Mostrando postagens com marcador Fernando Pessoa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Fernando Pessoa. Mostrar todas as postagens

sábado, 16 de junho de 2012

Fragmentos de um discurso amoroso de James Joyce

Por Nicole Cristofalo e André Dick

Segundo Michel Foucault, no ensaio “A escrita de si” (O que é um autor?), “A carta enviada atua, em virtude do próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como atua, pela leitura e a releitura, sobre aquele que a recebe”, Fernando Pessoa é mais direto: “Todas as cartas de amor são ridículas”.
No romance de Goethe, as cartas de Werther são endereçadas a um amigo: Wilhelm. A carta faz com que o destinatário dela precise refletir sobre aquilo que recebeu, e, de preferência, escrever uma carta, mais reflexiva, menos improvisada. Escreve-se como um diário, onde Werther, aliás, vê como avançou passo a passo, que agiu com consciência e não como uma criança. 


Foucault prossegue: “A carta faz o diretor ‘presente’ àquele a quem a dirige. E presente não apenas pelas informações que lhe dá acerca da vida, das suas atividades, dos seus sucessos e fracassos, das suas venturas ou infortúnios; presente de uma espécie de presença imediata e quase física”, “uma maneira de se apresentar ao correspondente no decorrer da vida quotidiana”. Ora, é natural que quem não está apaixonado não queira a presença quase física do outro através da palavra. Mas quem está apaixonado quer escrever o que sente, pois escrever é “mostrar-se, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”, “uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz”. Werther não escreve a Carlota; escreve a Wilhelm: desse modo, ele compõe uma narrativa que gostaria de estar vivenciando com a amada, ou dizendo tudo isso diretamente a ela.
As cartas também reproduzem “o movimento que leva de uma impressão subjetiva a um exercício de pensamento”. Na verdade, a carta relata muitas vezes episódios que podem marcar o escrevente, mas “justamente na medida em que ele nada tem para deixar de ser igual a todos os outros, atestando assim, não a relevância de uma atividade, mas a qualidade de um modo de ser”. Também é um gesto de eremita: um Buda concentrado atingindo o Nirvana, um haicaísta olhando as folhas de outono. Werther é egocêntrico e também eremita. Pela carta, sujeitamo-nos ao fragmentarismo, que somos dois, afinal, a leitura da carta precisa ser feita: minha escrita só se completa com a leitura do outro.


Lembremos das cartas extraordinariamente românticas do insuspeito James Joyce a Martha Fleischmann, que conheceu em Trieste. Ela, segundo Edna OBrien (na biografia James Joyce), era

uma aristocrática beldade mantida por um rico engenheiro, Rudolf Hiltplold, num apartamento bastante próximo de onde Joyce morava em Trieste. Uma dama do prazer que fumava, punha lenços perfumados com água de rosas no rego dos seixos e lia novelinhas como Molly Bloom. Deve ter ficado perplexa com aquele novo e excitável pretendente. Uma história diz-nos que ao vê-la entrando em sua própria porta ele ficou boquiaberto e disse-lhe que ela lhe lembrava uma moça que vira anos antes em Berlim entrando no mar - sua futura Nausícaa. Atacou-a com cartas antes mesmo de saber seu nome. Depois de entregá-las no apartamento dela, ficava parado na rua e via-a ler. Ela deve ter ficado intrigada e na certa lisonjeada com tais cânticos impacientes, bombásticos e operísticos.

Essas cartas foram incluídas no volume Joyce e o romance moderno, com ensaios de Umberto Eco, Michel Butor e Italo Svevo. A primeira é de dezembro de 1918 – quando já estava com Nora, com quem se casou em 1931 (os fragmentos em vermelho lembram o início e o fim de Giacomo Joyce, escrito também em Trieste, em 1914):

Você não está zangada então.
Tive febre ontem à noite, esperando um sinal de sua parte. 
Mas por que você não quer me escrever uma só palavra – seu nome? E por que você sempre fecha as venezianas da janela? Quero vê-la.
Não sei o que você pensa de mim.
Como já lhe disse nós nos vimos e – falamos – mas você me esqueceu.
Quer que eu lhe diga alguma coisa?
Minha impressão de você.
Aqui está.
Você estava vestida de preto com um grande chapéu de abas flutuantes. A cor lhe caía muito bem. E pensei: um lindo animal.
Porque havia alguma coisa de franco e de quase impudico em sua postura. Depois, olhando-a, observei a indolência dos traços regulares e a suavidade dos olhos. E pensei: uma judia. Se me enganei não precisa ficar ofendida. Jesus Cristo tomou seu corpo luminoso no ventre de uma mulher judia.
Pensei muitas vezes em você e depois, quando a reconheci na janela olhava para você numa espécie de fascinação de que não posso me libertar.
Pode ser que tudo isso a deixe indiferente.
Pode ser que eu lhe pareça ridículo.
Aceito seu julgamento.
Mas ontem à noite você me fez um sinal e meu coração pulou de alegria.
Não sei sua idade.
Eu, sou velho – e me sinto mais velho ainda.
Talvez eu vivi demais.
Tenho 35 anos. É a idade que Shakespeare tinha quando concebeu sua dolorosa paixão pela “dama de preto”. É a idade que Dante tinha quando entrou na noite de seu ser.
Não sei o que acontece comigo.
É possível que uma pessoa tenha sentimentos como os meus e que a outra não tenha nada?
Não sei o que quero.
Queria falar com você.
Prevejo para mim uma noite nebulosa. Espero – e vejo você se aproximar de mim, vestida de preto, jovem, estranha e suave. Olho você nos olhos e meus olhos lhe dizem que eu sou um pobre alguém que procura neste mundo, que não compreendo nada nem de meu destino nem do destino dos outros, que vivi e pequei e criei, que irei embora, um dia, sem nada ter compreendido, na obscuridade que nos pariu a todos.
Compreendo você talvez o mistério de seu corpo quando você se olha no espelho, donde veio a luz alourada de seus olhos, a cor de seus cabelos?
Como você estava graciosa, ontem à noite, sentada na mesa, sonhadora e depois, repentinamente, levando minha carta junto à luz.
Você pensa, algumas vezes, em mim?
Escreva-me alguma coisa para o endereço que eu estou lhe dando.
Pode me escrever também em alemão. Entendo-o muito bem.
Diga-me alguma coisa de você mesma.
Sim, escreva-me amanhã.
Creio que você é boa...


Vejamos os fragmentos inicial e final de Giacomo Joyce, que lembram essas passagens em vermelho (na tradução de Paulo Leminski):

Quem? Um rosto pálido circundado por pesadas peles perfumadas. Os movimentos dela são tímidos, nervosos. Ela usa um monóculo.
Sim: uma sílaba breve. Um riso breve. Um breve bater de pálpebras.

...

Despreparo. Um apartamento nu. Nojenta luz do dia. Um grande piano preto: túmulo da música.
Equilibrado em sua borda um chapéu de mulher, com flores vermelhas, o guarda-chuva, fechado. Seu brasão: capacete, escarlate, e lança sem ponta sobre um fundo, preto.

O trecho em verde revela o que Edna OBrien anota em sua biografia: “Ele esperava que ela fosse judia, uma Maria pagã. Sua Maria irlandesa esperava ressentida com o trabalho doméstico. Ele pediu uma resposta, desusadamente invocando a ajuda de Deus”. É difícil discordar, também, de que essas cartas não são “cânticos impacientes, bombásticos e operísticos”.
Joyce demonstra muito interesse em Martha, e o mostra com persuasão e imagens que se equilibram entre um romantismo epistolar (com a pressa telegráfica da modernidade) e a alegria de um novo amor (e neste ponto não há diferença entre o olhar que lança sobre Martha daquele que Dante lança sobre Beatriz, não levando em consideração a importância que teve Beatriz para a obra de Dante). Passa por uma febre, sugerindo que em razão dela; quer que ela abra as venezianas para que ele possa vê-la; quer dar sua impressão sobre ela; prevê para si uma “noite nebulosa”; considera-se um “pobre alguém”.
Nesse sentido, a carta pode tanto atenuar o “perigo da solidão” – dando, como afirma Foucault, a ver o que se viu (aqui, sentiu) a um “olhar possível” – como se aprofundar na solidão, com a “não-resposta”. Por isso, como Barthes dizia, ao escrever a carta, “Abandono alegremente tarefas ínspidas, escrúpulos razoáveis, condutas reativas, impostos pelo mundo, em prol de uma tarefa inútil, oriunda de um Dever vivo: o Dever amoroso. Faço discretamente coisas loucas; sou a única testemunha de minha loucura. O que o amor desnuda em mim é a energia”.
Segundo Derrida, a imaginação propicionada pela imagem (que é sempre representada pela morte, pois lembra um quadro, mesmo que no momento visto em movimento, mas morta, como se percebe pela escrita que Joyce deixou) é sempre excessiva, quer sair da linguagem real e ingressar na utopia da linguagem absoluta: é um imagem de piedade (de Martha em relação a ele) e autopiedade que Joyce compõe.
Alguns momentos de insegurança: acha estar sendo ridículo (o mesmo sentimento de Fernando Pessoa diante das cartas de amor), acredita ser velho demais para ela e não sabe direito o que quer.
Talvez Jacques Lacan, em seu curso O sinthoma, sobre Joyce, dê pistas a partir das cartas que o escritor escreveu a Nora (sua mulher):

O que nos indicam as cartas de amor para Nora? Há um certo número de coordenadas que é preciso marcar.
Que é, portanto, essa relação de Joyce com Nora? Direi, coisa singular, que é uma relação sexual, ainda que eu diga que não há relação sexual. Mas é uma relação sexual bem esquisita.

[...]

Para Joyce,só há uma mulher. Ela é sempre do mesmo modelo, e ele só a enluva com a maior das repugnâncias. É visível que apenas com a maior das depreciações é que ele faz de Nora uma mulher eleita. Não apenas é preciso que ela lhe caia como uma luva, mas que ela o cerre como um luva. Ela não serve absolutamente para nada.

Talvez a visão de Lacan seja excessivamente contundente a certa visão idealizada que Joyce fazia de suas amadas - característica de alguém moderno, e sem imaginar uma psicanálise futura a colocá-lo de forma tão despojada, mesmo que de forma muito criativa.
Joyce, em suas cartas, já começa se posicionando como Dante e Shakespeare, cuja força literária já havia se estabelecido quando começou a produzir - transformando de suas palavras quase uma continuação do sentimento daqueles autores, sobretudo da ideia de “vita nova” do primeiro (que fazia uma análise, em sua obra, de cada sensação despertada por Beatriz). E a equipara sempre a uma figura de santa (resultado certamente de sua formação católica, a qual abandonaria mais adiante, embora não para Lacan). Tudo em Joyce, mesmo essas cartas, é calculado.
No mesmo mês, sem resposta, Joyce se desespera, e cada frase escapa num estilo telegráfico, como se sua paciência para fazê-las estivesse terminando (as palavras falam por si só):

Que é que há?
Você não me cumprimentou!
Desço para a porta com esta carta.
Ofendi?
Mas como?
Peço-lhe que me mande uma palavra imediatamente. Junto um envelope já preparado. Ponha-o no correio com uma só palavra dentro.
Está zangada? Sim ou não?
Não compreendo nada.
Pelo amor de Deus me mande uma palavra.
Que linda noite vou passar.


Mais uma carta (de 9 de dezembro de 1918), enviada junto com exemplar de Chamber music (em vermelho se mostra como Joyce se sente, e faz questão de deixar claro):

Pobre e querida Martha.
O que você teve?
Ainda estou em dúvida mas me parece tê-la visto hoje à noite.
Tinha medo de lhe escrever porque não sabia quem estava em sua casa e pensei que minhas cartas poderiam cair em mãos de gente estranha.
Todas as noites eu ficava olhando.
Até me censurei pensando que sua doença fosse consequência do resfriado daquela ultima noite.
Depois pensei, eu ia lhe escrever mesmo assim e com o nome de uma amiga.
Continuo em francês porque o alemão não me vai.
Se você sofreu muito nestes dias, eu também sofri.
Parecia que o único raio de luz que nestes últimos anos atravessou a obscuridade de minha vida tinha-se apagado.
Eu estava o próprio imbecil!
Toda manhã eu abria, abria o jornal e tinha medo de ler seu nome na notícia dos falecimentos! Eu o abria sempre com angústia, muito, muito lentamente.
Pensava: ela vai partir – ela que me olhou com piedade – com ternura talvez.
A doença muda muita coisa.
Ela nos leva à beira da morte: e vemos as coisas de outra maneira.
Você não tem medo da morte – eu tenho!
Você talvez pensou que seu sentimento para comigo era uma loucura; você entreviu as sombras do além. Pois bem! São sombras mentirosas!
Gostaria de lhe mandar flores, mas tenho medo.
Esperarei ainda. Talvez não fosse você quem eu vi?
Vi meu livro de poesia em sua mão.
Você o entendeu?
Escrevi alguma coisa enquanto você esteve doente – algo de muito amargo que muito feriu meus amigos.
Sim, eu também sofri.
Hesito ainda antes de lhe mandar esta carta.
E se ela cair nas mãos de uma outra pessoa???
11 horas
Vou pôr esta carta no correio.
Não posso esperar mais!

Assim, destaca Foucault, “Por meio da missiva, abrimo-nos ao olhar dos outros e instalamos o nosso correspondente no lugar do deus interior. Ela é uma maneira de nos darmos ao olhar do qual devemos dizer a nós próprios que penetra até o fundo do nosso coração [...] no momento em que pensamos”. O gesto exige uma “introspecção”, mas há que se entender esta “menos como uma decifração de si por si mesmo do que como uma abertura de si mesmo que se dá ao outro”.


A sensações descritas por Joyce, apaixonado, provavelmente não estão de acordo com o fato de que as cartas não despertavam interesse em Martha; que seria mesmo um alívio para ela se caíssem em outras mãos, pois a pouparia de lê-las. E a doença? Seria Martha doente? E recomeça a melancolia: acha que o raio de luz (Martha) havia se apagado; considera-se um “imbecil”; diz ter medo de ler no jornal a notícia do falecimento da amada (para que ela se sinta culpada de não procurá-lo); pensa que ela o olhou com piedade (talvez com ternura); sente medo de enviar flores e ainda quer saber se ela leu seu livro de poesia (Música de câmara (Chamber music), que tem uma bela tradução de Alípio Correia de Franca Neto, um notável especialista brasileiro em Joyce), e pergunta se ela o entendeu; compara o sofrimento da doença dela com um escrito que seus amigos não gostaram (a isso Joyce se refere); e insiste no medo de que a carta caia nas mãos de outras pessoas. E, como se pergunta Edna OBrien, “Perdera o juízo? Certamente ele o perdera quando lhe disse que olhava o jornal toda manhã temendo ler o nome dela nos anúncios de mortes”, finalizando: “A esposa (Nora) não sabia e, se soubesse, haveria briga”.
E há, por fim, outra carta, de 2 de fevereiro de 1919 (Dia da Candelária e dia do aniversário de Joyce), com suas imagens extremamente românticas (o escritor vê os lábios de Martha caindo em seu coração, “macios com folhas de rosa, suave como orvalho”), depois do encontro que finalmente conseguiu com ela:

Depois de longa espera ontem à noite vi seu rosto tão pálido, tão triste e cansado.
O primeiro cumprimento nesse dia veio de você – na noite e na noite de amargura de minha alma os beijos de seus lábios caíram no meu coração – macios como folhas de rosa, suaves como orvalho.
O rosa mistica, ora pro me!”


Maria Candelária 1919

Para o quarto de encontro, Edna OBrien assinala: “Ele (Joyce) acendera as velas tanto por serem românticas quanto porque desejava ser a visitante a uma luz lisonjeira”. 
Martha, em dezembro de 1941, onze meses depois da morte de Joyce, procura o professor de literatura inglesa Heinrich Straumann, na Universidade de Zurique. Precisando de dinheiro, quer se desfazer de um exemplar de Chamber music, com dedicatória, quatro cartas e um cartão postal enviado por Joyce. O professor, sem querer pagá-la, deixa-a ir embora. Sete anos depois, ele compra de Elsa, irmã de Martha, o volume e as cartas. O cartão postal desaparecera. Martha Fleischmann já havia se transformado em Martha Clifford, personagem de Ulysses (mas pode-se dizer que Molly Bloom tem muito dela também).

domingo, 7 de novembro de 2010

A velocidade vital de Álvaro de Campos

Por Nicole Cristofalo

Ao contrário da afirmação do Octavio Paz, no ensaio “O desconhecido de si mesmo – Fernando Pessoa”, os poetas possuem biografia, que pode ser mais ou menos relevante para a leitura de suas obras. Percebemos que Fernando Pessoa descreve a vida e a formação de Álvaro de Campos porque há alguma importância de termos esta informação antes de realizarmos a leitura dos poemas que o heterônimo engenheiro nos deixou. Álvaro teria nascido em Tavira, em 1890, e após seus estudos em um liceu foi para Escócia (Glasgow) se formar em Engenharia Mecânica, e depois Naval. Interessante notar que as duas cidades são marítimas, ou seja, tanto sua formação de engenheiro mecânico como também de engenheiro naval e a experiência de ter vivido (ficcionalmente) nestas cidades podem nos oferecer opções de leitura de seus diversos poemas com a temática marítima, assim como de suas odes publicadas no livro O engenheiro sensacionista, que pertence ao período de sua obra relacionado fortemente com o futurismo cosmopolita e veloz, sugado pelas máquinas e ruídos da tecnologia que trazia consigo a modernidade daquele momento.


Segundo José Gil, no ensaio “Ritmos e intensidade: a velocidade abstracta”, que pertence ao livro Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações, Campos procura dispersar sua consciência e fragmentá-la para conseguir se metamorfosear em sua escrita: “há em Pessoa dois regimes da consciência: esta torna-se consciência de si quando reflecte sobre si própria, tomando-se como seu próprio objecto – separa-se então da vida, do mundo, do corpo: e é todo o tema da dicotomia consciência/vida que se desenrola. Mas quando o plano de consistência se forma e as intensidades percorrem o “corpo-sem-órgãos”, a consciência desprende-se do eu, para se tornar ‘consciência do corpo’: torna-se ‘espaço abstracto’, ‘névoa’ – e reúne ao mundo, fazendo um só com ele. Atinge então o mais alto grau de abstracção, transmutando-se em pura matéria sensitiva, que recebe todos os tipos de impulsos, de sacões (do volante)”. O “corpo-sem-órgãos” traz a “força vital” em vez da beleza aristotélica ao poema. Neste ensaio, trabalharemos a ideia de “metamorfose” relacionada ao conceito do “corpo-sem-órgãos”, de José Gil, e da velocidade como manifestação desta força vital que o crítico aponta nos textos de Álvaro de Campos, analisando poemas que procuram abranger diversas fases de sua obra.


Reproduzimos as seguintes estrofes iniciais de “Lentidão dos vapores pelo mar”, publicado no livro O poeta decadente: “Lentidão dos vapores pelo mar... / Tanto que ver, tanto que abarcar. / No eterno presente da pupila / Ilhas ao longe, costas a despontar / Na imensidão oceânica e tranquila. / / Mais depressa... Sigamos... Hoje é o real... / O momento embriaga... A alma esquece / Que existe no mover-se... Cais, carnal... / Para os botes no cais quem é que desce? / Que importa? Vamos! Tudo é tão real! // (...)”. Quando se lê este início, o significado da velocidade, que se traduz no ritmo do poema, é bastante claro. O sujeito lírico exclama “Vamos!”, e em um primeiro momento pensamos que sua ânsia é a de ver novas paisagens. Porém, no decorrer da leitura, percebemos que sua ânsia é exatamente oposta, pois, se no início as viagens traziam a ele empolgação, agora estas mesmas paisagens o cansam, produzindo tédio quando são lembradas. Ao final do poema, o sujeito lírico procura parar completamente a velocidade: “Meu corpo inerte... Sigo, recostando / Minha cabeça no vidro que me treme / De encontro à consciência o meu ser todo; / Para que viajar? O tédio vai ao leme / De cada meu angustiado modo”. Quando o poema é lido tendo-se em mente a ideia do “corpo-sem-órgãos”, ocorrerá que “deixará de haver separação entre interior e exterior, entre sensação e coisa, e depois entre alma e corpo; e não haverá mais distâncias, nenhuma distância sequer entre a emoção e a paisagem, uma vez que o corpo terá adquirido o poder de matamorfosear o interior em paisagem, de ‘exfoliar’ ou reverter os seus órgãos intensivos para as formas exteriores (...)”. O corpo inerte do sujeito lírico deste poema realiza a metamorfose da emoção com a paisagem. Podemos dizer que este poema reflete a primeira fase de Álvaro de Campos, ligado ao romantismo e ao decadentismo, e que a velocidade está em lenta ascensão, ligada ao decadentismo, e ocorre fortemente apenas na fase seguinte.


Se a primeira fase de Álvaro de Campos se relaciona ao simbolismo, a segunda, que se inicia com o livro O engenheiro sensacionista, é fortemente ligada ao futurismo por meio de imagens que exaltam a industrialização e a modernidade onomatopeicas. O sujeito lírico trará consigo (uma vez que seu corpo é metamorfoseado em máquinas) a velocidade daquela paisagem. Fábricas, automóveis, navios, bares e o cosmopolitismo europeu se traduzem nas suas odes e poemas, como em “Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades”: “Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades / A chegada pela manhã a cais ou a gares / Cheios de um silencio repousado e claro! / Os primeiros passantes nas ruas das cidades a que se chega... / E o som especial que o correr das horas tem nas viagens...”. Se na terceira estrofe pensamos que Campos tratará das manhãs tranquilas de “novas cidades”, na quinta estrofe o “correr das horas” acelera como se pisasse nos pedais dos “ómnibus ou os eléctricos ou os automóveis” do verso seguinte, observando o “aspecto das ruas de novas terras...” para, logo em seguida, o poema “frear” com o verso: “A paz que parecem ter para a nossa dor”, acelerando no verso seguinte: “O bulício alegre para a nossa tristeza”, e freando em seguida: “A falta de monotonia para o nosso coração cansado!”, como se todo o poema se metamorfoseasse em um automóvel que acelera e freia para acelerar novamente: “E através disso tudo, como uma coisa que inunda e nunca transborda, / O movimento, o movimento / Rápida coisa colorida e humana que passa e fica...”. Também ficam “Os portos com navios parados, / Excessivamente navios parados”, mas os “barcos pequenos ao pé” esperam o movimento dos navios, deixando como um “contínuo” o movimento do acelerar e frear dos veículos modernos.
Na terceira e última fase de sua obra, Álvaro de Campos traz, nos livros O engenheiro metafísico e O engenheiro aposentado, um sujeito lírico desiludido com suas experiências. Percebemos que, a partir de então, a velocidade, fluido vital do sujeito lírico, desacelera, dando lugar, em O engenheiro metafísico, a um quase permanente estado ébrio no qual o sujeito lírico se questiona a todo o momento sobre as circunstâncias nas quais sua existência o coloca (como a morte de uma criança e a rápida superação daquela família), e procura imprimir suas conclusões em diversos poemas deste período. No poema “Estou cansado da inteligência”, do terceiro livro de Campos, vemos a velocidade “amodorrar” com “aquelas coisas que o vinho tem”: “Estou cansado da inteligência / Pensar faz mal às emoções. / Uma grande reacção aparece. / Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo / Na casa antiga da quinta velha”. O sujeito lírico, saudosista, relembra sua infância, quando era o “sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!”, como se o ato de pensar acelerasse suas emoções e o ritmo do poema, o que, neste momento, o sujeito lírico não demonstra desejo. Sua desilusão, que se refletirá em todo o restante de sua obra, fica clara nestes dois versos: “Estou cansado da inteligência. / Se ao menos com ela se percebesse qualquer coisa!”. Além de não ter trazido a ele as respostas necessárias para a sua existência, a inteligência faz com que ele só perceba “um cansaço no fundo, como baixam na taça / Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho”, trazendo a ele um estado ébrio que desacelera as paisagens e circunstâncias. O “não pensar em nada” se tornará um dos meios mais efetivos para a inércia que o sujeito lírico busca.


As imagens do saudosismo e lembranças de sua infância são também muito trabalhadas no quarto livro de Campos, O engenheiro aposentado. A procura pela desaceleração é cada vez mais intensa e, ao mesmo tempo, angustiante, como vemos no poema “Ah, que extraordinário”: “Ah, que extraordinário, / Nos grandes momentos do sossego da tristeza, / Como quando alguém morre, e estamos em casa dele e todos estão quietos, / O rodar de um carro na rua, ou o canto de um galo nos quintais... / Que longe da vida! É outro mundo. / Viramo-nos para a janela e o sol brilha lá fora – / Visto sossego plácido da natureza sem interrupções!”. O sossego, desaceleração da emoção, é desejado até mesmo quando vem acompanhado da tristeza causada pela morte de alguém. O sujeito lírico encontrado em O poeta decadente e O engenheiro sensacionista agora traz uma força oposta aos seus poemas: se antes a velocidade refletia a paisagem da cidade cosmopolita e industrial, agora há o distanciamento do sujeito lírico das emoções, e não encontramos, a partir de O engenheiro aposentado, a metamorfose de O engenheiro metafísico, quando a emoção se confunde com a paisagem, transformando-se na descrição de Campos exaltada e veloz. Agora, a desaceleração aproxima o sujeito lírico da insatisfação, do desejo de ser outra pessoa diante de sua existência e aproximação da morte, o que o faz buscar “O sossego da noite” e “O silêncio, que mais se acentua, / Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no escuro...”, resultado da “opressão de tudo isso!”. Porém, a consciência, “vaga náusea, a doença incerta, de me sentir”, traz a “inquietação” que, se no início fora desejo, agora não é mais.
Desta maneira, procuramos traçar a ideia do “corpo-sem-órgãos” na obra de Álvaro de Campos, assim como a velocidade que dita o ritmo e as imagens de seus poemas ao longo de sua obra, e que podemos enxergar como uma parábola, passando pelos primeiros poemas inertes, pelos textos sensacionistas altamente velozes, e terminando nos poemas do decadentismo novamente inerte.

domingo, 23 de maio de 2010

Herberto Helder: arte da melancolia e do instinto

Por André Dick

No início do século XX, surgia em Portugal uma rara geração de poetas, tendo à frente Fernando Pessoa (1888-1935) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). Falar de ambos ajuda a sintetizar a modernidade da língua poética portuguesa: eles se encaixam perfeitamente na visão que Walter Benjamin tinha da modernidade: uma “paisagem em ruínas”, a qual cada um tentou adaptar em seu cotidiano. Sua escrita não era artificial, e talvez por isso nenhum deles tenha suportado a realidade – apesar de não conseguirem viver sem ela. Sá-Carneiro escreveu versos como esses, de “Além-tédio”:

Nada me expira já, nada me vive –
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim d’alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Ou de “Quase”:

De tudo houve um começo... e tudo errou...
– Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou.


Esses versos podem sintetizar a melancolia do poeta sobre o qual Pessoa escreveu depois de sua morte: “Hoje, falho de ti, sou dois, a sós”. Pessoa, incapaz de conviver consigo mesmo, com um forte traço melancólico, partiu para a despersonalização: criou os heterônimos Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos (depois, descobriu-se ainda Bernardo Soares). Escreveu, em “Tabacaria”: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Mais prosaico do que Sá-Carneiro – o poeta de língua portuguesa que melhor leu Rimbaud e Mallarmé –, Pessoa escreveu muitos versos sob a influência do amigo morto. O belo “Apontamento” é um dos exemplos mais evidentes: “A minha alma se partiu como um vaso vazio. / Caiu pela escada excessivamente abaixo. / Caiu das mãos da criada descuidada. / Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso”. Ou em “Lisbon revisited”: “Não me venham com conclusões! / A única conclusão é morrer”. Em “Fresta”: “Em meus momentos escuros / Em que em mim não há ninguém, / E tudo é névoas e muros / Quanto a vida dá ou tem”. Ou o réquiem do melancólico: “Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma”, dos “Poemas inconjuntos”. E, ainda, no definitivo “Opiário”, feito para Sá-Carneiro: “É por um mecanismo de desastres, / Uma engrenagem com volantes falsos, / Que passo entre visões de cadafalsos / Num jardim onde há flores no ar, sem hastes”.


Em Portugal, atualmente, quem aprofunda a linha melancólica é Herberto Helder, nascido em 1930, sem dúvida um dos melhores poetas do mundo na atualidade e que teve sua obra completa, até 2006, lançada no Brasil pela editora Girafa, com o título Ou o poema contínuo. Com um estilo que mescla traços do simbolismo e do surrealismo, mas sob uma ótica contemporânea, Helder trabalha sobre imagens que buscam a negatividade dos objetos (mas também a sua sensibilidade), lidando com a ideia de que a natureza e a humanidade se completam ou se destroem, com um ritmo e um corte de versos precisos. Para Benjamin, “Toda a sabedoria do melancólico vem do abismo; ele deriva da imersão na vida das coisas criadas, e nada deve às vozes da Revelação. Tudo que é saturnino remete às profundezas da terra... O olhar voltado para o chão caracteriza o saturnino, que perfura o sol com seus olhos”. Para Benjamin, a mudez é disposição fundamentalmente melancólica. Helder segue esse caminho:

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até o cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.


A imagem da mão que escreve a melancolia e dos dedos que compõem o silêncio todo branco é definidora desse poeta. O silêncio e a contenção do corpo se repetem ao longo dos poemas: “A toda a velocidade, em silêncio, no mapa – / como se descobre uma letra / de outra cor no meio das folhas, / estremecendo nos ulmos, em silêncio. Gota / sombria num girassol – / essa letra, essa cidade em silêncio, / batendo como sangue”. Para Mária Lúcia Dal Farra – na introdução de O corpo o luxo a obra, antologia de Helder publicada pela Iluminuras –,e fica claro nesse fragmento, na poesia de Helder, “as fagulhas que as palavras exalam saltam, simultâneas, com tanta intensidade, que a linguagem se deixa arder no ato de leitura – chamas mantidas e sustentadas à custa da nossa própria respiração de leitor”. Dal Farra também aproxima o imaginário de Helder ao cinema, com sua “movimentação, retardo, aceleração de imagens, montagem e outros recursos mais”. Parece pertinente constatar que essa fuga à estagnação – os poemas de Helder têm um ritmo que cresce pouco a pouco, por meio do encadeamento sucessivo de versos – esconde um sujeito recluso. E, mais do que apresentar uma agilidade artesanal, Helder é extremamente sensível, e toca o leitor com imagens: “As crianças criam. São esses os espaços / onde nascem as suas árvores”; por isso, se autodescreve:

Sou alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.


Atentemos para o “silêncio estrutural das flores”, “a mesa por baixo. / A sonhar”, a “cadeira congeminando-se na bacia”. Esses elementos se correspondem, a todo o momento, com o corpo que Helder tenta descrever. Como melancólico, ele cultiva o passado: “Há sempre uma noite terrível para quem se despede / do esquecimento”. Ou o poema “A bicicleta pela lua adentro”, em que ele lembra a mãe:

Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem.
Era pesada, ao colo, cheia de neve.
Ia dizendo o teu nome de janeiro.
Enxofre – mãe – era o teu nome.
As letras cresciam em torno da terra,
as telhas vergavam ao peso
do que me lembro. Começo a lembrar-me:
era o atum negro do teu nome,
nos meus braços como neve de janeiro.


Também existe em seu trabalho a tentativa de desaparecer existencialmente, o que se encaixa na reclusão: “Os lençóis brilham como seu eu tivesse tomado veneno”. Assim como sempre dispõe, em seus versos, a presença da morte: “As águas encharcaram a roupa até o sono. / E a música ultramarina através dos meses em búzio. / É a experiência da morte nas imagens”. Ou: “A arte íngreme que pratico escondido no sono pratica-se / em si mesma. A morte serve-a / Serve-se dela. Arte da melancolia e do instinto”. Além da lembrança de um passado primordial, voltado a uma respiração primitiva: “Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho”. Até a beleza daquilo que Helder melhor sabe delinear – a paisagem repleta de pedras e flores, sob o sentido do pensamento e do corpo que se abre ao cheiro, repleto de melancolia e instinto:

O canteiro cheira à pedra. Da rosa cavada nela cheirará,
por dedos e pensamento,
à obra? Abre uma coroa. A pedra fecha-se
na sua teia de água. Com tantos martelos secos,
com tanta idade louca, com tanta pedra
inteligente, com tanta mão aluada – o canteiro desentranha
outra mão: - A mão do nervo
da pedra, rosa
assustadora:
que desentranha a prumo forte, em ebriedade
e inclinação de lua. Enxofre, sal, rosa
potente. – O canteiro é a sua
rosa, a sua
obra
desabrochada.

Pela própria tradição em que Helberto Helder se insere – dessa melancolia dupla, Portugal e Brasil – é a própria melancolia (e a náusea de outro certo melancólico) que nasce da rosa.

domingo, 21 de março de 2010

Sá-Carneiro e Pessoa: reis de toda esta incoerência (I)

Por André Dick

O poeta português Fernando Pessoa, nascido em Lisboa, em 1888, e responsável pelas personas – seus conhecidos heterônimos – mais conhecidas do universo literário (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares), ao se dedicar à poesia, não enlouqueceu: nos deu suas incursões em poemas. Segundo a crítica literária Leyla Perrone-Moisés, em seu estudo Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro, baseada na psicanálise de Jacques Lacan, o Imaginário do poeta – que representa a necessidade de o indivíduo lidar com determinados traços em sua poesia: conceitos, temas, palavras, todas vindas de seu inconsciente que, estruturado como uma linguagem, o constitui como escritor – “é terrivelmente verdadeiro, na medida em que nele fala o desejo, na medida em que, nele, o real se transveste e se desvenda”. Nesse sentido, o poeta, ao transitar entre o Imaginário e o Simbólico – o Imaginário simbolizado –, faz com que o seu “único real” seja “seu texto; é neste que um simulacro de sujeito se tece, revelando, por uma prática extrema de linguagem, que todo sujeito é uma ficção”.


Cada vez mais se percebe que Pessoa representa a legitimização do pensamento de que a poesia é resultado de uma passagem pela crítica, não estritamente a teórica, mas aquela que carrega reflexão suficiente para saber das suas qualidades e defeitos, falhas e virtudes e, sobretudo, de seu fracasso – de que todo sujeito, pleno, clássico, é uma ficção. Diante da questão levantada por Pessoa e seus heterônimos, Roland Barthes tem razão quando escreve: “O que a escrita exige [...] é que ela sacrifique um pouco de seu Imaginário, e que assegure, assim, através de sua língua, a assunção de um pouco de real”. Por isso, segundo Barthes, a escritura é exatamente uma “atividade estranha [...] que estanca milagrosamente a hemorragia do Imaginário”, o qual, como ele aponta, se dá em seu grau pleno quando o autor escreve tudo o que quer a seu respeito, inclusive o que é embaraçoso, no limite com o Simbólico – e, no caso de Pessoa, com suas personas. É preciso a escritura, o Simbólico, para obter o controle sobre esse Imaginário – ou dispersá-lo ainda mais.
Mas o próprio Imaginário, depois de constituído, por meio de diversas leituras e releituras e de transposições autorais, não seria também um sistema consciente, lúcido, da personalidade humana? Até que ponto o autor não sabe que está escrevendo um texto numa determinada linha, guiado por parâmetros, nos quais se insere e faz a comparação de sua obra com outras, que definem seu Imaginário? Afinal, o Imaginário não seria a “linguagem pela qual o enunciador de um discurso (entidade puramente linguística) ‘preenche’ o sujeito da enunciação (entidade psicológica ou ideológica)”? Não haveria sujeito da enunciação mesmo dentro da linguagem e do Imaginário? Não para Barthes, pois para ele os diversos imaginários que existem são filtrados apenas pela escritura, e quem as escreve é um “ser de papel”, fora da realidade – mesmo que ele exista também como persona literária.
O poeta e crítico mexicano Octavio Paz escreveu, num ensaio sobre Fernando Pessoa, que os poetas não têm biografia e que sua obra é sua biografia. No entanto, não podemos desconsiderar que o Imaginário seja composto também pelas leituras e contatos que o sujeito teve no assim chamado “mundo real”, no caso de Pessoa, “externo à linguagem literária”. É este Imaginário (Eu Ideal) que dará origem ao Simbólico (Ideal do Eu). Os dois estão interligados através da subjetividade do poeta, no caso de Fernando Pessoa em suas outras facetas. Todas as suas criações são intermediadas por figuras imaginárias, que ele, como escritor, procura transformar em texto.
A partir disso, devemos lembrar que Fernando Pessoa, em sua recriação do inconsciente, tinha verdadeira admiração por Mário de Sá-Carneiro, não só por sua obra poética, mas também por sua amizade, tanto que o homenageia, de forma especial, em dois poemas: um quando o amigo ainda era vivo, intitulado “Opiário”, que será visto mais adiante, pertencente à obra futurista de seu heterônimo Álvaro de Campos, e outro lembrando sua morte, chamado Sá-Carneiro, com os versos “Hoje, falho de ti, sou dois a sós”, que dão a exata dimensão da proximidade que tinha com o “esfinge gorda” – e que povoava o seu Imaginário.
Era bastante profunda a ligação entre os dois, sobretudo por meio de correspondências, onde podiam ser encontradas muitas revelações surpreendentes, e projetos artísticos (como a revista modernista Orpheu).


Nascido em Lisboa, a 19 de maio de 1890, sendo, portanto, da mesma geração de Pound, Joyce, Kafka, Oswald de Andrade, um dos pais do Modernismo Brasileiro e, claro, de Fernando Pessoa, nascido dois anos antes, na mesma cidade, Sá-Carneiro talvez seja, no Brasil, o menos conhecido de todos, o que não tira o brilho de sua obra poética. Ele perdeu a mãe cedo, em 1892, e logo aos l7 anos foi para a França, com o objetivo inicial de estudar Direito, o que era absolutamente comum no período. Aluno brilhantemente precoce, como Rimbaud, que fugiu incontáveis vezes de sua cidadezinha natal, Charleroi, Sá-Carneiro manteve com Pessoa uma ligação acima de tudo existencial, que nos remete àquela entre Rimbaud e Paul Verlaine na Paris de alguns anos antes (e poetas como o francês Guillaume Apollinaire e o italiano Giuseppe Ungaretti, por exemplo, vieram mais ou menos na mesma época de Sá-Carneiro morar na capital da França, quando cresciam os movimentos de vanguarda).
Sá-Carneiro tem participação tão importante no progresso literário do Modernismo português quanto Pessoa, mas, ao contrário deste, costuma ser esquecido. A construção de seus poemas, com a mesma agudeza de Rimbaud, onde se inclui um corte de verso preciso, tessituras sonoras inteligentes e ritmo fluente, não é fácil de ser encontrada. Em muitos aspectos, acaba superando o próprio Pessoa, cujo estilo é mais explosivo e intuitivo, buscando uma união entre pensamento filosófico e sensibilidade poética.


A poesia de Sá-Carneiro está situada entre dois extremos: a morte e a vida. Seus poemas reúnem sentimentos beirando uma lâmina que divide essas duas extremidades. E isto com tal força que não se nota nem na poesia de Pessoa e de seus heterônimos. Enquanto o projeto estético de Pessoa foi se multidividir, o de Sá-Carneiro foi banir qualquer tipo de esperança de uma vida comum, ou seja, do cotidiano, selecionando o amargo e o irônico, como Cesário Verde. No entanto, como escreve Leyla Perrone-Moisés, a crise de Sá-Carneiro, “mesmo em sua melhor expressão literária, permaneceu no terreno psicológico individual. Como uma mosca presa entre dois vidros, ele buscou uma saída impossível entre o ‘eu’ e o ‘ideal do eu’”, o que fez com que não conseguisse equilibrar, em sua vida existencial, o Imaginário e o Simbólico.
Em seus melhores poemas, Sá-Carneiro superou Pessoa – mesmo quando influenciado por ele. Escritos como “Manucure” e “Apoteose”, feitos por Sá-Carneiro em 1915, são inspirados claramente no Futurismo de Filippo Tommaso Marinetti e de Álvaro de Campos, o heterônimo futurista de Pessoa, um homem totalmente adaptado às transformações do século XX, das fábricas, das máquinas e da velocidade, para quem “a alma humana é um abismo”, trabalhando com inovações gráficas e ideias surrealistas, dando “vida verbal” ao som das máquinas e tornando a página em si um elemento vivo do texto – o que muitos queriam ter feito a partir de Mallarmé. Segundo Pessoa, Campos nasceu no mesmo ano do amigo, 1890, sendo um tipo que não consegue se adaptar às condutas sociais, ficando eternamente deslocado.


A obra de Sá-Carneiro, no entanto, não se enquadra facilmente dentro de um determinado movimento estético. Ela marca um aproveitamento de ideias do Simbolismo em contato, forte e contundente, com todas as vanguardas existentes no início do século XX, quando o mundo literário tinha como centro Paris, onde se davam os novos rumos estéticos que as artes adotavam. A primeira exibição de cinema havia acontecido numa noite chuvosa de 1895, atraindo centenas de pessoas na enigmática Paris; as indústrias e suas máquinas se fortaleciam; os cafés e boulevards eram os grandes pontos de encontro dos poetas e artistas, aqueles que antecipavam o novo em suas obras; as pinturas ganhavam novas formas de expressão e estilo; em suma, os tempos eram outros.
Sá-Carneiro e Pessoa: reis de toda esta incoerência (II)

Por André Dick

Como observa Fernando Paixão, um dos maiores estudiosos do poeta português no Brasil, Sá-Carneiro é o “poeta das sensações”, “voltado para a construção de um eu-lírico que oscila entre um plano idealizado e, em contraposição, a adversidade do mundo real” – entre o Imaginário, o Simbólico e o resíduo do real. É um poeta com traços claros do Simbolismo, uma vez que gosta de lidar com pensamentos de uma maneira peculiar e distorcida, procurando a essência do ser humano, a purificação, por meio da qual o espírito atinge o espaço infinito, na busca do vago, do sonho e da loucura, típica de quem está tentando chegar ao limite. Nesse sentido, também o movimento do Paulismo, elaborado por Pessoa e presente em poemas seus, como “Impressões do crepúsculo” e “Chuva oblíqua”, é quase uma extensão do Simbolismo.


Leiamos, abaixo, a estrofe final do antológico poema “Álcool”, título que sintetiza a embriaguez em que se encontra o espírito de Sá-Carneiro, que parece querer se transbordar:

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
E só de mim que ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Essa estrofe, onde há um duelo entre drogas (ópio, morfina e álcool), estados orgânicos (loucura e sanidade) e cores, representadas pela manhã e noite, é recuperada por Álvaro de Campos, no poema “Opiário”, feito em homenagem a Sá-Carneiro, mais especificamente nas 1ª, 8ª e 15ª estrofes colocadas em ordem, abaixo:

É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me um tédio.

Assim como as sensações de Mário de Sá-Carneiro são trabalhadas com minúcia e personalidade, as de Álvaro de Campos não ficam atrás, representando o sentimento de dor, decepção e vida sem saída, por meio de versos fortes, como “Sou um convalescente do Momento / Moro no rés-do-chão do pensamento / E ver passar a Vida faz-me um tédio.” Nesses versos, encontram-se muitas características perceptíveis nos poemas de Sá-Carneiro, sobretudo a subjetividade do poeta, que mobiliza uma imaginação voltada para o vazio da alma – no sentido lacaniano, da inconsciência –, para o além, na esperança de encontrar outra realidade, seja através de drogas, seja através de delírios literários. A busca de outro lugar parece ser o objetivo tanto de Sá-Carneiro quanto de Álvaro de Campos.
Outro poema de Sá-Carneiro, “Estátua Falsa”, deixa transparecer uma ligação entre o Simbolismo e o Futurismo:

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Descem na minh’alma veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

A presença do simbolismo fica evidente no trabalho com os sentidos, com o tato das cores (“ouro falso”, “olhos se douram”, “esfinge sem mistério no poente”, “gomos de luz em treva”, “sombras”) e com a musicalidade dos versos, tão sugerida por Paul Verlaine (“A música acima de tudo”, costumava dizer ele), enquanto o Futurismo, lançado por Marinetti em 1909, se evidencia no sentimento revoltado, muito à frente do romântico, dos seguintes versos: “Já não estremeço em face do segredo; / Nada me aloira já, nada me aterra: / A vida corre sobre mim em guerra, / E nem sequer um arrepio de medo!”. Sá-Carneiro, desta vez, entra em combate com sua própria dor, ignorando o medo e a morte, daí sua poesia ser tão extremista.


O Paulismo de Pessoa também fica claro dentro desse panorama de dor que Sá-Carneiro traça em seus versos. O poema de Pessoa “Impressões do crepúsculo”, por exemplo, possui versos que certamente influenciaram Sá-Carneiro:

Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro...
Dobre o longínquo de Outros sinos...Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente...Corre um frio carnal por minh’alma...
Tão sempre a mesma, a Hora! Balouçar de cimos de palma!...

Essa sensação de vazio transmitida pelos versos de Sá-Carneiro e Pessoa são absolutamente comuns nos poemas de Álvaro de Campos, a face mais belicosa de Pessoa, como “Grandes são os desertos...”, onde se lê:

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Outro poema que pode exemplificar essa ligação estética entre Sá-Carneiro e Álvaro de Campos é o interessante “Apontamento”. Seus primeiros versos podem ser lidos abaixo:

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Como escreve Leyla Perrone-Moisés, “os melhores poemas de Sá-Carneiro assemelham-se aos de Pessoa, pela temática da perda do ‘eu’”.


“Bicarbonato de soda” também comprova essa ligação, como pode se comprovar nos seguintes versos, em que o estado de alma ganha traços enigmáticos:

Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao pôr-do-sol do esforço...

A semelhança de estilo entre os dois, no entanto, fica explícita nos poemas futuristas “Manucure” e “Apoteose”, já citados neste trabalho. Compostos em 1915, inspirados na vanguarda que se manifestava cada vez com maior força e nos poemas de Álvaro de Campos, sobretudo “Ode marítima” e “Ode triunfal”, trata-se de dois poemas com grau de modernidade insuperável, apresentando inovações gráficas (letreiros, palavras dispostas no melhor estilo de Guillaume Apollinaire, dos antológicos caligramas, no verso solto “É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe...!”, de “Manucure”, números soltos, nomes de jornais e artistas daquele período, anúncios, marcas, representações de sons de máquinas), numa enxurrada de efeitos que remetem o leitor ao poema “semiótico” mais conhecido e debatido do século passado, Un coup de dés, escrito por Stéphane Mallarmé.
O espírito vanguardista é a melhor característica desses poemas de Sá-Carneiro, não só pelos atrevimentos visuais. Versos com uma consciência excepcional, diante de um novo horizonte que, então, o século XX já oferecia, como estes abaixo, de “Manucure”, se destacam em qualquer antologia da modernidade:

Meus olhos ungidos de Novo,
Sim! – meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
Não param de fremir, de sorver, e faiscar

Sá-Carneiro, porém, ao contrário dos heterônimos de Fernando Pessoa, existia realmente e com ele todos os sofrimentos que um poeta trágico pode ter – sobretudo na falha tentativa de conviver com o Imaginário e o Simbólico. Enquanto Pessoa conseguiu se multidividir em várias personas, Sá-Carneiro sucumbiu ao próprio e ferino dualismo com o qual não conseguiu viver. Seu destino foi trágico: suicidou-se no Hotel Nice de Paris, tomando uma dose fatal de estricnina, aos 26 anos de idade, quando sua linguagem se dirigia à plenitude, ao estágio mais alto de literatura, deixando a poesia para trás, como Rimbaud fez ao partir para a África.
Assim como é necessário admirar Fernando Pessoa e seus heterônimos, é indispensável notar que Sá-Carneiro tem influência básica no desenvolvimento da poesia portuguesa durante a Modernidade. Sua história não está reduzida ao fato de ter trocado cartas com Pessoa ou ter cometido suicídio no auge da juventude e inspiração poética. Ele foi o “rei de toda esta incoerência”, como deixa claro no poema “A queda”, ao lado de todos os reis que conhecemos muito bem.