sábado, 16 de junho de 2012

Fragmentos de um discurso amoroso de James Joyce

Por Nicole Cristofalo e André Dick

Segundo Michel Foucault, no ensaio “A escrita de si” (O que é um autor?), “A carta enviada atua, em virtude do próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como atua, pela leitura e a releitura, sobre aquele que a recebe”, Fernando Pessoa é mais direto: “Todas as cartas de amor são ridículas”.
No romance de Goethe, as cartas de Werther são endereçadas a um amigo: Wilhelm. A carta faz com que o destinatário dela precise refletir sobre aquilo que recebeu, e, de preferência, escrever uma carta, mais reflexiva, menos improvisada. Escreve-se como um diário, onde Werther, aliás, vê como avançou passo a passo, que agiu com consciência e não como uma criança. 


Foucault prossegue: “A carta faz o diretor ‘presente’ àquele a quem a dirige. E presente não apenas pelas informações que lhe dá acerca da vida, das suas atividades, dos seus sucessos e fracassos, das suas venturas ou infortúnios; presente de uma espécie de presença imediata e quase física”, “uma maneira de se apresentar ao correspondente no decorrer da vida quotidiana”. Ora, é natural que quem não está apaixonado não queira a presença quase física do outro através da palavra. Mas quem está apaixonado quer escrever o que sente, pois escrever é “mostrar-se, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”, “uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz”. Werther não escreve a Carlota; escreve a Wilhelm: desse modo, ele compõe uma narrativa que gostaria de estar vivenciando com a amada, ou dizendo tudo isso diretamente a ela.
As cartas também reproduzem “o movimento que leva de uma impressão subjetiva a um exercício de pensamento”. Na verdade, a carta relata muitas vezes episódios que podem marcar o escrevente, mas “justamente na medida em que ele nada tem para deixar de ser igual a todos os outros, atestando assim, não a relevância de uma atividade, mas a qualidade de um modo de ser”. Também é um gesto de eremita: um Buda concentrado atingindo o Nirvana, um haicaísta olhando as folhas de outono. Werther é egocêntrico e também eremita. Pela carta, sujeitamo-nos ao fragmentarismo, que somos dois, afinal, a leitura da carta precisa ser feita: minha escrita só se completa com a leitura do outro.


Lembremos das cartas extraordinariamente românticas do insuspeito James Joyce a Martha Fleischmann, que conheceu em Trieste. Ela, segundo Edna OBrien (na biografia James Joyce), era

uma aristocrática beldade mantida por um rico engenheiro, Rudolf Hiltplold, num apartamento bastante próximo de onde Joyce morava em Trieste. Uma dama do prazer que fumava, punha lenços perfumados com água de rosas no rego dos seixos e lia novelinhas como Molly Bloom. Deve ter ficado perplexa com aquele novo e excitável pretendente. Uma história diz-nos que ao vê-la entrando em sua própria porta ele ficou boquiaberto e disse-lhe que ela lhe lembrava uma moça que vira anos antes em Berlim entrando no mar - sua futura Nausícaa. Atacou-a com cartas antes mesmo de saber seu nome. Depois de entregá-las no apartamento dela, ficava parado na rua e via-a ler. Ela deve ter ficado intrigada e na certa lisonjeada com tais cânticos impacientes, bombásticos e operísticos.

Essas cartas foram incluídas no volume Joyce e o romance moderno, com ensaios de Umberto Eco, Michel Butor e Italo Svevo. A primeira é de dezembro de 1918 – quando já estava com Nora, com quem se casou em 1931 (os fragmentos em vermelho lembram o início e o fim de Giacomo Joyce, escrito também em Trieste, em 1914):

Você não está zangada então.
Tive febre ontem à noite, esperando um sinal de sua parte. 
Mas por que você não quer me escrever uma só palavra – seu nome? E por que você sempre fecha as venezianas da janela? Quero vê-la.
Não sei o que você pensa de mim.
Como já lhe disse nós nos vimos e – falamos – mas você me esqueceu.
Quer que eu lhe diga alguma coisa?
Minha impressão de você.
Aqui está.
Você estava vestida de preto com um grande chapéu de abas flutuantes. A cor lhe caía muito bem. E pensei: um lindo animal.
Porque havia alguma coisa de franco e de quase impudico em sua postura. Depois, olhando-a, observei a indolência dos traços regulares e a suavidade dos olhos. E pensei: uma judia. Se me enganei não precisa ficar ofendida. Jesus Cristo tomou seu corpo luminoso no ventre de uma mulher judia.
Pensei muitas vezes em você e depois, quando a reconheci na janela olhava para você numa espécie de fascinação de que não posso me libertar.
Pode ser que tudo isso a deixe indiferente.
Pode ser que eu lhe pareça ridículo.
Aceito seu julgamento.
Mas ontem à noite você me fez um sinal e meu coração pulou de alegria.
Não sei sua idade.
Eu, sou velho – e me sinto mais velho ainda.
Talvez eu vivi demais.
Tenho 35 anos. É a idade que Shakespeare tinha quando concebeu sua dolorosa paixão pela “dama de preto”. É a idade que Dante tinha quando entrou na noite de seu ser.
Não sei o que acontece comigo.
É possível que uma pessoa tenha sentimentos como os meus e que a outra não tenha nada?
Não sei o que quero.
Queria falar com você.
Prevejo para mim uma noite nebulosa. Espero – e vejo você se aproximar de mim, vestida de preto, jovem, estranha e suave. Olho você nos olhos e meus olhos lhe dizem que eu sou um pobre alguém que procura neste mundo, que não compreendo nada nem de meu destino nem do destino dos outros, que vivi e pequei e criei, que irei embora, um dia, sem nada ter compreendido, na obscuridade que nos pariu a todos.
Compreendo você talvez o mistério de seu corpo quando você se olha no espelho, donde veio a luz alourada de seus olhos, a cor de seus cabelos?
Como você estava graciosa, ontem à noite, sentada na mesa, sonhadora e depois, repentinamente, levando minha carta junto à luz.
Você pensa, algumas vezes, em mim?
Escreva-me alguma coisa para o endereço que eu estou lhe dando.
Pode me escrever também em alemão. Entendo-o muito bem.
Diga-me alguma coisa de você mesma.
Sim, escreva-me amanhã.
Creio que você é boa...


Vejamos os fragmentos inicial e final de Giacomo Joyce, que lembram essas passagens em vermelho (na tradução de Paulo Leminski):

Quem? Um rosto pálido circundado por pesadas peles perfumadas. Os movimentos dela são tímidos, nervosos. Ela usa um monóculo.
Sim: uma sílaba breve. Um riso breve. Um breve bater de pálpebras.

...

Despreparo. Um apartamento nu. Nojenta luz do dia. Um grande piano preto: túmulo da música.
Equilibrado em sua borda um chapéu de mulher, com flores vermelhas, o guarda-chuva, fechado. Seu brasão: capacete, escarlate, e lança sem ponta sobre um fundo, preto.

O trecho em verde revela o que Edna OBrien anota em sua biografia: “Ele esperava que ela fosse judia, uma Maria pagã. Sua Maria irlandesa esperava ressentida com o trabalho doméstico. Ele pediu uma resposta, desusadamente invocando a ajuda de Deus”. É difícil discordar, também, de que essas cartas não são “cânticos impacientes, bombásticos e operísticos”.
Joyce demonstra muito interesse em Martha, e o mostra com persuasão e imagens que se equilibram entre um romantismo epistolar (com a pressa telegráfica da modernidade) e a alegria de um novo amor (e neste ponto não há diferença entre o olhar que lança sobre Martha daquele que Dante lança sobre Beatriz, não levando em consideração a importância que teve Beatriz para a obra de Dante). Passa por uma febre, sugerindo que em razão dela; quer que ela abra as venezianas para que ele possa vê-la; quer dar sua impressão sobre ela; prevê para si uma “noite nebulosa”; considera-se um “pobre alguém”.
Nesse sentido, a carta pode tanto atenuar o “perigo da solidão” – dando, como afirma Foucault, a ver o que se viu (aqui, sentiu) a um “olhar possível” – como se aprofundar na solidão, com a “não-resposta”. Por isso, como Barthes dizia, ao escrever a carta, “Abandono alegremente tarefas ínspidas, escrúpulos razoáveis, condutas reativas, impostos pelo mundo, em prol de uma tarefa inútil, oriunda de um Dever vivo: o Dever amoroso. Faço discretamente coisas loucas; sou a única testemunha de minha loucura. O que o amor desnuda em mim é a energia”.
Segundo Derrida, a imaginação propicionada pela imagem (que é sempre representada pela morte, pois lembra um quadro, mesmo que no momento visto em movimento, mas morta, como se percebe pela escrita que Joyce deixou) é sempre excessiva, quer sair da linguagem real e ingressar na utopia da linguagem absoluta: é um imagem de piedade (de Martha em relação a ele) e autopiedade que Joyce compõe.
Alguns momentos de insegurança: acha estar sendo ridículo (o mesmo sentimento de Fernando Pessoa diante das cartas de amor), acredita ser velho demais para ela e não sabe direito o que quer.
Talvez Jacques Lacan, em seu curso O sinthoma, sobre Joyce, dê pistas a partir das cartas que o escritor escreveu a Nora (sua mulher):

O que nos indicam as cartas de amor para Nora? Há um certo número de coordenadas que é preciso marcar.
Que é, portanto, essa relação de Joyce com Nora? Direi, coisa singular, que é uma relação sexual, ainda que eu diga que não há relação sexual. Mas é uma relação sexual bem esquisita.

[...]

Para Joyce,só há uma mulher. Ela é sempre do mesmo modelo, e ele só a enluva com a maior das repugnâncias. É visível que apenas com a maior das depreciações é que ele faz de Nora uma mulher eleita. Não apenas é preciso que ela lhe caia como uma luva, mas que ela o cerre como um luva. Ela não serve absolutamente para nada.

Talvez a visão de Lacan seja excessivamente contundente a certa visão idealizada que Joyce fazia de suas amadas - característica de alguém moderno, e sem imaginar uma psicanálise futura a colocá-lo de forma tão despojada, mesmo que de forma muito criativa.
Joyce, em suas cartas, já começa se posicionando como Dante e Shakespeare, cuja força literária já havia se estabelecido quando começou a produzir - transformando de suas palavras quase uma continuação do sentimento daqueles autores, sobretudo da ideia de “vita nova” do primeiro (que fazia uma análise, em sua obra, de cada sensação despertada por Beatriz). E a equipara sempre a uma figura de santa (resultado certamente de sua formação católica, a qual abandonaria mais adiante, embora não para Lacan). Tudo em Joyce, mesmo essas cartas, é calculado.
No mesmo mês, sem resposta, Joyce se desespera, e cada frase escapa num estilo telegráfico, como se sua paciência para fazê-las estivesse terminando (as palavras falam por si só):

Que é que há?
Você não me cumprimentou!
Desço para a porta com esta carta.
Ofendi?
Mas como?
Peço-lhe que me mande uma palavra imediatamente. Junto um envelope já preparado. Ponha-o no correio com uma só palavra dentro.
Está zangada? Sim ou não?
Não compreendo nada.
Pelo amor de Deus me mande uma palavra.
Que linda noite vou passar.


Mais uma carta (de 9 de dezembro de 1918), enviada junto com exemplar de Chamber music (em vermelho se mostra como Joyce se sente, e faz questão de deixar claro):

Pobre e querida Martha.
O que você teve?
Ainda estou em dúvida mas me parece tê-la visto hoje à noite.
Tinha medo de lhe escrever porque não sabia quem estava em sua casa e pensei que minhas cartas poderiam cair em mãos de gente estranha.
Todas as noites eu ficava olhando.
Até me censurei pensando que sua doença fosse consequência do resfriado daquela ultima noite.
Depois pensei, eu ia lhe escrever mesmo assim e com o nome de uma amiga.
Continuo em francês porque o alemão não me vai.
Se você sofreu muito nestes dias, eu também sofri.
Parecia que o único raio de luz que nestes últimos anos atravessou a obscuridade de minha vida tinha-se apagado.
Eu estava o próprio imbecil!
Toda manhã eu abria, abria o jornal e tinha medo de ler seu nome na notícia dos falecimentos! Eu o abria sempre com angústia, muito, muito lentamente.
Pensava: ela vai partir – ela que me olhou com piedade – com ternura talvez.
A doença muda muita coisa.
Ela nos leva à beira da morte: e vemos as coisas de outra maneira.
Você não tem medo da morte – eu tenho!
Você talvez pensou que seu sentimento para comigo era uma loucura; você entreviu as sombras do além. Pois bem! São sombras mentirosas!
Gostaria de lhe mandar flores, mas tenho medo.
Esperarei ainda. Talvez não fosse você quem eu vi?
Vi meu livro de poesia em sua mão.
Você o entendeu?
Escrevi alguma coisa enquanto você esteve doente – algo de muito amargo que muito feriu meus amigos.
Sim, eu também sofri.
Hesito ainda antes de lhe mandar esta carta.
E se ela cair nas mãos de uma outra pessoa???
11 horas
Vou pôr esta carta no correio.
Não posso esperar mais!

Assim, destaca Foucault, “Por meio da missiva, abrimo-nos ao olhar dos outros e instalamos o nosso correspondente no lugar do deus interior. Ela é uma maneira de nos darmos ao olhar do qual devemos dizer a nós próprios que penetra até o fundo do nosso coração [...] no momento em que pensamos”. O gesto exige uma “introspecção”, mas há que se entender esta “menos como uma decifração de si por si mesmo do que como uma abertura de si mesmo que se dá ao outro”.


A sensações descritas por Joyce, apaixonado, provavelmente não estão de acordo com o fato de que as cartas não despertavam interesse em Martha; que seria mesmo um alívio para ela se caíssem em outras mãos, pois a pouparia de lê-las. E a doença? Seria Martha doente? E recomeça a melancolia: acha que o raio de luz (Martha) havia se apagado; considera-se um “imbecil”; diz ter medo de ler no jornal a notícia do falecimento da amada (para que ela se sinta culpada de não procurá-lo); pensa que ela o olhou com piedade (talvez com ternura); sente medo de enviar flores e ainda quer saber se ela leu seu livro de poesia (Música de câmara (Chamber music), que tem uma bela tradução de Alípio Correia de Franca Neto, um notável especialista brasileiro em Joyce), e pergunta se ela o entendeu; compara o sofrimento da doença dela com um escrito que seus amigos não gostaram (a isso Joyce se refere); e insiste no medo de que a carta caia nas mãos de outras pessoas. E, como se pergunta Edna OBrien, “Perdera o juízo? Certamente ele o perdera quando lhe disse que olhava o jornal toda manhã temendo ler o nome dela nos anúncios de mortes”, finalizando: “A esposa (Nora) não sabia e, se soubesse, haveria briga”.
E há, por fim, outra carta, de 2 de fevereiro de 1919 (Dia da Candelária e dia do aniversário de Joyce), com suas imagens extremamente românticas (o escritor vê os lábios de Martha caindo em seu coração, “macios com folhas de rosa, suave como orvalho”), depois do encontro que finalmente conseguiu com ela:

Depois de longa espera ontem à noite vi seu rosto tão pálido, tão triste e cansado.
O primeiro cumprimento nesse dia veio de você – na noite e na noite de amargura de minha alma os beijos de seus lábios caíram no meu coração – macios como folhas de rosa, suaves como orvalho.
O rosa mistica, ora pro me!”


Maria Candelária 1919

Para o quarto de encontro, Edna OBrien assinala: “Ele (Joyce) acendera as velas tanto por serem românticas quanto porque desejava ser a visitante a uma luz lisonjeira”. 
Martha, em dezembro de 1941, onze meses depois da morte de Joyce, procura o professor de literatura inglesa Heinrich Straumann, na Universidade de Zurique. Precisando de dinheiro, quer se desfazer de um exemplar de Chamber music, com dedicatória, quatro cartas e um cartão postal enviado por Joyce. O professor, sem querer pagá-la, deixa-a ir embora. Sete anos depois, ele compra de Elsa, irmã de Martha, o volume e as cartas. O cartão postal desaparecera. Martha Fleischmann já havia se transformado em Martha Clifford, personagem de Ulysses (mas pode-se dizer que Molly Bloom tem muito dela também).

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