3º ano de Dado Acaso
Criado em janeiro de 2010, o Dado Acaso entra, portanto, em seu 3º ano. Começou em São Paulo, com o nome imaginado por Nicole Cristofalo, e viajou para o Rio Grande do Sul.
Os países onde o blog é mais lido são: Brasil, Portugal, Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, França, Japão, Holanda, Espanha, Itália, Colômbia, Argentina, México, Rússia, Canadá, China, Espanha, Grécia, Costa Rica, Venezuela, Uruguai, Paraguai, Chile, Angola, Suécia e Taiwan.
Agradecemos a todos os visitantes, desses e de outros países, e aos seguidores.
Neste ano, continuaremos tratando da poesia de todas as épocas. Nos próximos meses, teremos textos sobre Raul Bopp, Mário de Andrade, Theo van Doesburg, Wislawa Szymborska, João Cabral de Melo Neto, Roland Barthes e Antoine Compagon, não necessariamente nessa ordem. Aguarde.
Agora, o tempo é de Mallarmé e convidamos você a ler o texto “Traços da oralidade em Mallarmé”.
A sua leitura nos honra.
Nicole Cristofalo
André Dick
sábado, 21 de janeiro de 2012
Traços da oralidade em Mallarmé (I)
Por Nicole Cristofalo
Ao discutir a oralidade, em Linguagem – ritmo e vida, o teórico francês Henri Meschonnic menciona elementos que se relacionam a ela e que justamente a distingue em relação à fala, tais como a escritura, o ritmo e a linguagem ordinária na obra do poeta francês Stéphane Mallarmé, desmistificando a sua aura de poética “incompreensível” e demonstrando que, por meio da ideia da oralidade, é possível realizarmos uma leitura que questione tal crítica.
Segundo Meschonnic: “Assim, podem-se transformar as evidências: Mallarmé. Toda uma modernidade, nos últimos trinta anos, o vê como o extremo do escrito, a própria negação do sujeito e da voz juntos, no livro impossível, no teatro abstrato, e não mais tanto as palavras raras do que a rarefação da linguagem e os brancos do Lance de dados. Essa era apenas uma leitura. O efeito de uma estratégia de escritura. Pode-se ler de outra maneira. Basta conceder o ritmo de outra maneira. Então, um outro Mallarmé, que estava escondido pelo anterior, surge. Um Mallarmé das palavras corriqueiras, do sujeito e da oralidade. O que mostra bem que não há diretamente ‘Mallarmé’, mas uma sequência de relações históricas com Mallarmé”.
Um dos aspectos fundamentais da oralidade é a ideia de escritura. Interessante notar que Meschonnic não procura definir o conceito de escritura, pois afirma que ela própria começa onde cessa o definir, o que nos remete a obra de Mallarmé, tão criticada pelo fato de ser de “difícil acesso”, com suas imagens e significados mal definidos: “nomear um objeto é suprimir três-quartos do prazer do poema, que é feito de adivinhar pouco a pouco: sugerir, eis o sonho”, diria Mallarmé. E continua: “é o perfeito uso desse mistério que constitui o símbolo: evocar pouco a pouco um objeto e extrair dele um estado de alma, por uma série de decifrações”. Encontramos a mesma ideia em Meschonnic, quando ele critica: “a verdade dos nomes substituindo a verdade das coisas”. Podemos, então, pensar a obra do poeta francês como sendo uma escritura, pois esta se realiza quando se cria uma nova oralidade, um novo ritmo, e o que se confirma dentro da afirmação também de Roland Barthes: “sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, (...) mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhum é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura (...) Na escritura múltipla (...) tudo está para ser deslindado, mas nada para ser decifrado; a escritura pode ser seguida, ‘desfiada’ (como se diz da malha de uma meia que escapa) em todas as suas retomadas”.
Difícil pensarmos numa obra moderna que possa ser tão “desfiada” como o poema Un coup de dés, de Mallarmé, além de seus diversos sonetos, que não se fecham num único significado, trazendo inúmeras possibilidades de leitura por meio de suas imagens indefinidas, além da disposição dos caracteres no papel, a sonoridade do poema e até mesmo a sua (falta de) pontuação, todos atuando como elementos de ritmo. Ou seja, os elementos que compõem o ritmo do poema são constituintes de sua escritura. A relação do ritmo e da escritura é extremamente importante, segundo Meschonnic: “Se a escritura é o que acontece quando alguma coisa é feita na linguagem por um sujeito e que jamais havia sido feito assim até aquele momento, então a escritura participa do desconhecido. Ou seja, do ritmo. Ela começa aí onde cessa o saber”. Assim, o crítico situa a escritura no saber do futuro, ainda quando se torna passado, inscrita dentro do ritmo que organiza o discurso e insere o subjetivo, a gestualidade, a corporeidade na linguagem, a qual costuma ser analisada apenas por meio de aspectos linguísticos. Se formos pensar na obra de Mallarmé tendo apenas em mente o conceito de signo, chegaremos à mesma conclusão dos críticos que a enxergam como “ininteligível”. Pensar em Un coup de dés sem termos em mente a ideia de ritmo é deixarmos escapar inúmeras possibilidades de leitura deste poema que influenciou os mais importantes poetas da modernidade.
Segundo Augusto de Campos, “Mallarmé é o inventor de um processo de organização poética cuja significação para a arte da palavra se nos afigura comparável, esteticamente, ao valor musical da série, descoberto por Schoenberg, purificada por Webern, e através da filtração deste, legada aos jovens compositores eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen”.
O ritmo no texto poético é distinto do ritmo que encontramos na música, já que o mesmo, na poesia, não necessariamente possui um intervalo regular. Apesar dos poemas gregos terem sido escritos com base nos intervalos regulares, vemos que ao longo dos séculos esse elemento se enfraqueceu, mas não se perdeu de todo. O ritmo sempre estará presente na poesia, por meio de seus diversos aspectos, levando sempre em consideração a respiração, a entonação da voz, o tempo de leitura, a gestualidade e a disposição de seus caracteres. Mallarmé constrói, por meio deste último aspecto, um ritmo que nunca havia sido concebido: “No ápice de todo um processo evolutivo da poesia, Mallarmé começa por denunciar a falácia e as limitações da linguagem discursiva para anunciar, no Lance de dados, um novo campo de relações e possibilidades do uso da linguagem, para o qual convergem a experiência da música e da pintura e os modernos meios de comunicação, do ‘mosaico do jornal’ ao cinema (ao qual Walter Benjamin atribui, justificadamente, tão grande importância) e às técnicas publicitárias. E assim como a aparente destrutividade da abolição do tonalismo em música (Schoenberg-Webern) e a da figura em artes plásticas (Cubismo-Malievitch-Mondrian) levam a um novo construtivismo, a contestação do verso e da linguagem em Mallarmé, ao mesmo tempo que encerra um capítulo, abre ou entreabre toda uma era para a poesia, acenando com inéditos critérios estruturais e sugerindo a superação do próprio livro como suporte instrumental do poema”, afirma Augusto de Campos.
Por Nicole Cristofalo
Ao discutir a oralidade, em Linguagem – ritmo e vida, o teórico francês Henri Meschonnic menciona elementos que se relacionam a ela e que justamente a distingue em relação à fala, tais como a escritura, o ritmo e a linguagem ordinária na obra do poeta francês Stéphane Mallarmé, desmistificando a sua aura de poética “incompreensível” e demonstrando que, por meio da ideia da oralidade, é possível realizarmos uma leitura que questione tal crítica.
Segundo Meschonnic: “Assim, podem-se transformar as evidências: Mallarmé. Toda uma modernidade, nos últimos trinta anos, o vê como o extremo do escrito, a própria negação do sujeito e da voz juntos, no livro impossível, no teatro abstrato, e não mais tanto as palavras raras do que a rarefação da linguagem e os brancos do Lance de dados. Essa era apenas uma leitura. O efeito de uma estratégia de escritura. Pode-se ler de outra maneira. Basta conceder o ritmo de outra maneira. Então, um outro Mallarmé, que estava escondido pelo anterior, surge. Um Mallarmé das palavras corriqueiras, do sujeito e da oralidade. O que mostra bem que não há diretamente ‘Mallarmé’, mas uma sequência de relações históricas com Mallarmé”.
Um dos aspectos fundamentais da oralidade é a ideia de escritura. Interessante notar que Meschonnic não procura definir o conceito de escritura, pois afirma que ela própria começa onde cessa o definir, o que nos remete a obra de Mallarmé, tão criticada pelo fato de ser de “difícil acesso”, com suas imagens e significados mal definidos: “nomear um objeto é suprimir três-quartos do prazer do poema, que é feito de adivinhar pouco a pouco: sugerir, eis o sonho”, diria Mallarmé. E continua: “é o perfeito uso desse mistério que constitui o símbolo: evocar pouco a pouco um objeto e extrair dele um estado de alma, por uma série de decifrações”. Encontramos a mesma ideia em Meschonnic, quando ele critica: “a verdade dos nomes substituindo a verdade das coisas”. Podemos, então, pensar a obra do poeta francês como sendo uma escritura, pois esta se realiza quando se cria uma nova oralidade, um novo ritmo, e o que se confirma dentro da afirmação também de Roland Barthes: “sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, (...) mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhum é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura (...) Na escritura múltipla (...) tudo está para ser deslindado, mas nada para ser decifrado; a escritura pode ser seguida, ‘desfiada’ (como se diz da malha de uma meia que escapa) em todas as suas retomadas”.
Difícil pensarmos numa obra moderna que possa ser tão “desfiada” como o poema Un coup de dés, de Mallarmé, além de seus diversos sonetos, que não se fecham num único significado, trazendo inúmeras possibilidades de leitura por meio de suas imagens indefinidas, além da disposição dos caracteres no papel, a sonoridade do poema e até mesmo a sua (falta de) pontuação, todos atuando como elementos de ritmo. Ou seja, os elementos que compõem o ritmo do poema são constituintes de sua escritura. A relação do ritmo e da escritura é extremamente importante, segundo Meschonnic: “Se a escritura é o que acontece quando alguma coisa é feita na linguagem por um sujeito e que jamais havia sido feito assim até aquele momento, então a escritura participa do desconhecido. Ou seja, do ritmo. Ela começa aí onde cessa o saber”. Assim, o crítico situa a escritura no saber do futuro, ainda quando se torna passado, inscrita dentro do ritmo que organiza o discurso e insere o subjetivo, a gestualidade, a corporeidade na linguagem, a qual costuma ser analisada apenas por meio de aspectos linguísticos. Se formos pensar na obra de Mallarmé tendo apenas em mente o conceito de signo, chegaremos à mesma conclusão dos críticos que a enxergam como “ininteligível”. Pensar em Un coup de dés sem termos em mente a ideia de ritmo é deixarmos escapar inúmeras possibilidades de leitura deste poema que influenciou os mais importantes poetas da modernidade.
Segundo Augusto de Campos, “Mallarmé é o inventor de um processo de organização poética cuja significação para a arte da palavra se nos afigura comparável, esteticamente, ao valor musical da série, descoberto por Schoenberg, purificada por Webern, e através da filtração deste, legada aos jovens compositores eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen”.
O ritmo no texto poético é distinto do ritmo que encontramos na música, já que o mesmo, na poesia, não necessariamente possui um intervalo regular. Apesar dos poemas gregos terem sido escritos com base nos intervalos regulares, vemos que ao longo dos séculos esse elemento se enfraqueceu, mas não se perdeu de todo. O ritmo sempre estará presente na poesia, por meio de seus diversos aspectos, levando sempre em consideração a respiração, a entonação da voz, o tempo de leitura, a gestualidade e a disposição de seus caracteres. Mallarmé constrói, por meio deste último aspecto, um ritmo que nunca havia sido concebido: “No ápice de todo um processo evolutivo da poesia, Mallarmé começa por denunciar a falácia e as limitações da linguagem discursiva para anunciar, no Lance de dados, um novo campo de relações e possibilidades do uso da linguagem, para o qual convergem a experiência da música e da pintura e os modernos meios de comunicação, do ‘mosaico do jornal’ ao cinema (ao qual Walter Benjamin atribui, justificadamente, tão grande importância) e às técnicas publicitárias. E assim como a aparente destrutividade da abolição do tonalismo em música (Schoenberg-Webern) e a da figura em artes plásticas (Cubismo-Malievitch-Mondrian) levam a um novo construtivismo, a contestação do verso e da linguagem em Mallarmé, ao mesmo tempo que encerra um capítulo, abre ou entreabre toda uma era para a poesia, acenando com inéditos critérios estruturais e sugerindo a superação do próprio livro como suporte instrumental do poema”, afirma Augusto de Campos.
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Traços da oralidade em Mallarmé (II)
Por Nicole Cristofalo
Apesar da diferença à qual nos referimos anteriormente entre o ritmo musical e o ritmo poético, Mallarmé relaciona o corpo do poema ao corpo da partitura, onde, além de encontramos contrapontos e fugas, se desenvolve um tema musical principal, com motivos secundários e outros adjacentes, que irão se identificar graficamente por meio dos diferentes tamanhos das letras e formatos dos tipos. Partindo do tema principal: “UN COUP DE DÉS / JAMAIS / N’ABOLIRA / LE HASARD”, os motivos secundários e adjacentes se relacionam entre si possibilitando leituras e interpretações diversas.
Segundo o próprio Mallarmé, no prefácio a Un coup de dés, o poema, com sua “diferença dos caracteres tipográficos entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão oral e a disposição em pauta, média, no alto, embaixo da página, notará o subir ou o descer da entonação”.
O motivo preponderante é a “espinha dorsal” do poema: “UN COUP DE DÉS / JAMAIS / N’ABOLIRA / LE HASARD” (na tradução de Haroldo, “(UM LANCE DE DADOS) / JAMAIS / ABOLIRÁ / O ACASO)”. O primeiro motivo secundário é “SI / C’ÉTAIT / LE NOMBRE / CE SERAIT” (traduzido por Haroldo como “SE / FOSSE / O NÚMERO / SERIA”), tendo como adjacentes os temas “comme si / comme si”. Em seguida, há motivo secundário com vários adjacentes se espalhando pelo poema: “QUAND BIEN MÊME LANCÉ DANS DES CIRCONSTANCES ÉTERNELLES / DU FOND D’UN NAUFRAGE / SOIT / LE MAÎTRE / EXISTÂT-IL / COMMENÇÂT-IL ET CESSÂT-IL / SE CHIFFRÂT-IL / ILLUMINÂT-IL / RIEN / N’AURA EU LIEU / QUE LE LIEU / EXCEPTÉ / PEUT-ÊTRE / UNE CONSTELLATION”, traduzido por Haroldo de Campos como “MESMO QUANDO LANÇADO EM CIRCUNSTÂNCIAS ETERNAS / DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO / SEJA / O MESTRE / EXISTIRIA / COMEÇARIA E CESSARIA / CIFRAR-SE-IA / ILUMINARIA / NADA / TERÁ TIDO LUGAR / SENÃO O LUGAR / EXCETO / TALVEZ / UMA CONSTELAÇÃO”. As demais construções do poema são motivos adjacentes, assinalados pelas letras menores. O preto das letras indica, como nas notas, o som, e o branco, silêncio. As alturas das linhas tipográficas correspondem às linhas de pauta – interessante lembrarmos que Mallarmé também admirava Wagner e o seu poema “L’après-midi d’un faune” foi musicado por Claude Debussy.
Ainda sobre o poema Un coup de dés, Augusto de Campos afirma: “Trata-se, frisamos, de uma utilização funcional dos recursos tipográficos, impotentes, no seu arranjo tradicional, para expressar a nova organização do poema. A própria pontuação se torna aqui desnecessária, uma vez que é o espaço gráfico a pontuação essencial, o elemento ‘negativo’ de uma versificação estrutural que vem fazer caducar o mero linear verso-livre”. Novamente, vemos o poema de Mallarmé se afirmando como escritura, trazendo a criação de um novo ritmo, “uma nova organização do poema”. Torna-se importante relembrarmos a importância que Meschonnic atribui à pontuação e à sua historicidade, apontando os erros cometidos pelos tradutores na tentativa de modernizá-la, acabando por distorcer e colocando a perder o ritmo do texto traduzido. Lembremos que “a oralidade é solidária da historicidade”, e que “a pontuação na poética de um texto é seu gestual, sua oralidade”. É praticamente impossível imaginarmos Un coup de dés estruturado com pontuação, ou mesmo poemas como “Remémoration d’amis belges”, “Petit air I”, “Toute l’âme résumée...”, ou “A la nue accablante tu...” (todos traduzidos por Augusto de Campos, respeitando o ritmo que a pontuação define nos poemas de Mallarmé), onde encontramos apenas o ponto final no último verso do poema, com exceção de “A la nue accablante tu...”.
Neste último, é interessante vermos que a única pontuação que se imprime durante o poema é uma vírgula que divide o quinto e sexto verso, e que se encontra dentro de parênteses: “Quel sepulcral naufrage ( tu / Le sais écume mais y baves)” (“Que sepulcral naufrágio (sabes, / Espuma, se bem que o babes)”, na tradução de Augusto de Campos), como se os parênteses representassem a necessidade de se alterar o ritmo da leitura neste trecho. Ao lermos todo o poema, entendemos que estes versos se distinguem do restante, pois este é o único momento em que se declara uma primeira pessoa.
Mallarmé, ao longo de sua obra, se liberta “progressivamente dos ornatos discursivos, caminha para uma extrema elipse e concisão. Ao mesmo tempo, a fraturação, as interrupções, a descontinuidade da linguagem, que vão triturando a sintaxe e exigindo novas técnicas, desde a pontuação, reduzida ao mínimo ou mesmo abolida (com ressalva dos parênteses necessários para as interseções de vários planos linguísticos), até os arquipélagos-constelações de substantivos (‘Solitude, recife, estrela’; ‘Noite demência e pedraria’)”. Esta afirmação de Augusto de Campos é essencial para entendermos, resumidamente, o que ocorre na obra de Mallarmé, e que tais características não a tornam “inteligível”, mas, sim, transformam o seu ritmo.
Lendo a obra de Mallarmé, encontramos a linguagem ordinária que, nas palavras de Meschonnic, traz a “prosa do cotidiano”, e não necessariamente se realiza dentro de um “enunciado fácil”, com termos e estruturas simples.
Ou seja, Mallarmé trabalha a linguagem ordinária trazendo elementos novos, criando um novo ritmo, mas que não torna o discurso incompreensível, ou afastado do cotidiano. Como afirma Barthes, em A preparação do romance II, Mallarmé trabalha com dois estados da língua: “estado bruto ou imediato” – que mistura dados da fala e da escrita – e “estado essencial”, que seria o “estado absolutamente literário da escrita”. Apesar de esta definição conflitar com o que afirmamos a respeito da oralidade neste trabalho, pois nela se confunde o oral com a fala, podemos entender que Barthes se refere às distintas oralidades que encontramos em Mallarmé, incluindo a que se relaciona mais intimamente à linguagem ordinária. No poema “Sainte”, em que Mallarmé evoca Santa Cecília, por exemplo, há “um entendimento do mundo como horizonte dos vários gestos da consciência – e da consciência criadora em particular – substancialmente diversa da ontologia metafísica e/ou da pretensão neokantiana de descrição do conhecimento fora da problemática do ser”, na afirmação de José Guilherme Merquior.
“Fizeram-nos acreditar que ler era algo interno. Assim, o leitor não lê, ele é lido.” Talvez, por conta desta afirmação de Meschonnic, os leitores não encontrem em Mallarmé a oralidade, o seu ritmo único, feito da música e do silêncio inscritos na escritura, abertos aos símbolos e às imagens vindas da linguagem ordinária, esperando que sejam lidas e relidas, cada vez refletindo um novo ritmo de leitura que atravesse os seus significados sempre indefiníveis. Lembra Augusto de Campos o escrito de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa: “Entretanto, meu caro, tão estranhos e incompreensíveis são muitos dos sonetos admiráveis de Mallarmé. E nós compreendemo-los”.
Por Nicole Cristofalo
Apesar da diferença à qual nos referimos anteriormente entre o ritmo musical e o ritmo poético, Mallarmé relaciona o corpo do poema ao corpo da partitura, onde, além de encontramos contrapontos e fugas, se desenvolve um tema musical principal, com motivos secundários e outros adjacentes, que irão se identificar graficamente por meio dos diferentes tamanhos das letras e formatos dos tipos. Partindo do tema principal: “UN COUP DE DÉS / JAMAIS / N’ABOLIRA / LE HASARD”, os motivos secundários e adjacentes se relacionam entre si possibilitando leituras e interpretações diversas.
Segundo o próprio Mallarmé, no prefácio a Un coup de dés, o poema, com sua “diferença dos caracteres tipográficos entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão oral e a disposição em pauta, média, no alto, embaixo da página, notará o subir ou o descer da entonação”.
O motivo preponderante é a “espinha dorsal” do poema: “UN COUP DE DÉS / JAMAIS / N’ABOLIRA / LE HASARD” (na tradução de Haroldo, “(UM LANCE DE DADOS) / JAMAIS / ABOLIRÁ / O ACASO)”. O primeiro motivo secundário é “SI / C’ÉTAIT / LE NOMBRE / CE SERAIT” (traduzido por Haroldo como “SE / FOSSE / O NÚMERO / SERIA”), tendo como adjacentes os temas “comme si / comme si”. Em seguida, há motivo secundário com vários adjacentes se espalhando pelo poema: “QUAND BIEN MÊME LANCÉ DANS DES CIRCONSTANCES ÉTERNELLES / DU FOND D’UN NAUFRAGE / SOIT / LE MAÎTRE / EXISTÂT-IL / COMMENÇÂT-IL ET CESSÂT-IL / SE CHIFFRÂT-IL / ILLUMINÂT-IL / RIEN / N’AURA EU LIEU / QUE LE LIEU / EXCEPTÉ / PEUT-ÊTRE / UNE CONSTELLATION”, traduzido por Haroldo de Campos como “MESMO QUANDO LANÇADO EM CIRCUNSTÂNCIAS ETERNAS / DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO / SEJA / O MESTRE / EXISTIRIA / COMEÇARIA E CESSARIA / CIFRAR-SE-IA / ILUMINARIA / NADA / TERÁ TIDO LUGAR / SENÃO O LUGAR / EXCETO / TALVEZ / UMA CONSTELAÇÃO”. As demais construções do poema são motivos adjacentes, assinalados pelas letras menores. O preto das letras indica, como nas notas, o som, e o branco, silêncio. As alturas das linhas tipográficas correspondem às linhas de pauta – interessante lembrarmos que Mallarmé também admirava Wagner e o seu poema “L’après-midi d’un faune” foi musicado por Claude Debussy.
Ainda sobre o poema Un coup de dés, Augusto de Campos afirma: “Trata-se, frisamos, de uma utilização funcional dos recursos tipográficos, impotentes, no seu arranjo tradicional, para expressar a nova organização do poema. A própria pontuação se torna aqui desnecessária, uma vez que é o espaço gráfico a pontuação essencial, o elemento ‘negativo’ de uma versificação estrutural que vem fazer caducar o mero linear verso-livre”. Novamente, vemos o poema de Mallarmé se afirmando como escritura, trazendo a criação de um novo ritmo, “uma nova organização do poema”. Torna-se importante relembrarmos a importância que Meschonnic atribui à pontuação e à sua historicidade, apontando os erros cometidos pelos tradutores na tentativa de modernizá-la, acabando por distorcer e colocando a perder o ritmo do texto traduzido. Lembremos que “a oralidade é solidária da historicidade”, e que “a pontuação na poética de um texto é seu gestual, sua oralidade”. É praticamente impossível imaginarmos Un coup de dés estruturado com pontuação, ou mesmo poemas como “Remémoration d’amis belges”, “Petit air I”, “Toute l’âme résumée...”, ou “A la nue accablante tu...” (todos traduzidos por Augusto de Campos, respeitando o ritmo que a pontuação define nos poemas de Mallarmé), onde encontramos apenas o ponto final no último verso do poema, com exceção de “A la nue accablante tu...”.
Neste último, é interessante vermos que a única pontuação que se imprime durante o poema é uma vírgula que divide o quinto e sexto verso, e que se encontra dentro de parênteses: “Quel sepulcral naufrage ( tu / Le sais écume mais y baves)” (“Que sepulcral naufrágio (sabes, / Espuma, se bem que o babes)”, na tradução de Augusto de Campos), como se os parênteses representassem a necessidade de se alterar o ritmo da leitura neste trecho. Ao lermos todo o poema, entendemos que estes versos se distinguem do restante, pois este é o único momento em que se declara uma primeira pessoa.
Mallarmé, ao longo de sua obra, se liberta “progressivamente dos ornatos discursivos, caminha para uma extrema elipse e concisão. Ao mesmo tempo, a fraturação, as interrupções, a descontinuidade da linguagem, que vão triturando a sintaxe e exigindo novas técnicas, desde a pontuação, reduzida ao mínimo ou mesmo abolida (com ressalva dos parênteses necessários para as interseções de vários planos linguísticos), até os arquipélagos-constelações de substantivos (‘Solitude, recife, estrela’; ‘Noite demência e pedraria’)”. Esta afirmação de Augusto de Campos é essencial para entendermos, resumidamente, o que ocorre na obra de Mallarmé, e que tais características não a tornam “inteligível”, mas, sim, transformam o seu ritmo.
Lendo a obra de Mallarmé, encontramos a linguagem ordinária que, nas palavras de Meschonnic, traz a “prosa do cotidiano”, e não necessariamente se realiza dentro de um “enunciado fácil”, com termos e estruturas simples.
Ou seja, Mallarmé trabalha a linguagem ordinária trazendo elementos novos, criando um novo ritmo, mas que não torna o discurso incompreensível, ou afastado do cotidiano. Como afirma Barthes, em A preparação do romance II, Mallarmé trabalha com dois estados da língua: “estado bruto ou imediato” – que mistura dados da fala e da escrita – e “estado essencial”, que seria o “estado absolutamente literário da escrita”. Apesar de esta definição conflitar com o que afirmamos a respeito da oralidade neste trabalho, pois nela se confunde o oral com a fala, podemos entender que Barthes se refere às distintas oralidades que encontramos em Mallarmé, incluindo a que se relaciona mais intimamente à linguagem ordinária. No poema “Sainte”, em que Mallarmé evoca Santa Cecília, por exemplo, há “um entendimento do mundo como horizonte dos vários gestos da consciência – e da consciência criadora em particular – substancialmente diversa da ontologia metafísica e/ou da pretensão neokantiana de descrição do conhecimento fora da problemática do ser”, na afirmação de José Guilherme Merquior.
“Fizeram-nos acreditar que ler era algo interno. Assim, o leitor não lê, ele é lido.” Talvez, por conta desta afirmação de Meschonnic, os leitores não encontrem em Mallarmé a oralidade, o seu ritmo único, feito da música e do silêncio inscritos na escritura, abertos aos símbolos e às imagens vindas da linguagem ordinária, esperando que sejam lidas e relidas, cada vez refletindo um novo ritmo de leitura que atravesse os seus significados sempre indefiníveis. Lembra Augusto de Campos o escrito de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa: “Entretanto, meu caro, tão estranhos e incompreensíveis são muitos dos sonetos admiráveis de Mallarmé. E nós compreendemo-los”.
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terça-feira, 17 de janeiro de 2012
Melhores livros de 2011
Convidamos você a conhecer a lista - solicitada pela Coordenação do Livro e Literatura - dos 5 melhores livros de 2011, na opinião de André Dick. Aqui.
Convidamos você a conhecer a lista - solicitada pela Coordenação do Livro e Literatura - dos 5 melhores livros de 2011, na opinião de André Dick. Aqui.
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