Por André Dick
Haroldo de Campos, no ensaio “O afreudisíaco Lacan na Galáxia de lalíngua (Freud, Lacan e a escritura)” – incluído em O segundo arco-íris branco –, lembra a consideração conclusiva, apresentada por Jan Miel, na revista Yale French Studies, na qual a obra de Lacan era apresentada ao público de língua inglesa: “Uma palavra final sobre o estilo de Jacques Lacan. Como amigo ou médico de alguns dos principais artistas e poetas deste século, e sendo ele próprio um agudo crítico da literatura, o Dr. Lacan não regateia as vantagens de uma expressão literária complexa. Seu estilo, chamado mallarmeano por seus próprios colegas e, por vezes, imensamente difícil, de um modo deliberado...”.
Haroldo acrescenta: “O paralelo cabe à maravilha, já que, na esteira de Mallarmé, Lacan é também um ‘syntaxier’ (um ‘sintaxista’), um exímio manipulador da sintaxe francesa até os seus extremos limites da diagramação frásica”. A este argumento de Haroldo, Leyla Perrone-Moisés acrescenta no ensaio “Lacan, o bruxo”:
Em seu próprio estilo de escritor, Lacan soube receber e desenvolver as lições poéticas dos poetas do barroco espanhol, de Mallarmé, Joyce e Lewis Carroll. É nesses geniais “trocadilhistas”, e não nos surrealistas, formalmente acadêmicos, que Lacan reconhece um saber relativo ao inconsciente. [...] O texto de Lacan é um discurso duplo, teoria-escritura que, ao mesmo tempo, fala do inconsciente e diz o inconsciente, mimando suas torções sintáticas, seus deslocamentos, suas compressões, seus chistes. [...] Que texto é esse, senão o da poesia? Mas Lacan é bruxo porque é poeta, e os poetas sabiam do inconsciente antes mesmo de Freud.
É interessante observar que alguns dos maiores escritores de uma prosa estranha – que lembra a poesia –, na França, depois de Rimbaud e Mallarmé são filósofos (como Jacques Derrida), críticos literários (Roland Barthes) e psicanalistas (como é o caso de Jacques Lacan). Quando lemos livros como O sinthoma (dedicado à análise da obra de Joyce), Mais, ainda (com apresentações seminais sobre o Barroco e a linguística) e De um discurso que não fosse semblante (com textos sobre o Oriente), é possível considerar que, por meio do Real-Simbólico-Imaginário (RSI), Lacan compôs uma teoria poética.
É importante lembrar que Freud trabalha com três instâncias para caracterizar o indivíduo: o Id, o Ego e o Superego (ao qual, aqui, não daremos especial atenção). Ao invés de utilizar essa tripartição freudiana, Lacan criará outra, constituída pelo Simbólico, pelo Imaginário e pelo Real. O Simbólico seria o que preexiste ao sujeito (dependendo da “linguagem” social), atuando como uma espécie de Imaginário visível. Não se pode, portanto, separá-lo totalmente do Imaginário, que contém elementos do Id e do Ego freudiano, no qual se funda uma espécie de sistema ilusório, em que se processariam todos os problemas do ser humano, sobretudo sua histeria, suas neuroses, seus atos falhos, compondo o que chamamos de personalidade. Mas esta se situa à margem do Real, não sofrendo uma interferência do social, no que coincide com a teoria de Lacan, na qual a “subjetividade, na origem, não é de nenhuma relação com o Real, mas de uma sintaxe nela engendrada pela marca significante”. Nessa sintaxe, a subjetividade revela o que o sujeito se constrói através dos símbolos, sendo sua linguagem, como diz Barthes, complementando Lacan, um “lugar dialético onde as coisas se fazem e se desfazem, onde ele imerge e desfaz a sua própria subjetividade”. É importante, nesse sentido, a avaliação de Lacan de que o subjetivo não é “o valor de sentimento” com que é confundido; suas leis (da intersubjetividade) são matemáticas.
O Real, consequentemente, deixando de ter relação com o social, está fora daquilo que se compõe como Simbólico, ou seja, não consegue absorvê-lo. Estando fora do Simbólico, o Real se apresenta, conforme Lacan, em “categorias negativas”. Em tal negatividade, desvinculada de qualquer motivo particular, reside a junção entre o Simbólico e o Real. Na realidade que o sujeito precisa compor, o Real já está presente, mas é como se fosse um resíduo do que não foi capturado pelo Simbólico.
O sujeito, então, sempre serve como representação de uma ligação entre o Real, o Imaginário e o Simbólico, mas o primeiro é inatingível, pois ele não participa ativamente dessa composição em triângulo. Colocado fora da linguagem, ele apenas proporciona o objeto do desejo pulsante no inconsciente, representado pela letra, pela escritura.
Avaliemos mais atentamente o Simbólico. Baseado na linguística de Saussure e de Jakobson, Lacan tornará o Simbólico como um fundamento próprio do significante, pois, se o homem chega à ordem simbólica, é porque já está aprisionado nela, sendo “na sua relação imaginária com o semelhante que ele pôde entrar nessa ordem como sujeito”. O sujeito, como percebe Rene Major, é reinscrito por Lacan “como sujeito do significante, como sujeito constituído no e pelo significante”, uma vez que também o inconsciente, a partir de Lacan, passou a ser estruturado como uma linguagem, utilizando-se dos casos da metáfora e da metonímia, além de não ser mais simplesmente “algo fora da consciência”, como em Freud, mas também um “parasita da consciência”.
Igualmente, Lacan afirma que “O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado”. Mas a verdade pode ser resgatada”, segundo o psicanalista francês, “em monumentos” (os corpos); em “documentos de arquivo” (como lembranças da infância); na “evolução semântica” (como o vocabulário com o qual se convive); “nas tradições” (que compõem a história do indivíduo) e nos “vestígios” – tudo o que veremos em James Joyce. Consequentemente, o homem é governado pelo Simbólico, que representa o “Grande Outro” em Lacan, ou seja, a cultura informal e formante do sujeito, no caso toda a sua formação como escritor e seu interesse pelas diversas artes.
O Imaginário, que, em Lacan, está sempre ligado ao Simbólico, constrói-se durante o “estágio do espelho”, quando o sujeito assume uma imagem que permite a ele analisar determinados objetos do mundo ao redor. Tal imagem (ou imago, o que novamente nos remete à mímesis) tanto pode aliená-lo (o que é a libido narcísica em acordo com a função alienante) quanto controntá-lo. O primeiro efeito dessa imago é um efeito de “alienação do sujeito”, sendo no Outro que o sujeito passa a se identificar e se experimentar a princípio. Esta Imagem visa “à noção de um evento, à marca de uma impressão ou à organização por uma ideia”, sendo ela uma “sensação enfraquecida, na medida em que atesta menos seguramente a realidade”. O Imaginário se constitui numa espécie de Simbólico mais subjetivo.
É pelo Real-Simbólico-Imaginário de Joyce que Lacan está interessado em seu seminário O sinthoma. Imbuído da vontade de desnudar o autor de Finnegans wake e Ulysses por meio de seu discurso psiquiátrico, Lacan se pergunta: Joyce era louco? Obviamente, ele não dá a resposta de forma previsível: prefere analisar o autor irlandês por sua necessidade de mostrar que tem vigor – fruto de uma relação conturbada tanto com o Deus da religião, dos seus estudos de origem, quanto com seu pai. Para Lacan, Joyce quer mostrar, por meio da obra, um vigor que na realidade não existia. Tenta, por isso, desmistificá-lo, falando de sua relação com Nora (a mulher com quem dividiu sua vida), mas negando-se a romantizá-lo: para ele, Joyce não via nenhuma consideração pelo amor referente a um feminino.
Lacan afirma em determinada altura:
O pai, como nome e como aquele que nomeia, não é o mesmo. O pai é esse quarto elemento – evoco aí alguma coisa que somente uma parte de meus ouvintes poderá considerar – esse quarto elemento sem o qual nada é possível no nó do simbólico, do imaginário e do real.
Mas há um outro nome de chamá-lo. É nisso que o que diz respeito ao Nome-do-Pai, no grau em que Joyce testemunha isso, eu o revisto hoje com o que é conveniente chamar de sinthoma.
Na medida em que o inonsciente se enoda ao sinthoma, que é o que há de mais singular em cada indivíduo, podemos dizer que Joyce, como ele escreveu em algum lugar, identifica-se com o individual.
Ou seja, para além do Real-Imaginário-Simbólico, Lacan elege o quarto elemento – o sinthoma – como o que chama de “nó borromeano”, sendo o que há de mais “singular” no indivíduo – ou seja, o individual, e o que há de individual em Joyce abarca qualquer linguagem. Lacan avalia, diante da experiência que resultou, para Joyce, em obras como Stephen Hero – a qual não admirava especialmente, tendo feito Retrato do artista quando jovem para complementá-la –, Ulysses e Finnegans wake, na qual se coloca na contraformação de seus dias de jovem. Joyce quer, através de sua arte, tornar sua família ilustre – esta, diz, é a sua missão.
Equilibrando os conceitos de sonho e pesadelo, assim como enlaça o Imaginário e o Simbólico na sua análise, Jacques Lacan diz, em seu seminário O sinthoma, sobre Finnegans wake:
O incrível é que Joyce – que tinha o maior desprezo pela história, com efeito fútil, qualificada por ele de pesadelo, e que se caracteriza por despejar sobre nós as palavras grandiosas que nos fazem tanto mal – só conseguiu encontrar esta solução: escrever Finnegans wake, ou seja, um sonho que, como todo sonho, ainda é um pesadelo, ainda que seja um pesadelo moderado. Com a diferença, diz ele, e é assim que é feito esse Finnegans wake, de que o sonhador não é nenhum personagem particular desse livro, mas o próprio sonho.
Para Lacan, Joyce “desliza até Jung, desliza até o inconsciente coletivo. Que o inconsciente coletivo seja um sinthoma, não há melhor prova que Joyce, pois não se pode dizer que Finnegans wake, em sua imaginação, não participa desse sinthoma”.
De que história fala Lacan senão da sua própria: de acordar do sonho da psicanálise moderna? Ela parece ingressar no próprio sonho – enredada com sua linguagem que rompe com as convenções, sobretudo por meio de criação de palavras: esse SINTHOMA esconde (ou revela) Saint Thomas D’Aquino - que Joyce citava em suas perambulações noturnas, como Leopold Bloom e Stephen Dedalus, vagando pelas ruas de Dublin - e do mesmo modo os filhos de Anna Livia, SHEM e SHAUN. O inconsciente em Joyce, embora censurado, segundo Lacan, irrompe em toda sua profusão linguística, no ingresso da linguagem e no pesadelo que ela proporciona. Joyce torna-se um sonhador da própria linguagem – e é nisto que ele tem de mais linguístico e sonhador da literatura. Se as palavras-montagem se caracterizam pela multiplicidade, é porque Joyce não está interessado em se fixar – mas de remover novas palavras de dentro do que escreve (o que se pode constatar na excelente tradução de Ulysses feita por Antônio Houaiss, em que há uma recriação detalhada da sonoridade original). É no mesmo sentido que Michel Butor escreve seus ensaios referenciais “Pequeno cruzeiro preliminar para um reconhecimento do arquipélago Joyce” e “Esboço para um limiar de Finnegans” (de Repertório). No primeiro, escreve, indo ao encontro de Lacan (embora o curso deste seja posterior ao do ensaio, feito em 1948): “Toda obra está simplesmente no plano do sono e dum sonho do qual todas as coisas participam, um sonho quase sempre assustador, por vezes atroz, repleto de um riso que mascara uma profunda ansiedade. É um pesadelo que vai terminar num despertar”.
Lacan, em seu curso, está utilizando não só a técnica psiquiátrica para trazer Joyce da sua mitologia à terra, mas recompondo-o para os estudiosos que querem cercá-lo de uma aura pura, de um criador louco ou inconsciente – para os quais só importa a realização de um autor capaz de dar espaços para um pretenso discurso de vanguarda. Mesmo nesse ponto, Lacan não se ilude, e fala sobre os comentadores de Joyce: “E ele não esperava nada menos que lhes dar ocupação até a extinção da Universidade. E é de fato por esse caminho que a coisa anda. E é evidente que isso só pode acontecer porque o texto de Joyce é repleto de problemas totalmente cativantes, fascinantes para o universitário mastigar”. Por isso – e apenas por isso –, Joyce deixou manuscritos, rascunhos e cartas – papéis com uma obra porvir ou em progresso, para os pesquisadores futuros, pois “o ego cumpre nele uma função da qual só posso dar conta pelo meu modo de escrita”.
Lacan continua tratando da linguagem joyciana: “Eu disse que o incosciente é estruturado como uma linguagem. É estranho que se possa também chamar desabonado do inconsciente alguém que joga estritamente apenas com a linguagem, ainda que se sirva de uma língua entre outrras e que é, não a sua – pois a sua é justamente uma língua apagada do mapa, a saber, o gaélico, da qual ele sabia alguns pedacinhos, o bastante para se orientar, mas não muito mais –, portanto não a sua, mas aquela dos invasores, dos opressores”. Para Butor, “A linguagem de Finnegans wake é certamente o maior esforço jamais tentado por um homem para transcender a linguagem a partir dela mesma, mas o peso da linguagem é apenas uma expressão do próprio peso da história sobre nós, e o mito de Finnegans wake é certamente uma das maiores tentativas de transcender a história através da própria história”. Consequentemente, na visão de Lacan, foi havendo, na progressão da obra de Joyce, uma certa relação com a fala, cada vez mais imposta: e essa fala, “ao ser quebrada, desmantelada, acaba por ser escrita”, “a ponto de dissolver a própria linguagem”, ou seja, o escritor “acaba por impor à própria linguagem um tipo de quebra, de decomposição, que faz com que não haja mais identidade fonatória” – invadida pela “polifonia da fala”.
Lacan ecoa, sem dúvida, essas palavras, ainda mais quando define, em relação a Joyce: “[...] o sinthoma é puramente o que a lalíngua condiciona, mas de certa maneira Joyce o eleva à potência da linguagem, sem torná-lo com isso analisável”. Para Haroldo, “alíngua poderia significar carência de língua, como alíngue seria o contrário absoluto de plurilíngue, multilíngue, equivalendo a ‘deslinguado’”. No entanto, destaca que “LALANGUE, pode-se dizer, é o oposto de não língua, de privação da língua. É antes uma língua enfatizada, uma língua tensionada pela ‘função poética’, uma língua que ‘serve a coisas inteiramente diversas da comunicação’”.
De tanto não ser analisável e enfatizar a língua, Lacan passa a ecoar Joyce mesmo em sua apresentação, pois, acima de tudo, como o autor de Ulysses, é um poeta:
“Entretanto, retifico. Ptom, Pt’homenzim, Pt’homendebem ainda vive, na língua que se crê obrigada, entre outras línguas, a ptomar a coisa coincidente. Pois é o que isso quer dizer”.
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