diz que havia nele dois seres diferentes: “juntos por uma inconcebível junção.
Não parece haver maior correspondência entre o Simbólico e o Imaginário lacanianos do que em Rimbaud: primeiro, a dedicação à obra; depois, o ingresso numa realidade estranha ao primeiro momento, mas não completamente afastada (basta lembrar os conflitos envolvendo o poeta com Paul Verlaine).
Compagnon também adota o posicionamento de que, ao final de sua trajetória, Barthes teria voltado à retórica. Observa Compagnon: “Contra a destruição da linguagem pela vanguarda, tanto na poesia quanto no teatro, Barthes já elogia a retórica e o lugar-comum”. Trata-se, a meu ver, de outro equívoco conceitual, pois Barthes, apesar de ter dado um curso notável sobre a retórica (incluído em A aventura semiológica), falava no curso A preparação do romance (ou seja, no curso derradeiro):
Não insisto sobre a Morte institucional da Retórica, pois tratei disso em meu seminário na EHESS, em 1965-1966. A Retórica se degradou, tornou-se técnica → “técnicas de expressão” (que ideologia!), contratação de textos, writings etc. Ora, havia um vínculo entre o ensino retórico e a escrita dos escritores de que falei. Retórica = arte de escrever (# arte de ler → não há mais artes da linguagem).
E Barthes não percebia a retórica como o oposto das vanguardas, ou seja, ao que se saiba, não traçou essa comparação em seus escritos, como sugere Compagnon. Diante das vanguardas, Barthes manteve-se cético. Por um lado, ele avalia que elas são importantes, mas, por outro, coloca em dúvida sua verdadeira praticidade. Numa das entrevistas do volume Política (com uma inclinação bastante acentuada para Marx, o qual iria não abandonar, mas colocar em segundo plano, mais adiante), ele diz estar “na retaguarda da vanguarda”: “ser de vanguarda é saber o que está morto; ser de retaguarda é amá-lo ainda; amo o romanesco, mas sei que o romance está morto; esse é, acredito, o lugar exato do que escrevo”. Mas é em Roland Barthes por Roland Barthes em que ele parece definir melhor sua relação com a modernidade e as vanguardas (a separação, não feita por Compagnon em Os antimodernos, é necessária), uma “autobiografia” na terceira pessoa, como em todo o livro:
Suas “ideias” têm alguma relação com a modernidade, ou com aquilo que chamam de vanguarda (o sujeito, a História, o sexo, a língua); mas ele resiste a suas ideias: seu “eu”, concreção racional, a elas resiste incessantemente. Embora feito, aparentemente, de uma sequência de “ideias”, este livro não é o livro de suas ideias; é o livro do Eu, o livro de minhas resistências a minhas próprias ideias; é um livro recessivo (que recua, mas também, talvez, que toma distância)”.
Ou seja, Compagnon, para mostrar facetas diferentes do mestre, distorce Barthes para fazê-lo se encaixar em sua teoria. Barthes tinha nuances, mudou de rumos ao longo de sua trajetória, mas não era um autor que, em determinado momento, abandonou tudo o que havia dito antes. O que ele acerta é afirmar que Barthes lida com vários conceitos – mas o faz de modo oblíquo, não óbvio nem declarado, ou seja, ele recua e toma distância das próprias ideias –, pois, afinal, o imaginário é o que importa. É com isso que ele se torna mais moderno do que muitos, mesmo sendo, no fundo, um antimoderno. A aversão à modernidade é a consciência – como almeja Compagnon ao situar todos esses autores numa linha que não pretende avançar à frente, a avant-garde – de se saber dependente dela. E é impossível negar Barthes: ele está em todos os críticos literários de qualidade depois dos anos 1950, mesmo que seja às vezes depreciado ou, algumas vezes, sequer citado. Como Barthes escreve em Roland Barthes por Roland Barthes: “Pode-se chamar de ‘poético’ (sem julgamento de valor) todo discurso no qual a palavra conduz a ideia: se você ama as palavras a ponto de sucumbir a elas, você se retira da lei do significado, da escrevência”. Há poucas coisas mais modernas - ou antimodernas, ou seja, o moderno em liberdade - do que esta consideração. E há poucos textos tão poéticos quanto o dele.
Por André Dick
Os antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes, de Antoine Compagnon, publicado pela Editora UFMG (Tradução de Laura Taddei Brandini), vem acompanhado de um grande atrativo: trata-se de uma obra que não reduz a modernidade a rótulos e se arrisca no terreno da contradição – algo cada vez mais raro no campo da crítica literária. Compagnon, nascido em 1950, na Bélgica, não é um filósofo da literatura (falta-lhe a poeticidade, por exemplo, do seu mestre, enfocado no livro, Roland Barthes), mas um filólogo dos melhores – um paralelo de Giorgio Agamben na França –, capaz de arrebatar o leitor com os detalhes mais profícuos da história literária, enredando diversas teorias sob seu olhar, mais apropriado para analisá-las – o que já acontecia em Os cinco paradoxos da modernidade e O demônio da teoria.
Fazendo uso de uma liberdade poética – de que os antimodernos são os mais modernos, pois são modernos em liberdade, sem se prender a rótulos ou algo parecido –, ele desenha algumas das características centrais desses autores, entre as quais inclui o sublime, a vituperação, a contrarrevolução, o pessimismo (que dialoga diretamente com a melancolia), o anti-Iluminismo e o pecado original.
Talvez seja Baudelaire o moderno mais referencial para muitos, que cultivou o emblema da contradição e aliou todos esses elementos a uma modernidade dividida em duas faces (por isso, na visão de Compagnon, seria um antimoderno). Ele, como outros autores enfocados por Compagnon, cultiva a doce contradição da modernidade: vai à frente, mas olha para trás ao mesmo tempo, ou seja, não se perde num novo invento sem ao menos lamentar o que está se perdendo. São modernos não arrependidos, mas conscientes de uma tradição que se manifesta em cada novo texto. Não acreditam na inovação que não esteja ligada a um passado – mesmo que remoto. São os que mais verdadeiramente querem mudar – “mudar a língua”, como queria Barthes lembrando Mallarmé em sua Aula inaugural no Collège de France –, mas não românticos ou de vanguarda, imaginando que poderiam ser a referência eterna para seus pares. Ou seja, livres.
Devemos notar que, por vezes, Compagnon confunde as vanguardas com a modernidade – o que não poderia ser aceito num crítico de sua estatura e visão literária –, o que não chega a prejudicar sua inclinação para a descoberta de todo um espaço em que o moderno é, na verdade, um clássico inclinado às mudanças. Barthes já deixava isso claro em seu curso A preparação do romance, uma de suas obras em esboço mais bem acabadas – muito mais interessante do que outras, transformadas em livros impressos mesmo antes do conhecimento de sua teoria. Desde O demônio da teoria, Compagnon privilegia a interpretação da crítica de Barthes. Se lá ele condenava a falta de aceitação de Barthes da mímesis aristotélica – o que é um desvio do que realmente importava a Barthes: uma retratação da mímesis, sobretudo na condenação da retórica –, aqui ele diz que mudanças do mundo contemporâneo desagradavam a Barthes, como quando condenava o fato de que os livros seriam reduzidos a pizzas congeladas – o que, ainda mais hoje em dia, se mostra realmente verdadeiro.
É claro que Compagnon tem um interesse especial pelas obras de poetas modernos, como Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé, mas muito mais pelas obras críticas de Albert Thibaudet – para ele, o último dos críticos felizes –, Julie Gracq – com sua fina ironia e deboche em relação às teorias estruturalistas, como as do grupo Tel Quel (e é interessante notar como Compagnon espera que o passado não seja removido em prol apenas de novos autores, que, quando levados para o romance, não mantiveram o mesmo experimentalismo teórico, como Phillipe Sollers e Julia Kristeva). Ao notar que Barthes elege a poesia como a salvação da literatura em seus últimos cursos, no Collège de France, Compagnon percebe que ela está associada à solidão do autor, que irrompe não apenas na escrita impressa, mas sobretudo nas linhas originais do autor, deixadas em rascunhos e esboços para suas aulas – e Compagnon se penaliza com a condição final de Barthes por não ter visto que ele, afinal, precisava de ajuda.
Compagnon é um autor capaz de desenhar essa linha de Joseph de Maistre a Roland Barthes com a mesma intuição que analisava os cinco paradoxos da modernidade, a partir de Charles Baudelaire e da tradição da ruptura de Octavio Paz. Por isso, esse Os antimodernos parece uma continuação daquela obra: por se opor a uma visão facilitarista da poesia moderna, de que tudo que ela significa pode trazer uma ruptura decisiva com tudo o que vem antes. Para Compagnon, essa ideia é não só um engano, mas faz paralisar toda a interpretação de poesia que merecemos ter após autores como Barthes, que puxa o fio da meada, no final das contas, dessa teoria. Compagnon revela a aversão de Barthes por certa poesia moderna – e o faz de, por um lado, de maneira acertada e, por outro, equivocada, o que analisaremos a partir daqui.
Em seu primeiro livro, O grau zero da escritura, quando ainda propunha uma relação estreita entre literatura e sociedade (mesmo que opte pela neutralidade do escritor e tenha uma visão menos centrada que a de Hugo Friedrich), Barthes observa que “não há humanismo poético da modernidade: esse discurso de pé é um discurso cheio de terror, isto é, coloca o homem em ligação não com outros homens, mas com as imagens mais desumanas da Natureza: o céu, o inferno, o sagrado, a infância, a loucura, a matéria pura etc.”. Quando fala no interesse dos modernos pela Palavra, Barthes escreverá que essa palavra torna a palavra poética “terrível e desumana”, instituindo “um discurso cheio de buracos e cheio de luzes, cheio de ausências e de signos supernutritivos, sem previsão nem permanência de intenção e por isso mesmo tão oposto à função social da linguagem, que o simples recurso a uma palavra descontínua abre a via de todas as Sobrenaturezas” (Grifos meus). Na poesia moderna, as palavras surgiriam como objetos que excluem os homens, “equipadas com toda a violência de sua explosão, cuja vibração puramente mecânica toca estranhamente a palavra seguinte mas de imediato se apaga”. Barthes fica contrariado porque a poesia moderna nega a sociologia (conforme trecho em itálico) – que tanto lhe encantava no início da trajetória, e vai findando até seu curso final, A preparação do romance, quando, não por acaso, volta à poesia moderna como lugar para impedir a falência completa da literatura (como também observa Michel Deguy em Reabertura após obras).
Todavia, Barthes não se encaixa em algumas características desses antimodernos. Ao falar que no Collège de France Barthes “teria se tornado reacionário” - conceito cada vez mais político e, portanto, duvidoso em qualquer contexto: há muitos autores e políticos ditos de vanguarda completamente reacionários, por exemplo - e dado “as costas à modernidade”, ele comete dois equívocos seguidos, assim como afirmar que, depois do excelente Fragmentos de um discurso amoroso, Barthes teria se tornado uma “vedete midiática” (como se Barthes se comparasse a outros escritores efêmeros), afirmando ainda que em seus cursos finais ele “se preocupa pouco com a erudição, mas acima de tudo com a ressonância de uma cultura compósita em sua sensibilidade” (dando a entender que esses elementos divergem). Ele já havia sido injusto com Barthes em O demônio da teoria - mas, em Os antimodernos, parece que o ataque aparece em equilíbrio com a admiração (que existe também em boa escala). Ou seja, Barthes é antirrevolucionário ao final de sua vida, assim como cultiva o pessimismo, mas não se desinteressou pela modernidade, como um regresso ao sublime – pelo contrário, parece-me, inclusive, que tenta anulá-lo em sua obra, não significando que isso o desconsidere como conceito -, o que confere outra falha na teoria de Compagnon.
Para Longino, o poeta que atinge o sublime é aquele que, ao deixar sua alma “empolgada”, ascende a uma “altura soberba”, enchendo-se de “alegria e exaltação, como se ela mesma tivesse criado o que ouviu”. Tal processo acontece em razão de um “dom inato da natureza”, capaz de educar a alma para o arrebatamento, arrancando-a do corpo. O sublime nasce, sobretudo, do orador que não tem “sentimentos rasteiros e ignóbeis”, o que significa que “frases sublimes” pertencem apenas a pessoas de “sentimentos elevados”. Ele opta pela “amplificação”, “abundância”, “amplificação”, constituindo-se essas, para Longino, num “fruto da genialidade”. Consequentemente,
Quando, pois, uma passagem, escutada muitas vezes por um homem sensato e versado em literatura, não dispõe a sua alma a sentimentos elevados, nem deixa no seu pensamento matéria para reflexões além do que dizem as palavras e, bem examinada sem interrupção, perde em apreço, já não haverá um verdadeiro sublime, pois dura apenas o tempo em que é ouvida. Verdadeiramente grande é o texto com muita matéria para reflexão, de árdua ou, antes, impossível resistência e forte lembrança, difícil de apagar.
Os românticos, posicionando-se como sujeitos com um “dom inato”, tentavam agradar ao público, pois compunham para representar uma determinada emoção, que fosse comum a todos, em razão de sua possível transcendência. Por isso, assinala Barthes, o sublime representa uma espécie de “Retórica ‘transcendental’”, sendo a sublimitas uma “elevação do estilo” e a literaturidade, “defendida em tom caloroso, inspirado”, pelo qual o mito da criatividade começa a despontar, assim como o “mito humanista da frase viva, eflúvio de um modelo orgânico, a uma só vez fechado ou gerador”. É óbvio que, aqui, Compagnon distorce Barthes ao caracterizar o sublime como uma de suas preocupações. Seria contrariar, e mesmo desconsiderar, tudo o que ele escreveu ao longo de sua trajetória, sobretudo em sua contestação do Deus-Autor.
Quando trata do Eu imaginário que gostaria de ver na literatura, Barthes esquematiza:
1. O Eu é odioso → Clássicos
2. O Eu é adorável → Românticos
3. O Eu é démodé → “Modernos”
4. Imagino um
“clássico moderno” → o Eu é incerto, trapaceado
Perceba-se, nessa síntese própria de um curso, Barthes escolhe o “clássico” e o “moderno” de maneira a constituir um sujeito próprio aos dias atuais – que seria, para ele, certamente lacaniano, entre o Simbólico e o Imaginário.
O Simbólico seria o que preexiste ao sujeito (dependendo da “linguagem” social), atuando como uma espécie de Imaginário visível. Não se pode, portanto, separá-lo totalmente do Imaginário, que contém elementos do Id e do Ego freudiano, no qual se funda uma espécie de sistema ilusório, no qual se processariam todos os problemas do ser humano, sobretudo sua histeria, suas neuroses, seus atos falhos, compondo o que chamamos de personalidade. Mas esta se situa à margem do Real, não sofrendo uma interferência do social, no que coincide com a teoria de Lacan, na qual a “subjetividade, na origem, não é de nenhuma relação com o Real, mas de uma sintaxe nela engendrada pela marca significante”. Nessa sintaxe, a subjetividade revela o que o sujeito se constrói através dos símbolos, sendo sua linguagem, como diz Barthes, complementando Lacan, um “lugar dialético onde as coisas se fazem e se desfazem, onde ele imerge e desfaz a sua própria subjetividade”.
Barthes avalia a ruptura de Rimbaud, no curso, de maneira mais produtiva do que o “terrível e desumano” moderno que emana das linhas de O grau zero da escritura, baseando-se em suas fases (a primeira, preenchida pela poesia, e a segunda, quando parte para a África), quando diz:
Rimbaud é moderno (fundador da Modernidade) não por seus escritos – ou menos por seus escritos do que pelo deslumbramento, o jeté de sua ruptura. Não é nem mesmo a radicalidade, a pureza, a liberdade da ruptura, que é moderna; é que ela permite ver, torna visível que o sujeito – o sujeito da linguagem – está fendido, esquizoide, como uma via em que cada trilho corre e segue diretamente diante dele, um paralelo ao outro; como se Rimbaud tivesse tido, nele, dois “condicionamentos” estanques: um para a poesia (através do liceu), outro para a viagem [...]; ele falou duas linguagens descontínuas: entre o poeta, o viajante, o colono e o crente final [...], não há junção, e é essa esquize que age como uma tentação moderna: Maquiavel fala de Lourenço de Médicis (grave e voluptuoso), e diz que havia nele dois seres diferentes: “juntos por uma inconcebível junção.
Não parece haver maior correspondência entre o Simbólico e o Imaginário lacanianos do que em Rimbaud: primeiro, a dedicação à obra; depois, o ingresso numa realidade estranha ao primeiro momento, mas não completamente afastada (basta lembrar os conflitos envolvendo o poeta com Paul Verlaine).
Compagnon também adota o posicionamento de que, ao final de sua trajetória, Barthes teria voltado à retórica. Observa Compagnon: “Contra a destruição da linguagem pela vanguarda, tanto na poesia quanto no teatro, Barthes já elogia a retórica e o lugar-comum”. Trata-se, a meu ver, de outro equívoco conceitual, pois Barthes, apesar de ter dado um curso notável sobre a retórica (incluído em A aventura semiológica), falava no curso A preparação do romance (ou seja, no curso derradeiro):
Não insisto sobre a Morte institucional da Retórica, pois tratei disso em meu seminário na EHESS, em 1965-1966. A Retórica se degradou, tornou-se técnica → “técnicas de expressão” (que ideologia!), contratação de textos, writings etc. Ora, havia um vínculo entre o ensino retórico e a escrita dos escritores de que falei. Retórica = arte de escrever (# arte de ler → não há mais artes da linguagem).
E Barthes não percebia a retórica como o oposto das vanguardas, ou seja, ao que se saiba, não traçou essa comparação em seus escritos, como sugere Compagnon. Diante das vanguardas, Barthes manteve-se cético. Por um lado, ele avalia que elas são importantes, mas, por outro, coloca em dúvida sua verdadeira praticidade. Numa das entrevistas do volume Política (com uma inclinação bastante acentuada para Marx, o qual iria não abandonar, mas colocar em segundo plano, mais adiante), ele diz estar “na retaguarda da vanguarda”: “ser de vanguarda é saber o que está morto; ser de retaguarda é amá-lo ainda; amo o romanesco, mas sei que o romance está morto; esse é, acredito, o lugar exato do que escrevo”. Mas é em Roland Barthes por Roland Barthes em que ele parece definir melhor sua relação com a modernidade e as vanguardas (a separação, não feita por Compagnon em Os antimodernos, é necessária), uma “autobiografia” na terceira pessoa, como em todo o livro:
Suas “ideias” têm alguma relação com a modernidade, ou com aquilo que chamam de vanguarda (o sujeito, a História, o sexo, a língua); mas ele resiste a suas ideias: seu “eu”, concreção racional, a elas resiste incessantemente. Embora feito, aparentemente, de uma sequência de “ideias”, este livro não é o livro de suas ideias; é o livro do Eu, o livro de minhas resistências a minhas próprias ideias; é um livro recessivo (que recua, mas também, talvez, que toma distância)”.
Ou seja, Compagnon, para mostrar facetas diferentes do mestre, distorce Barthes para fazê-lo se encaixar em sua teoria. Barthes tinha nuances, mudou de rumos ao longo de sua trajetória, mas não era um autor que, em determinado momento, abandonou tudo o que havia dito antes. O que ele acerta é afirmar que Barthes lida com vários conceitos – mas o faz de modo oblíquo, não óbvio nem declarado, ou seja, ele recua e toma distância das próprias ideias –, pois, afinal, o imaginário é o que importa. É com isso que ele se torna mais moderno do que muitos, mesmo sendo, no fundo, um antimoderno. A aversão à modernidade é a consciência – como almeja Compagnon ao situar todos esses autores numa linha que não pretende avançar à frente, a avant-garde – de se saber dependente dela. E é impossível negar Barthes: ele está em todos os críticos literários de qualidade depois dos anos 1950, mesmo que seja às vezes depreciado ou, algumas vezes, sequer citado. Como Barthes escreve em Roland Barthes por Roland Barthes: “Pode-se chamar de ‘poético’ (sem julgamento de valor) todo discurso no qual a palavra conduz a ideia: se você ama as palavras a ponto de sucumbir a elas, você se retira da lei do significado, da escrevência”. Há poucas coisas mais modernas - ou antimodernas, ou seja, o moderno em liberdade - do que esta consideração. E há poucos textos tão poéticos quanto o dele.
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