A recusa de Tsvetáieva, Akhmátova e Mandelstam (I)
Por André Dick
No volume Poesia da recusa, Augusto de Campos relembra as palavras de Valéry sobre o trabalho de Mallarmé: “O trabalho severo, em literatura, se manifesta e se opera por recusas. Pode-se dizer que ele é medido pelo número de recusas. [...] O rigor das recusas, a quantidade das soluções que são rejeitadas, as possibilidades que o escritor se proíbe, manifestam a natureza dos escrúpulos, o grau de consciência, a quantidade do orgulho e, também, os pudores e os diversos temores que se pode sentir com relação aos julgamentos futuros do público. É nesse ponto que a literatura atinge o domínio da ética”.
No caso de alguns poetas russos, trata-se de uma recusa não só a posições políticas, mas à vida meramente sistematizada. Esta recusa é representada por poetas como Mandelstam, Maiakóvski e Marina Tsvetáieva, por meio do suicídio, obviamente uma representação do desespero existencial de seus poetas e não uma sublimação literária, para se alcançar a eternidade ou tornar os escritos de quem se matou em algo de mais valor, ou entendê-lo como obrigação do sujeito infeliz, ou do poeta que deseja fugir ao sistema. A recusa não implica, também, escolher um caminho de pureza, de distanciamento do mundo, mas sim o de privilegiar o diálogo com a tradição, com o mundo – mas de forma não ideológica, comprometida.
Não por acaso, Óssip Mandelstam é um dos poetas russos mais contundentes. Nascido em Varsóvia, Polônia, cresceu em São Petersburgo e tem como principal obra seu primeiro livro, Kamen (“Pedra”), influenciado sobretudo pelo simbolismo, depois de um período controverso, em que era, ao mesmo tempo, protegido e perseguido, por amigos e inimigos. Após se desencantar com o movimento revolucionário, afastou-se, pouco a pouco, da política, e foi preso em 1934, acabando nos campos de concentração de Stalin, por fazer versos satíricos contra o ditador. Postava-se, desse modo, contra a vida burocrática do intelectual que trabalha para as ideias do governo, em busca de privilégios e aceitação popular.
Como lembram Nina Guerra e Filipe Guerra, na introdução de Guarda minha fala para sempre, “o destino de Mandelstam estava traçado: Stálin, que chegou a pensar domesticar o poeta, fazer dele mais um bobo da corte, agora já não aceitava louvores poéticos: ser liquidado aos poucos, desaparecer imperceptivelmente para não deixar rastro, era o destino deste, e de outros poetas”. Detido em 1938 e condenado a cinco anos de trabalhos forçados, acabou morrendo num “campo de passagem”, “enquanto aguardava a deportação para um dos campos de reeducação da Sibéria”. A acusação, como lembram Nina Guerra e Filipe Guerra, era de “propaganda antissoviética” e a sentença: “o réu Óssip Mandelstam, filho de comerciante, ex-socialista-revolucionária, por atividades contrarrevolucionárias, é condenado a cinco anos de campo de trabalhos forçados, na Kolimá. Não chegou a Kolimá”. Teria “morrido a 20 de dezembro, na barraca nº 11 o campo de trânsito 3/10 de Usvitlag, a seção noroeste de Gulag, entre os kontriki, ou seja, os presos acusados de ‘atividades contrarrevolucionárias’. Tinha 47 anos” (apresentação de Fogo errante).
Fizeram o possível para que ele não fosse contemporâneo de seu país – quando a liderança de seu país, naquele momento, não era, sob certo ponto de vista, contemporânea da ética.
Como lembram Nina e Filipe Guerra, Mandelstam, “como poeta e como pessoa, era contra qualquer derramamento de sangue. E não em teoria: em 1918, em Moscovo, o socialista-revolucionário Bliumkin gabava-se de que tinha nas mãos a vida de muitas pessoas. Mandelstam, indignado, arrebatou-lhe das mãos a lista dos condenados ao fuzilamento e rasgou-as ali mesmo”.
Mandelstam foi traduzido em Portugal, nas coletâneas Fogo errante (Relógio d’Água) e Guarda minha fala para sempre (Assírio & Alvim), este também com textos em prosa e uma apresentação mais alentada. Ambas têm boas traduções – assinadas por Nina e Filipe Guerra –, buscando, na maioria das vezes, pela sonoridade do poeta russo. Além disso, sua preocupação do verso como arquitetura era evidente (assim como em João Cabral). Segundo Krystyna Pomorska, em Formalismo e futurismo, a “tendência de Mandelstam para usar motivos de material arquitetônico (especialmente em seu primeiro volume, Kamén, 1913) e nomes de substâncias duras e sólidas (kámen, zóloto, almáz, pierlamutr – pedra, ouro, diamante, madrepérola)” está “de acordo com o apego dos acmeístas (que veremos mais adiante) à arquitetura tomada como modelo poético”. Vejamos, por exemplo, a bela tradução da primeira estrofe de “Ode à ardósia” (de Fogo errante):
Estrela com estrela – junção verdadeira,
pétreo caminho dum velho cantar,
anel e ferradura, água e pederneira,
língua de pederneira e de ar.
No xisto mole das nuvens o plúmeo
desenho leitoso a ponteiro urdido
não é uma aprendizagem do mundo,
é dum torpor de ovelhas o delírio.
Ou o seguinte poema:
Ainda não morreste, inda não estás sozinho;
A companheirinha-mendiga
No vale magnânimo e com bruma, o frio,
A tempestade – está contigo.
Na pobreza opulenta, miséria poderosa,
Vive tranquilo e consolado.
Benditas são as noites e os dias, e o labor
Do belo-verbo é sem pecado.
Desgraçado é quem de si mesmo é a sombra,
A quem assusta o ladrido,
O vento ceifa. É pobre quem pede esmola à sombra
Meio morto e ferido.
André Vallias, em uma de suas traduções de Mandelstam (publicadas na Errática), revela bem, como nesses poemas acima, a mistura dosada por Mandelstam entre imagens e sonoridade fazendo com que, como lembra Pomorska, ele se torne o poeta russo mais próximo do simbolismo francês, com um “certo afastamento parnasiano, uma tonalidade clássica e uma imagética baseada na mitologia clássica”:
Nem o que é supérfluo falar,
Nada que valha a pena mostrar,
Entristecida e livre de mácula,
A alma escura do animal:
Sem nada que deseje ensinar
Nem nada que soubesse falar,
Nada o golfinho gris ao fundo
Voraz-cinzento do mundo.
Mandesltam influenciou diretamente um poeta antológico do século XX, Paul Celan, que o traduziu. Mandelstam escreveu: “Num momento crítico, o marinheiro lança às águas do mar a garrafa selada com o seu nome e o seu destino. Muitos anos depois, vagueando nas dunas, acho-a na areia, leio o papel [...] O oceano acudiu com a sua força enorme e fez cumprir o destino da garrafa [...] A garrafa é como as poesias, que não são endereçadas a ninguém em especial. Mas ambas têm destinatário: a carta – quem achar por acaso a garrafa na areia, a poesia – um leitor qualquer da futura geração”. Celan escreveu, por sua vez: “O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa, lançada ao mar na convicção – decerto nem sempre muito esperançada – de um dia ir dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também neste sentido os poemas estão a caminho – têm um rumo”.
quarta-feira, 29 de junho de 2011
A recusa de Tsvetáieva, Akhmátova e Mandelstam (II)
Por André Dick
A poeta Anna Akhmátova integrava, como Mandelstam, este por um curto período de tempo, o grupo batizado de “acmeísta”. Certa vez, Mandelstam gritou, exaltado, diante de pessoas descontentes com seu discurso, numa reunião do jornal Litetaturnaia Gazeta”: “Sou contemporâneo de Akhmátova!”. A palavra “contemporâneo” representava, para os poetas russos, estar ao lado de alguém: ser contemporâneo no plano das ideias, sobretudo.
Para Nina Guerra e Filipe Guerra, a “nova corrente”, da qual Mandelstam e Akhmátova fizeram parte, tornou-se uma superação lógica do simbolismo: “Voltar à terra: da eternidade para a história, da feminidade eterna para o princípio masculino, dos espíritos incorpóreos, sejam anjos ou diabos, para a força animal, do além para o cotidiano, da ideia para as manifestações concretas”. No entanto, o acmeísmo não é uma negação do simbolismo, mas utiliza suas ideias sob um ponto de vista relacionado à realidade desses poetas, como os poetas simbolistas tinham também a sua. Akhmátova é uma das poetas mais modernas que a Rússia já teve e, além de haver traduções de poemas seus em Poesia da recusa, ganhou, no Brasil, um volume da Coleção L&PM Pocket, com traduções de Lauro Machado Coelho, o mesmo que escreveu sua biografia Anna, a voz da Rússia – Vida e obra de Anna Akhmátova e é responsável pelo volume Poesia soviética, em que há traduções dela, ambos editados pela Argol.
Ela está entre as poetas que permaneceram na Rússia mesmo com a intervenção stalinista. O comissário de cultura de Stalin, Zhdânov, a condenou, por realizar uma poesia distante do povo – talvez porque configura, sobretudo, as ruínas da modernidade. No entanto, a poeta mesmo disse, em “Sobre mim em resumo”: “Nunca deixei de escrever versos. Neles, para mim – a minha ligação com o tempo, com a vida nova do meu povo”.
Quando os escrevia, vivia os ritmos que soavam na história heroica do meu país”, pois, como escreve Krystyna Pomorska, Akhmátova “reduz as expressões metafóricas aos seus significados literais básicos”, tendo como fontes de experiência “encontros e partidas de amantes”. Vejamos uma tradução (de Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev, de Poemas, publicado pela Relógio d’Água):
Tudo saqueado, traído, vendido
Da morte negra a asa passava veloz,
Tudo pela tristeza faminta roído,
Por que ficou iluminado para nós?
De dia o sopro a cerejeira em exalações
Do bosque inusitado em baixo da cidade,
De noite brilha com as novas constelações
Dos céus de Julho a profunda claridade, –
E tão próximo o milagroso vem
Ao sujo casario desmoronado...
Não é conhecido por ninguém, por ninguém,
Mas pelo século para nós despejado.
O mesmo se diz de Marina Tsvetáieva, filha de um professor da Universidade de Moscou e de uma musicista e poeta, que chegou a ter um romance com Mandelstam, admirava Akhmátova (sentimento que, no entanto, não era correspondido) e acabou tendo um fim trágico (suicidou-se), depois de o marido ter sido fuzilado e a filha colocada num campo de concentração, logo após a Rússia ser invadida pelos nazistas. O pathos de Marina é investigado por Décio Pignatari, no seu livro de traduções dedicados à poeta russa, e por Aurora Fornoni Bernardini em Indícios flutuantes, com versos, e Vivendo sob o fogo, com trechos de diários, memórias e correspondências da poeta russa.
Para Aurora Bernardini, em toda a obra de Tsvetáieva, “há diálogos e ‘transmutações’ com poetas e escritores de várias épocas e várias partes, e com certeza haverá mudanças de tom, mas é o amor desesperado por seu mundo russo da infância um dos traços mais característicos de sua poesia”. Marina viveu uma vida amorosa e polêmica: conforme Pignatari, em seu “primeiro ano praguense, teve ligações várias com editores, poetas e críticos, epistolares ou coloridas, a longa, média e curta distância...”. Tendo como tema o amor, havia uma grandiosidade em Tsvetáieva, sobretudo na escolha dos temas e das imagens. Como afirma Décio Pignatari: “É uma alma sem alma, que acredita-mas-não-crê em Deus e que só possui uma medida para o seu infinito – o fenômeno poético que obrigará a ser sinônimo de amor – e este é o seu embate romântico existencial”. O embate romântico sempre suscita o fim do sujeito. Vejamos, por exemplo, o poema “Encontro”, na tradução de Décio Pignatari:
Vou chegar tarde ao encontro marcado,
cabelos já grisalhos. Sim, suponho
ter-me agarrado à primavera, enquanto
via você subir de sonho em sonho.
Vou carregar esse amargo – por largo
tempo e muitos lugares, de penedos
a praças (como Ofélia – sem lamúrias)
por corpos e almas – e sem medos!
A mim, digo que viva, à terra, gire
com sangue no bosque e sangue corrente,
mesmo que o rosto de Ofélia me espie
por entre as relvas de cada corrente,
e, amorosa sedenta, encha a boca
de lodo – oh, haste de luz no metal!
Não chega este amor à altura do seu
amor... Então, enterre-me no céu!
Ou o poema “Não terás minha alma viva”, na tradução de Aurora Bernardini:
Não terás minha alma viva,
Não se dará como uma pluma.
Vida, tu rimas muito com: fingida –
O ouvido do cantor não erra uma!
Não a inventou um nativo,
Deixe que vá a outras paragens!
Vida, tu rimas muito com: ungida –
Vida: brida! Destino: desatino!
Cruéis são os anéis nos tornozelos
No osso penetra a ferrugem!
Vida: facas sobre as quais dança
Quem ama.
– Cansei de esperar a faca!
Tvsetáieva também vendo sendo muito traduzida por Veronica Filíppovna, como vemos nessa tradução publicada na revista literária Desenredos, do ciclo Versos a Block:
Teu nome – um pássaro na mão,
Teu nome – uma pedra de gelo na língua.
Um único movimento nos lábios.
Teu nome – cinco letras.
Uma bola lançada no estio,
Um guizo de prata na boca.
Uma pedra, esquecida no balneário
Silencioso, soluça como teu nome.
Na leveza da noite, um estalido
Faz teu nome ressoar alto e
Escorrendo, harmonicamente,
Destina-se para nós.
Teu nome – ah, não posso! –
Teu nome – um beijo nos olhos,
No frio terno a idade inerte
Teu nome – um beijo na neve.
Um gole na fonte fria e azul
Em teu nome – o sono é profundo.
Com um estilo absolutamente moderno – em que os versos sofrem elipses das mais variadas, os sons das palavras se inter-relacionam, as imagens parecem se mover na busca pelo ritmo –, Tsvetáieva dialoga com muitos poetas de peso, sobretudo porque revela uma dor íntima, subjetiva, elevada à condição de quase um personagem. Sua defesa de Maiakóvski, que, inclusive, ignorava sua poesia – quando ele, depois de se assassinar, era criticado por diversos intelectuais – e de Akhmátova – que não apreciava seus poemas –, é um exemplo prático da rebeldia de Tsvetáieva.
No caso desses poetas – assim como de outros, a exemplo de Iessiênin e Maiakóvski –, o interessante é que a revolução é a recusa à revolução retórica e mesmo à revolução destacada pelo movimento concreto, em que o poeta produziria para as massas. Esses poetas acabam por evitar esse “mundo” no qual veem suas ideias serem contrariadas pelos fatos que encaminham ao encobrimento de qualquer verdade, agindo, por meio de seus versos, sobre a atemporalidade. Não que o que eles escreveram não tenha nada a ver com seu tempo: tem sempre relação – no entanto, é uma relação indireta, subjetiva, muitas vezes inconsciente. Eles quebraram a história porque sua contemporaneidade está justamente no fato de não se deixarem dominar por seu tempo: que escrevem para algo além, que seu papel é justamente reinterpretar os dados prévios à sua existência, entender que as trevas que os cercavam (instituindo sua retórica inadequada) não são infinitas como seus poemas. Parece estar justamente no fato de perceberem o que é sempre atual, mesmo que a história que aconteça ao seu redor não o seja – isto é, ainda está baseada em ideais que se adequam apenas aos interesses de um discurso vazio.
Eles visualizam o outro lado da modernidade, que não é o efêmero: eles realmente incorporam a história – ou a revolucionam –, porque sabem estar excluídos dela e só por meio disso tem condições de realmente defini-la. Trata-se de uma tentativa de revelar o único elemento inédito nos discursos desgastados: de que a história não pode ser tratada pelo viés messiânico quando este é guiado pelo discurso avesso de sua realização. E de que somente uma “voz” à frente de todos não significa a superioridade dessa figura, e sim a mediocridade dos que acabam por erguê-la. Tentar se desviar desse caminho depende da consciência de que não há quebra na história que não seja sugerida pelos próprios elementos que ela já traz, e que pretensamente renová-la – sobretudo com as mesmas figuras, que já cometeram sérios erros anteriormente e continuam apegadas ao poder, protegidas por um líder equivocado – é um despiste para esquecer de que muitas vezes ela não deu certo e partiu para um tempo de trevas. Esses poetas russos souberam, por um instante, acender uma fagulha, mínima que seja, tentando iluminar o que deu errado para que não aconteça novamente.
Por André Dick
A poeta Anna Akhmátova integrava, como Mandelstam, este por um curto período de tempo, o grupo batizado de “acmeísta”. Certa vez, Mandelstam gritou, exaltado, diante de pessoas descontentes com seu discurso, numa reunião do jornal Litetaturnaia Gazeta”: “Sou contemporâneo de Akhmátova!”. A palavra “contemporâneo” representava, para os poetas russos, estar ao lado de alguém: ser contemporâneo no plano das ideias, sobretudo.
Para Nina Guerra e Filipe Guerra, a “nova corrente”, da qual Mandelstam e Akhmátova fizeram parte, tornou-se uma superação lógica do simbolismo: “Voltar à terra: da eternidade para a história, da feminidade eterna para o princípio masculino, dos espíritos incorpóreos, sejam anjos ou diabos, para a força animal, do além para o cotidiano, da ideia para as manifestações concretas”. No entanto, o acmeísmo não é uma negação do simbolismo, mas utiliza suas ideias sob um ponto de vista relacionado à realidade desses poetas, como os poetas simbolistas tinham também a sua. Akhmátova é uma das poetas mais modernas que a Rússia já teve e, além de haver traduções de poemas seus em Poesia da recusa, ganhou, no Brasil, um volume da Coleção L&PM Pocket, com traduções de Lauro Machado Coelho, o mesmo que escreveu sua biografia Anna, a voz da Rússia – Vida e obra de Anna Akhmátova e é responsável pelo volume Poesia soviética, em que há traduções dela, ambos editados pela Argol.
Ela está entre as poetas que permaneceram na Rússia mesmo com a intervenção stalinista. O comissário de cultura de Stalin, Zhdânov, a condenou, por realizar uma poesia distante do povo – talvez porque configura, sobretudo, as ruínas da modernidade. No entanto, a poeta mesmo disse, em “Sobre mim em resumo”: “Nunca deixei de escrever versos. Neles, para mim – a minha ligação com o tempo, com a vida nova do meu povo”.
Quando os escrevia, vivia os ritmos que soavam na história heroica do meu país”, pois, como escreve Krystyna Pomorska, Akhmátova “reduz as expressões metafóricas aos seus significados literais básicos”, tendo como fontes de experiência “encontros e partidas de amantes”. Vejamos uma tradução (de Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev, de Poemas, publicado pela Relógio d’Água):
Tudo saqueado, traído, vendido
Da morte negra a asa passava veloz,
Tudo pela tristeza faminta roído,
Por que ficou iluminado para nós?
De dia o sopro a cerejeira em exalações
Do bosque inusitado em baixo da cidade,
De noite brilha com as novas constelações
Dos céus de Julho a profunda claridade, –
E tão próximo o milagroso vem
Ao sujo casario desmoronado...
Não é conhecido por ninguém, por ninguém,
Mas pelo século para nós despejado.
O mesmo se diz de Marina Tsvetáieva, filha de um professor da Universidade de Moscou e de uma musicista e poeta, que chegou a ter um romance com Mandelstam, admirava Akhmátova (sentimento que, no entanto, não era correspondido) e acabou tendo um fim trágico (suicidou-se), depois de o marido ter sido fuzilado e a filha colocada num campo de concentração, logo após a Rússia ser invadida pelos nazistas. O pathos de Marina é investigado por Décio Pignatari, no seu livro de traduções dedicados à poeta russa, e por Aurora Fornoni Bernardini em Indícios flutuantes, com versos, e Vivendo sob o fogo, com trechos de diários, memórias e correspondências da poeta russa.
Para Aurora Bernardini, em toda a obra de Tsvetáieva, “há diálogos e ‘transmutações’ com poetas e escritores de várias épocas e várias partes, e com certeza haverá mudanças de tom, mas é o amor desesperado por seu mundo russo da infância um dos traços mais característicos de sua poesia”. Marina viveu uma vida amorosa e polêmica: conforme Pignatari, em seu “primeiro ano praguense, teve ligações várias com editores, poetas e críticos, epistolares ou coloridas, a longa, média e curta distância...”. Tendo como tema o amor, havia uma grandiosidade em Tsvetáieva, sobretudo na escolha dos temas e das imagens. Como afirma Décio Pignatari: “É uma alma sem alma, que acredita-mas-não-crê em Deus e que só possui uma medida para o seu infinito – o fenômeno poético que obrigará a ser sinônimo de amor – e este é o seu embate romântico existencial”. O embate romântico sempre suscita o fim do sujeito. Vejamos, por exemplo, o poema “Encontro”, na tradução de Décio Pignatari:
Vou chegar tarde ao encontro marcado,
cabelos já grisalhos. Sim, suponho
ter-me agarrado à primavera, enquanto
via você subir de sonho em sonho.
Vou carregar esse amargo – por largo
tempo e muitos lugares, de penedos
a praças (como Ofélia – sem lamúrias)
por corpos e almas – e sem medos!
A mim, digo que viva, à terra, gire
com sangue no bosque e sangue corrente,
mesmo que o rosto de Ofélia me espie
por entre as relvas de cada corrente,
e, amorosa sedenta, encha a boca
de lodo – oh, haste de luz no metal!
Não chega este amor à altura do seu
amor... Então, enterre-me no céu!
Ou o poema “Não terás minha alma viva”, na tradução de Aurora Bernardini:
Não terás minha alma viva,
Não se dará como uma pluma.
Vida, tu rimas muito com: fingida –
O ouvido do cantor não erra uma!
Não a inventou um nativo,
Deixe que vá a outras paragens!
Vida, tu rimas muito com: ungida –
Vida: brida! Destino: desatino!
Cruéis são os anéis nos tornozelos
No osso penetra a ferrugem!
Vida: facas sobre as quais dança
Quem ama.
– Cansei de esperar a faca!
Tvsetáieva também vendo sendo muito traduzida por Veronica Filíppovna, como vemos nessa tradução publicada na revista literária Desenredos, do ciclo Versos a Block:
Teu nome – um pássaro na mão,
Teu nome – uma pedra de gelo na língua.
Um único movimento nos lábios.
Teu nome – cinco letras.
Uma bola lançada no estio,
Um guizo de prata na boca.
Uma pedra, esquecida no balneário
Silencioso, soluça como teu nome.
Na leveza da noite, um estalido
Faz teu nome ressoar alto e
Escorrendo, harmonicamente,
Destina-se para nós.
Teu nome – ah, não posso! –
Teu nome – um beijo nos olhos,
No frio terno a idade inerte
Teu nome – um beijo na neve.
Um gole na fonte fria e azul
Em teu nome – o sono é profundo.
Com um estilo absolutamente moderno – em que os versos sofrem elipses das mais variadas, os sons das palavras se inter-relacionam, as imagens parecem se mover na busca pelo ritmo –, Tsvetáieva dialoga com muitos poetas de peso, sobretudo porque revela uma dor íntima, subjetiva, elevada à condição de quase um personagem. Sua defesa de Maiakóvski, que, inclusive, ignorava sua poesia – quando ele, depois de se assassinar, era criticado por diversos intelectuais – e de Akhmátova – que não apreciava seus poemas –, é um exemplo prático da rebeldia de Tsvetáieva.
No caso desses poetas – assim como de outros, a exemplo de Iessiênin e Maiakóvski –, o interessante é que a revolução é a recusa à revolução retórica e mesmo à revolução destacada pelo movimento concreto, em que o poeta produziria para as massas. Esses poetas acabam por evitar esse “mundo” no qual veem suas ideias serem contrariadas pelos fatos que encaminham ao encobrimento de qualquer verdade, agindo, por meio de seus versos, sobre a atemporalidade. Não que o que eles escreveram não tenha nada a ver com seu tempo: tem sempre relação – no entanto, é uma relação indireta, subjetiva, muitas vezes inconsciente. Eles quebraram a história porque sua contemporaneidade está justamente no fato de não se deixarem dominar por seu tempo: que escrevem para algo além, que seu papel é justamente reinterpretar os dados prévios à sua existência, entender que as trevas que os cercavam (instituindo sua retórica inadequada) não são infinitas como seus poemas. Parece estar justamente no fato de perceberem o que é sempre atual, mesmo que a história que aconteça ao seu redor não o seja – isto é, ainda está baseada em ideais que se adequam apenas aos interesses de um discurso vazio.
Eles visualizam o outro lado da modernidade, que não é o efêmero: eles realmente incorporam a história – ou a revolucionam –, porque sabem estar excluídos dela e só por meio disso tem condições de realmente defini-la. Trata-se de uma tentativa de revelar o único elemento inédito nos discursos desgastados: de que a história não pode ser tratada pelo viés messiânico quando este é guiado pelo discurso avesso de sua realização. E de que somente uma “voz” à frente de todos não significa a superioridade dessa figura, e sim a mediocridade dos que acabam por erguê-la. Tentar se desviar desse caminho depende da consciência de que não há quebra na história que não seja sugerida pelos próprios elementos que ela já traz, e que pretensamente renová-la – sobretudo com as mesmas figuras, que já cometeram sérios erros anteriormente e continuam apegadas ao poder, protegidas por um líder equivocado – é um despiste para esquecer de que muitas vezes ela não deu certo e partiu para um tempo de trevas. Esses poetas russos souberam, por um instante, acender uma fagulha, mínima que seja, tentando iluminar o que deu errado para que não aconteça novamente.
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quinta-feira, 16 de junho de 2011
As “flores da fala” de James Joyce e Haroldo de Campos (I)
Por André Dick
A prosa romanesca parece ser dividida entre antes e depois da passagem pela literatura do escritor irlandês James Joyce. Seus livros mais experimentais, Ulysses, Giacomo Joyce e Finnegans wake, deram margens aos mais variados trabalhos com a linguagem e, como se fossem núcleos experimentais, influenciar muitas obras posteriores, com base na experimentação, na ruptura entre as barreiras da prosa e da poesia, num jogo constante de movimentação de linguagens, apostando no plurilinguismo.
Na América Latina, os experimentalismos de Joyce parecem ter batido à porta de algumas obras de forma específica. Embora tenhamos, no Brasil, exemplos textuais de prosa experimental, em que há exemplos de plurilinguismo, tais como Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, e Macunaíma, de Mário de Andrade, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa é, certamente, o parâmetro de uma transformação do romance como gênero e centro plurilinguístico, em que seu personagem Riobaldo representava, sobretudo, o fluxo do discurso sertanejo.
Pode-se lembrar, aqui, as palavras do poeta paranaense Paulo Leminski (1944-1989), que disse numa entrevista sua à revista Quem, em 1978, publicada no livro Paulo Leminski: “À figura de Joyce corresponde no Brasil a figura de Guimarães Rosa”. Para ele, o Grande sertão é a “a maior obra, em palavras, que já surgiu no Brasil”. Seria, dentro da prosa regionalista, a sua “culminância cósmica e máxima”. Uma obra que se coloca na linha de Finnegans wake, cujos trechos foram traduzidos por Augusto e Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake.
Em seu artigo “Pontos – periferia – poesia concreta” (1955), Augusto de Campos explica que Mallarmé “é inventor de um processo de composição poética cuja significação se nos afigura comparável ao valor da ‘série’, introduzida por Schoenberg, purificada por Webern, e, através da filtração deste, legada aos jovens músicos eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen”. Augusto define esse processo com a palavra “estrutura”, “tendo em vista uma entidade onde o todo é mais que a soma das partes ou algo qualitativamente diverso de cada componente”. Essa ideia de estrutura está ligada à Psicologia Gestalt, criada no final do século XIX. No mesmo artigo, Augusto encontra exemplos de poetas, além de Mallarmé, que utilizaram bem o conceito de estrutura. Os mais destacados são Pound, por meio do ideograma, e Joyce, que, para Augusto, encontram-se justamente no campo da estrutura. Augusto também compara, no artigo, a Psicologia Gestalt com a música serial, que também necessita da apreensão total da obra para apreciação de qualquer uma de suas partes. Augusto encerra o artigo, afirmando que as “subdivisões prismáticas da Ideia” de Mallarmé, juntamente com “o método ideogrâmico de Pound, a apresentação verbivocovisual de Joyce e a mímica verbal de Cummings convergem para uma nova teoria de forma [...] onde noções tradicionais, como princípio-meio-fim, silogismo, verso, tendem a desaparecer e ser superadas por uma organização poético-gestaltiana, poético-musical, poético-ideogrâmica da estrutura”, que configuraria a poesia concreta.
Como também lembra Augusto de Campos, no ensaio “Outras palavras sobre Finnegans wake”, Ezra Pound não se interessou por toda a obra de Joyce: “Quando James Joyce enviou a Ezra Pound, em 1926, alguns dos primeiros fragmentos da ‘Obra em Progresso’ que viria a dar no Finnegans wake – o enigmático e inclassificável ‘romance’ publicado em 1939 –, a reação do autor dos Cantos, a cujo entusiasmo e dedicação se devera a publicação de Ulisses, foi fria e evasiva: ‘Tudo o que eu posso fazer é lhe desejar toda espécie de sucesso. [...] Sem dúvida há almas pacientes, que irão vasculhar qualquer coisa à procura do possível trocadilho... mas... não tendo nenhuma ideia do propósito do autor, se é divertir ou instruir... em suma’”.
No entanto, essa obra de Joyce trazia todo o pesadelo onírico em que se constitui a história - seja da pretensa realidade, seja da literatura, apresentando um manancial de fluxos de pensamento, alternâncias verbais, palavras inventadas, enriquecendo tanto a prosa quanto - talvez ainda mais - a poesia. Por isso, equilibrando os conceitos de sonho e pesadelo, Jacques Lacan disse, em seu curso O sinthoma, sobre Finnegans wake:
O incrível é que Joyce – que tinha o maior desprezo pela história, com efeito fútil, qualificada por ele de pesadelo, e que se caracteriza por despejar sobre nós as palavras grandiosas que nos fazem tanto mal – só conseguiu encontrar esta solução: escrever Finnegans wake, ou seja, um sonho que, como todo sonho, ainda é um pesadelo, ainda que seja um pesadelo moderado. Com a diferença, diz ele, e é assim que é feito esse Finnegans wake, de que o sonhador não é nenhum personagem particular desse livro, mas o próprio sonho.
Nesse sentido, Lacan fala sobre os comentadores de Joyce:
Quando lemos o texto de Joyce, e sobretudo seus comentadores, o que impressiona é o número de enigmas que ele contém. Não somente são abundantes, como podemos dizer que Joyce joga com isso, sabendo muito bem que haveria joycianos durante duzentos ou trezentos anos. Os joycianos são pessoas que se ocupam unicamente da resolução de enigmas. No mínimo, isso leva a perguntar por que Joyce os colocou ali. Naturalmente, eles encontram sempre uma razão: ele colocou isso ali porque, logo depois, há uma outra palavra etc.
A Poesia Concreta se preocupava com a resolução de enigmas, mas isso não rotula seu estudo como filológico ou algo do tipo. O que importa a Haroldo e Augusto é, sobretudo, a poesia – e esta, claro, abrange todas “as flores da fala”, seja num idioma estranho, onírico, seja num idiomaterno, daí a importância de Joyce, delineada por eles, no Brasil. Como escreve Haroldo, “Que o trabalho realizado até aqui valha, pois, agora que JOYCE REVÉM, para que outros ponham mãos à obra. Ou quem sabe nós mesmos. Para reglosar outra vez o sanscredo esperançoso do irlandês babelizante em nosso portocálido e brasilírico idiomaterno”.
Os poetas concretos tiveram a mesma recepção a Joyce que músicos de vanguarda do século XX. Durante anos, principalmente depois de se tornar um “poeta literário”, Cage foi uma espécie de artista multimídia, continuando a produzir peças, entre as quais HPSCHD (1969), Musicircus (1971) – em que gravou, inclusive, poemas de e. e. cummings, que não havia dado importância às suas experiências quando levadas a ele pelo próprio Cage –, Bird cage (1973) e trechos de textos de Finnegans wake, a obra mais complexa de Joyce, no projeto Roaratorio, an Irish Circus on Finnegans wake (1981), o que Augusto de Campos também faria, com mais modéstia, em seu CD Poesia é risco, em 1995, show multimídia. Em Roaratorio, Cage é atraído pelo embate entre Joyce e um certo orientalismo.
O acaso mallarmeano, ligado à não intenção, o I Ching, a mistura de ideias ocidentais às orientais fazem com que a literatura de Cage, mesclada à sua música, rivalize em inovação com as obras de James Joyce, Finnegans wake e Ulisses, mais com o primeiro, alguns dos textos do primeiro inclusive tendo sido musicados por Cage. O Futurismo, uma das alavancas da work in progress de Joyce, foi também uma das referências de Cage, tal como o Dadaísmo – Duchamp, seu amigo, da mesma geração, é um verdadeiro representante das colagens dadaístas no século XX.
Os sentidos do acaso encontraria interesse, no século XX, consequentemente, pelo abandono dos instrumentos musicais mais comuns, dedicando-se a uma coleta de sons em novas técnicas de produção de sons, também em Pierre Boulez, que foi aluno de Webern, continuador das experiências de Schoenberg. Boulez sonhou musicar Un coup de dés e dizia estar fazendo, em sua obra, o que Mallarmé apenas sonhara na literatura. O outro, John Cage, foi aluno da classe de Schoenberg e, durante sua trajetória, também quis, em certo momento, musicar o poema de Mallarmé, apesar de se deter em Joyce, uma aproximação já efetuada antes, segundo Augusto de Campos, pelo crítico norte-americano Robert Greer Cohn:
O denominador comum, segundo Robert Greer Cohn, para quem aquele poema de Mallarmé tem mais pontos de contacto com Finnegans wake do que com qualquer outra criação literária, seria o esquema: unidade, dualismo, multiplicidade, e novamente unidade. Expressão evidente [...] dessa estrutura circular comum a ambas as obras é o fato de a frase inicial de Finnegans wake ser a continuação da última, assim como as derradeiras palavras do poema mallarmeano são também as primeiras: ‘Toute pensée émet un coup de dés’.
Pierre Boulez escreve, em seu artigo “Pesquisas atuais” (1954), que “nem Mallarmé – de Un coup de dés – nem Joyce têm equivalentes na música de sua época. É possível, ou é absurdo, tomar assim pontos de comparação? (Se pensamos naquilo de que eles gostaram: Wagner para um; para outro a ópera italiana ou os cantos irlandeses...)”. Joyce é um autor raríssimo - como Mallarmé -, o que o torna ainda mais propenso a análises e influências.
No Brasil, um dos exemplos máximos de influência joyciana, sobretudo de Finnegans wake, é Galáxias, de Haroldo de Campos, capaz de unir também o ímpeto de Mallarmé em sua estrutura, a começar por sua epígrafe.
Por André Dick
A prosa romanesca parece ser dividida entre antes e depois da passagem pela literatura do escritor irlandês James Joyce. Seus livros mais experimentais, Ulysses, Giacomo Joyce e Finnegans wake, deram margens aos mais variados trabalhos com a linguagem e, como se fossem núcleos experimentais, influenciar muitas obras posteriores, com base na experimentação, na ruptura entre as barreiras da prosa e da poesia, num jogo constante de movimentação de linguagens, apostando no plurilinguismo.
Na América Latina, os experimentalismos de Joyce parecem ter batido à porta de algumas obras de forma específica. Embora tenhamos, no Brasil, exemplos textuais de prosa experimental, em que há exemplos de plurilinguismo, tais como Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, e Macunaíma, de Mário de Andrade, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa é, certamente, o parâmetro de uma transformação do romance como gênero e centro plurilinguístico, em que seu personagem Riobaldo representava, sobretudo, o fluxo do discurso sertanejo.
Pode-se lembrar, aqui, as palavras do poeta paranaense Paulo Leminski (1944-1989), que disse numa entrevista sua à revista Quem, em 1978, publicada no livro Paulo Leminski: “À figura de Joyce corresponde no Brasil a figura de Guimarães Rosa”. Para ele, o Grande sertão é a “a maior obra, em palavras, que já surgiu no Brasil”. Seria, dentro da prosa regionalista, a sua “culminância cósmica e máxima”. Uma obra que se coloca na linha de Finnegans wake, cujos trechos foram traduzidos por Augusto e Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake.
Em seu artigo “Pontos – periferia – poesia concreta” (1955), Augusto de Campos explica que Mallarmé “é inventor de um processo de composição poética cuja significação se nos afigura comparável ao valor da ‘série’, introduzida por Schoenberg, purificada por Webern, e, através da filtração deste, legada aos jovens músicos eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen”. Augusto define esse processo com a palavra “estrutura”, “tendo em vista uma entidade onde o todo é mais que a soma das partes ou algo qualitativamente diverso de cada componente”. Essa ideia de estrutura está ligada à Psicologia Gestalt, criada no final do século XIX. No mesmo artigo, Augusto encontra exemplos de poetas, além de Mallarmé, que utilizaram bem o conceito de estrutura. Os mais destacados são Pound, por meio do ideograma, e Joyce, que, para Augusto, encontram-se justamente no campo da estrutura. Augusto também compara, no artigo, a Psicologia Gestalt com a música serial, que também necessita da apreensão total da obra para apreciação de qualquer uma de suas partes. Augusto encerra o artigo, afirmando que as “subdivisões prismáticas da Ideia” de Mallarmé, juntamente com “o método ideogrâmico de Pound, a apresentação verbivocovisual de Joyce e a mímica verbal de Cummings convergem para uma nova teoria de forma [...] onde noções tradicionais, como princípio-meio-fim, silogismo, verso, tendem a desaparecer e ser superadas por uma organização poético-gestaltiana, poético-musical, poético-ideogrâmica da estrutura”, que configuraria a poesia concreta.
Como também lembra Augusto de Campos, no ensaio “Outras palavras sobre Finnegans wake”, Ezra Pound não se interessou por toda a obra de Joyce: “Quando James Joyce enviou a Ezra Pound, em 1926, alguns dos primeiros fragmentos da ‘Obra em Progresso’ que viria a dar no Finnegans wake – o enigmático e inclassificável ‘romance’ publicado em 1939 –, a reação do autor dos Cantos, a cujo entusiasmo e dedicação se devera a publicação de Ulisses, foi fria e evasiva: ‘Tudo o que eu posso fazer é lhe desejar toda espécie de sucesso. [...] Sem dúvida há almas pacientes, que irão vasculhar qualquer coisa à procura do possível trocadilho... mas... não tendo nenhuma ideia do propósito do autor, se é divertir ou instruir... em suma’”.
No entanto, essa obra de Joyce trazia todo o pesadelo onírico em que se constitui a história - seja da pretensa realidade, seja da literatura, apresentando um manancial de fluxos de pensamento, alternâncias verbais, palavras inventadas, enriquecendo tanto a prosa quanto - talvez ainda mais - a poesia. Por isso, equilibrando os conceitos de sonho e pesadelo, Jacques Lacan disse, em seu curso O sinthoma, sobre Finnegans wake:
O incrível é que Joyce – que tinha o maior desprezo pela história, com efeito fútil, qualificada por ele de pesadelo, e que se caracteriza por despejar sobre nós as palavras grandiosas que nos fazem tanto mal – só conseguiu encontrar esta solução: escrever Finnegans wake, ou seja, um sonho que, como todo sonho, ainda é um pesadelo, ainda que seja um pesadelo moderado. Com a diferença, diz ele, e é assim que é feito esse Finnegans wake, de que o sonhador não é nenhum personagem particular desse livro, mas o próprio sonho.
Nesse sentido, Lacan fala sobre os comentadores de Joyce:
Quando lemos o texto de Joyce, e sobretudo seus comentadores, o que impressiona é o número de enigmas que ele contém. Não somente são abundantes, como podemos dizer que Joyce joga com isso, sabendo muito bem que haveria joycianos durante duzentos ou trezentos anos. Os joycianos são pessoas que se ocupam unicamente da resolução de enigmas. No mínimo, isso leva a perguntar por que Joyce os colocou ali. Naturalmente, eles encontram sempre uma razão: ele colocou isso ali porque, logo depois, há uma outra palavra etc.
A Poesia Concreta se preocupava com a resolução de enigmas, mas isso não rotula seu estudo como filológico ou algo do tipo. O que importa a Haroldo e Augusto é, sobretudo, a poesia – e esta, claro, abrange todas “as flores da fala”, seja num idioma estranho, onírico, seja num idiomaterno, daí a importância de Joyce, delineada por eles, no Brasil. Como escreve Haroldo, “Que o trabalho realizado até aqui valha, pois, agora que JOYCE REVÉM, para que outros ponham mãos à obra. Ou quem sabe nós mesmos. Para reglosar outra vez o sanscredo esperançoso do irlandês babelizante em nosso portocálido e brasilírico idiomaterno”.
Os poetas concretos tiveram a mesma recepção a Joyce que músicos de vanguarda do século XX. Durante anos, principalmente depois de se tornar um “poeta literário”, Cage foi uma espécie de artista multimídia, continuando a produzir peças, entre as quais HPSCHD (1969), Musicircus (1971) – em que gravou, inclusive, poemas de e. e. cummings, que não havia dado importância às suas experiências quando levadas a ele pelo próprio Cage –, Bird cage (1973) e trechos de textos de Finnegans wake, a obra mais complexa de Joyce, no projeto Roaratorio, an Irish Circus on Finnegans wake (1981), o que Augusto de Campos também faria, com mais modéstia, em seu CD Poesia é risco, em 1995, show multimídia. Em Roaratorio, Cage é atraído pelo embate entre Joyce e um certo orientalismo.
O acaso mallarmeano, ligado à não intenção, o I Ching, a mistura de ideias ocidentais às orientais fazem com que a literatura de Cage, mesclada à sua música, rivalize em inovação com as obras de James Joyce, Finnegans wake e Ulisses, mais com o primeiro, alguns dos textos do primeiro inclusive tendo sido musicados por Cage. O Futurismo, uma das alavancas da work in progress de Joyce, foi também uma das referências de Cage, tal como o Dadaísmo – Duchamp, seu amigo, da mesma geração, é um verdadeiro representante das colagens dadaístas no século XX.
Os sentidos do acaso encontraria interesse, no século XX, consequentemente, pelo abandono dos instrumentos musicais mais comuns, dedicando-se a uma coleta de sons em novas técnicas de produção de sons, também em Pierre Boulez, que foi aluno de Webern, continuador das experiências de Schoenberg. Boulez sonhou musicar Un coup de dés e dizia estar fazendo, em sua obra, o que Mallarmé apenas sonhara na literatura. O outro, John Cage, foi aluno da classe de Schoenberg e, durante sua trajetória, também quis, em certo momento, musicar o poema de Mallarmé, apesar de se deter em Joyce, uma aproximação já efetuada antes, segundo Augusto de Campos, pelo crítico norte-americano Robert Greer Cohn:
O denominador comum, segundo Robert Greer Cohn, para quem aquele poema de Mallarmé tem mais pontos de contacto com Finnegans wake do que com qualquer outra criação literária, seria o esquema: unidade, dualismo, multiplicidade, e novamente unidade. Expressão evidente [...] dessa estrutura circular comum a ambas as obras é o fato de a frase inicial de Finnegans wake ser a continuação da última, assim como as derradeiras palavras do poema mallarmeano são também as primeiras: ‘Toute pensée émet un coup de dés’.
Pierre Boulez escreve, em seu artigo “Pesquisas atuais” (1954), que “nem Mallarmé – de Un coup de dés – nem Joyce têm equivalentes na música de sua época. É possível, ou é absurdo, tomar assim pontos de comparação? (Se pensamos naquilo de que eles gostaram: Wagner para um; para outro a ópera italiana ou os cantos irlandeses...)”. Joyce é um autor raríssimo - como Mallarmé -, o que o torna ainda mais propenso a análises e influências.
No Brasil, um dos exemplos máximos de influência joyciana, sobretudo de Finnegans wake, é Galáxias, de Haroldo de Campos, capaz de unir também o ímpeto de Mallarmé em sua estrutura, a começar por sua epígrafe.
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As “flores da fala” de James Joyce e Haroldo de Campos (II)
Por André Dick
“Esta sua prosa é o demo!”, disse Guimarães Rosa a Haroldo quando este lhe mostrou trechos dela. “Prosa minada”, registrou Andrés Sánchez Robayna. “Fosforescências semânticas entre o branco do papel e o negro das letras”, conforme Octavio Paz. Redundante, superficial, monótona: também há muitos adjetivos negativos dados ao livro Galáxias desde seu lançamento. O principal detalhe é que suas páginas foram lidas por poucos, mesmo porque sua primeira edição, da Ex Libris, era bastante rara. Obra feita entre 1963 e 1976 (mas só lançada em 1984), dividida em 50 “rapsódias” ou “cantos” – como falava Haroldo –, e cuja primeira seleção maior de fragmentos foi publicada em Xadrez de estrelas (1976), ela é composta por um discurso quase ininterrupto, sem pontuação e com letra sempre minúscula, interrompido apenas pelo branco do verso de cada página, em diálogo contínuo com Joyce e Mallarmé. Esse discurso é aberto a qualquer ideia – de origem poética ou não – que se encaixe na experimentação pretendida. A obra aberta (que Haroldo via como “neobarroca”), na realidade, desestabiliza a linguagem corrente e rompe limites, sendo assim muito difícil de ser aceita. Mesmo Leminski, admirador da obra, apontou que em Galáxias caberia tudo. Por isso, Galáxias é um exemplo de livro que não pode ser entendido à luz da sociologia e da política, de teorias sobre como o subdesenvolvimento econômico interfere no plano literário – e isso, de certo modo, evidencia sua inutilidade. Trata-se de uma escritura (a escrita literária, para Barthes), não importando se de vanguarda, mas de um tempo, não tão distante, mas já nostálgico, em que se experimentava por vontade de recriar e não para somente reciclar ou se passar por vanguardista.
Mais do que partir do ponto de origem da escritura (a obra se abre com a sonoridade de “e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem”, que faria jus aos experimentos bíblicos de Haroldo), Galáxias se diferencia por trabalhar com o precário, o indefinido. Por isso aponta para o vazio. A ele se dirige Haroldo, através de um fluxo barroco de vocábulos, expressões raras ou reles (o plurilinguismo de que falava Bakhtin, e é próprio de Joyce, está todo nele), caracterizando uma polifonia poética capaz de dar a noção exata do que ele queria como projeto de vida: Galáxias representa a convergência entre a literatura que se diz brasileira com a literatura universal. O trabalho criativo de Haroldo é universal, como era seu trabalho teórico-crítico (A operação do texto, O arco-íris branco, Metalinguagem & outras metas, O sequestro do Barroco na Formação da literatura brasileira, para citar alguns de seus livros mais importantes nessa área) e de tradução (que abrange autores como Dante e Mallarmé). Daí ser necessário que sejam conhecidos Xadrez de estrelas, Signantia: quasi coelum, A educação dos cinco sentidos, Crisantempo, Entremilênios e este Galáxias. O público, sobretudo o mais jovem, poderá conhecer melhor, assim, um autor capaz de mesclar erudição com uma paixão incomum – cada vez mais rara – pela poesia.
As leituras de parte da vida de Haroldo estão inseridas em Galáxias, razão pela qual essa obra também pode ser vista como uma cartografia de suas ausências. Haroldo ilumina e, ao mesmo tempo, elimina passagens de sua vida e de leituras através da escrita; onde ele se mostra presente, possivelmente é onde esteja mais ausente. A lembrança de Haroldo, num conhecido ensaio seu, de Goethe vendo o arco-íris branco como um sinal de uma nova puberdade, além de caracterizá-lo como fenômeno meteorológico, movimenta a escritura que se desprende de Galáxias. Trata-se de uma mesma revitalização: Goethe buscava descanso em Frankfurt, enquanto Haroldo vai tentar desaparecer junto com as palavras no papel em branco. O fluxo (de linguagem, de pensamento, de vida) de não pertence nem à mão que o escreve nem à representação da realidade que reflete essas experiências. Pertence, sim, ao sentido de dispersão do Texto (com letra maiúscula, como Barthes empregava), sua convergência para a morte literária, na qual a subjetividade do sujeito se mescla a leituras, sempre textuais, que ele realizou vida afora. Leituras, por exemplo, de Bashô (“o senhor bananeira bashô para quem uma peônia florindo podia ser um gato de prata ou um gato de ouro uma peônia florindo na luz”, em “poeta sem lira”); de Hölderlin (“aquela fala tinta de vermelho do senhor hölderlin”, em “neckarstrasse”); de João Cabral (“a febre é tanta e fezes que a escrita agora se reescreve”, em “hier liegt”); de Ezra Pound (“o velho poeta via ainda ou queria ver os punti luminosi mas sabia não saber nada”, em “mármore ístrio”); de Gertrude Stein (“neste fio de linguagem há um fio de linguagem que uma rosa é uma rosa como uma prosa é uma prosa há um fio de viagem há um vis de mensagem e nesta margem da margem há pelo menos margem”, em cadvrescrito”); de Homero (“a primeira tinta da aurora agora o rosício roçar rosa da dedirrósea agora aurora”, em “multidudinous”), além das referências à literatura greco-latina em geral espalhadas em muitos fragmentos e ao Le livre inacabado de Mallarmé. O sujeito, sendo o próprio fluxo da linguagem, transforma-se em constelação de outras galáxias, imagem que possivelmente agradasse a Haroldo, que foi um estudioso de Macunaíma, personagem cujo fim, aliás, é estelar.
A pergunta que o possível (porque indefinido) autor, nesse caminho, se faz constantemente é: “O que é o Texto?”. Nesse sentido, Barthes dizia: “O Texto não é a coexistência de sentidos, mas passagem, travessia: não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação” (O rumor da língua). Haroldo persegue a resposta por páginas e páginas, sem conseguir encontrá-la, pois ela inexiste. Nesse sentido, sua obra revitaliza uma escritura essencialmente dialógica, voltada para aquela enunciação ininterrupta de imagens e situações, vividas real ou literariamente, solucionadas nos espaços da linguagem e do imaginário. Haroldo tem consciência sobre o que escreve, pois foi um aluno (tardio) de Stéphane Mallarmé. Foi ele quem traduziu, no final dos anos 1950, a obra Un coup de dés para Um lance de dados (para “lance” se reproduzir em “lançado”). A epígrafe mallarmeana de Galáxias (“La fiction affleurera et se dissipera, vite, d’après la mobilité de l’écrit”) mostra isso muito bem: a vida se movimenta também na “mobilidade da escrita”. Como tem essa consciência, Haroldo sabe que a modernidade é um projeto que destrói para renovar. Lembre-se que é um dos poemas mais importantes da modernidade, revolucionário a ponto de influenciar toda a crítica literária moderna. Nele, como observa Octavio Paz, Mallarmé ainda é simbolista, mas também já é moderno. Além disso, o poema mallarmeano também caracteriza a dissolução de territórios: através de sua linguagem ainda simbolista, já há um salto para o universo da música, apenas imaginado por Baudelaire em As flores do mal, mas não consumado.
Em Galáxias, Haroldo faz algumas dissoluções. Não me parece importante decidir sobre se a obra é prosa ou poesia, talvez a primeira pergunta que surja quando o leitor pegar o volume – e é a pergunta mais repetida desde sua publicação. Paulo Leminski escreveu em “Prosa estelar” (Anseios crípticos 2) que entre “a força centrífuga da prosa e a centrípeta da poesia”, o livro de Haroldo “representa uma síntese, uma espécie de momento de repouso entre dois ímpetos que seguem em direções opostas”, mas afirma que nele “a prosa parece sair ganhando por pouco”, sob influência de Joyce, a prosa que Guimarães Rosa viu como “do demo” (muito sob influência de seu Grande sertão: veredas). Já Haroldo propôs que se trata de “um poema longo, uma gesta em escritura”, em certa entrevista recolhida em Metalinguagem & outras metas. O propósito de Haroldo talvez seja mais o de anular os gêneros, por meio da rarefação de sentidos, da desautomatização linguística e sintática, ele que foi um estudioso das teorias de Jakobson, Kristeva e Barthes. Um objeto híbrido, em transformação, indeterminado, pois o espaço do qual trata é sem fronteiras. A viagem se passa dentro da escritura, e dentro da escritura pode acontecer tudo – até mesmo nada acontecer (“como quem escreve um livro como quem faz uma viagem”). E, sob tal aspecto, sua aproximação é com o Texto digamos neutro, o grau zero da escritura que Barthes propunha. Galáxias não é nem uma coisa nem outra. Ela é tudo (poesia, prosa, relato, diário, carta) ao mesmo tempo.
Haroldo no entanto se aplica como poucos na busca dessa sutileza musical, para transformar as palavras em música, como tentou, e conseguiu Caetano Veloso, em Circuladô, por meio da peça “Circuladô de fulô”, de Galáxias (é importante lembrar que, ao visitar Gil e Caetano no exílio, Haroldo lia a eles trechos de Galáxias), num dos grandes momento de invenção da MPB. Daí a redundância proposital: o seu sentido é invisível, transcende o olhar do leitor, que se perde no acaso legível da escritura: abstrato como a música. O texto de Haroldo, como uma peça ao mesmo tempo harmônica e caótica, recorre a si mesmo diversas vezes. Não por acaso (imagem cara a Mallarmé), ele escreve no texto “ora, direis, ouvir galáxias”, texto que havia sido elaborado para acompanhar o CD Isto não é um livro de viagem: “[...] cada fragmento isolado introduz sua ‘diferença’, mas contém em si mesmo, como em linha d’água, a imagem do livro inteiro [...]”. Não há dúvida de que Haroldo, aqui, relembra as “subdivisões prismáticas da Ideia”, do prefácio de Um lance de dados. A própria apresentação gráfica de Galáxias, sem parágrafos e pontuação, representa que há uma linha fina tênue, musical, conduzida do início ao fim. Ele não rompe seu texto (apesar do branco do verso de cada página), como não é possível resguardar o branco da página da ausência e da morte. Nesse sentido, ele adota, como bem percebeu João Alexandre Barbosa, uma “circularidade”. Seu ímpeto verbal também é feito de saques, do povo “inventalínguas”, convertidos imediatamente em linguagem: “a vida é também matéria de vida de lida de lido matéria delida deslida treslida tresvivida nessa via de vida que passa pelo livrovida livro ivro de vida bebida batida mexida” (em “neckarstrasse”). Essa conversão em linguagem tem um sentido visual muito apurado, tanto que Galáxias rendeu também um filme de Júlio Bressane, Galáxia albina.
Galáxias dialoga com toda a obra de Haroldo. Para notar isso, o leitor pode recorrer a um texto de Andrés Sánchez Robayna aproveitado em Signantia: quasi coelum, onde o autor avalia que Galáxias dialogaria com todas as obras de Haroldo, sobretudo a partir de o â mago do ô mega (1955-56). Em Lacunae, seleção de poemas de 1971-1972, representa bem a página como galáxia: palavras espalhadas, como estrelas, sobre o vazio da página. Esse traço apenas se amplia em Signantia: quasi coelum, como se o leitor avistasse a obra de um caleidoscópio. Embora se utilize da alegoria de uma jornada dantesca (como em Finismundo há uma alegoria da jornada de Ulisses, dialogando tanto com Homero como com Joyce), Signantia trata implicitamente da própria essência da escritura, ligando sua seleção à composição de Galáxias. Esta criação seminal de Haroldo também encontrará eco em sua tradução de Blanco, o poema mais ousado de Octavio Paz, e suas recriações bíblicas (A cena da origem é o exemplo mais direto, também por sua concepção gráfica) nos anos derradeiros de vida. E vai se proliferar nos poemas de A educação dos cinco sentidos, de Crisantempo e nos poemas mais recentes do livro póstumo, Entremilênios.
Se havia alguma obsessão na obra de Haroldo, é que ele traduziu a morte para a página em branco da maneira mais completa, pois deixava se apagar, fazia com que sua origem proposta – a da escritura – fosse também a origem do Outro, da palavra que cerca a linguagem. Não havia “fora do texto”: havia “dentro do texto”. Ele se deixava falar apenas em sua linguagem. Ele, porém, não era um autor que privilegiava a fala em detrimento da escrita (característica contra a qual seu amigo e admirador Jacques Derrida se manifestava). Haroldo se anulava em sua voz pessoal, tanto inscrita quanto distante do papel.
O que ele escreve, fala, se faz independente da sua figura humana, pelo espaço da escrita ou da música. Como Kafka, Haroldo sabia que era apenas literatura e não poderia nem queria ser outra coisa, ou seja, um “personagem” da melhor espécie, pois não apenas fictício. Em meio a essa busca, seu grande feito foi – e Galáxias demonstra isso – aproximar o rigor da síntese com a multiplicidade do barroco e do épico. Diminuiu a distância entre extremos, trabalhando com a solidão da página em branco, da ausência de qualquer exagero. Quando lê trechos de seu livro, Haroldo transforma-se em pó do cosmos (para utilizar a imagem de um poema de seu irmão Augusto), tornando-se, como a própria literatura, invisível. E quando lemos Galáxias sabemos que nós também podemos desaparecer junto com a sua textualidade. O êxito da obra talvez esteja em mostrar que o pai do texto – como queriam os estruturalistas – não está ali, mas os leitores podem procurá-lo e encontrar ainda um ponto de azul entre as estrelas, na linha de um espaço curvo. Ali ele deve permanecer esperando a chegada de outras galáxias, pois “o branco é uma linguagem que se estrutura como a linguagem seus signos acenam com senhas e desígnios são sinas estes signos que se desenham num fluxo contínuo”.
Por André Dick
“Esta sua prosa é o demo!”, disse Guimarães Rosa a Haroldo quando este lhe mostrou trechos dela. “Prosa minada”, registrou Andrés Sánchez Robayna. “Fosforescências semânticas entre o branco do papel e o negro das letras”, conforme Octavio Paz. Redundante, superficial, monótona: também há muitos adjetivos negativos dados ao livro Galáxias desde seu lançamento. O principal detalhe é que suas páginas foram lidas por poucos, mesmo porque sua primeira edição, da Ex Libris, era bastante rara. Obra feita entre 1963 e 1976 (mas só lançada em 1984), dividida em 50 “rapsódias” ou “cantos” – como falava Haroldo –, e cuja primeira seleção maior de fragmentos foi publicada em Xadrez de estrelas (1976), ela é composta por um discurso quase ininterrupto, sem pontuação e com letra sempre minúscula, interrompido apenas pelo branco do verso de cada página, em diálogo contínuo com Joyce e Mallarmé. Esse discurso é aberto a qualquer ideia – de origem poética ou não – que se encaixe na experimentação pretendida. A obra aberta (que Haroldo via como “neobarroca”), na realidade, desestabiliza a linguagem corrente e rompe limites, sendo assim muito difícil de ser aceita. Mesmo Leminski, admirador da obra, apontou que em Galáxias caberia tudo. Por isso, Galáxias é um exemplo de livro que não pode ser entendido à luz da sociologia e da política, de teorias sobre como o subdesenvolvimento econômico interfere no plano literário – e isso, de certo modo, evidencia sua inutilidade. Trata-se de uma escritura (a escrita literária, para Barthes), não importando se de vanguarda, mas de um tempo, não tão distante, mas já nostálgico, em que se experimentava por vontade de recriar e não para somente reciclar ou se passar por vanguardista.
Mais do que partir do ponto de origem da escritura (a obra se abre com a sonoridade de “e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem”, que faria jus aos experimentos bíblicos de Haroldo), Galáxias se diferencia por trabalhar com o precário, o indefinido. Por isso aponta para o vazio. A ele se dirige Haroldo, através de um fluxo barroco de vocábulos, expressões raras ou reles (o plurilinguismo de que falava Bakhtin, e é próprio de Joyce, está todo nele), caracterizando uma polifonia poética capaz de dar a noção exata do que ele queria como projeto de vida: Galáxias representa a convergência entre a literatura que se diz brasileira com a literatura universal. O trabalho criativo de Haroldo é universal, como era seu trabalho teórico-crítico (A operação do texto, O arco-íris branco, Metalinguagem & outras metas, O sequestro do Barroco na Formação da literatura brasileira, para citar alguns de seus livros mais importantes nessa área) e de tradução (que abrange autores como Dante e Mallarmé). Daí ser necessário que sejam conhecidos Xadrez de estrelas, Signantia: quasi coelum, A educação dos cinco sentidos, Crisantempo, Entremilênios e este Galáxias. O público, sobretudo o mais jovem, poderá conhecer melhor, assim, um autor capaz de mesclar erudição com uma paixão incomum – cada vez mais rara – pela poesia.
As leituras de parte da vida de Haroldo estão inseridas em Galáxias, razão pela qual essa obra também pode ser vista como uma cartografia de suas ausências. Haroldo ilumina e, ao mesmo tempo, elimina passagens de sua vida e de leituras através da escrita; onde ele se mostra presente, possivelmente é onde esteja mais ausente. A lembrança de Haroldo, num conhecido ensaio seu, de Goethe vendo o arco-íris branco como um sinal de uma nova puberdade, além de caracterizá-lo como fenômeno meteorológico, movimenta a escritura que se desprende de Galáxias. Trata-se de uma mesma revitalização: Goethe buscava descanso em Frankfurt, enquanto Haroldo vai tentar desaparecer junto com as palavras no papel em branco. O fluxo (de linguagem, de pensamento, de vida) de não pertence nem à mão que o escreve nem à representação da realidade que reflete essas experiências. Pertence, sim, ao sentido de dispersão do Texto (com letra maiúscula, como Barthes empregava), sua convergência para a morte literária, na qual a subjetividade do sujeito se mescla a leituras, sempre textuais, que ele realizou vida afora. Leituras, por exemplo, de Bashô (“o senhor bananeira bashô para quem uma peônia florindo podia ser um gato de prata ou um gato de ouro uma peônia florindo na luz”, em “poeta sem lira”); de Hölderlin (“aquela fala tinta de vermelho do senhor hölderlin”, em “neckarstrasse”); de João Cabral (“a febre é tanta e fezes que a escrita agora se reescreve”, em “hier liegt”); de Ezra Pound (“o velho poeta via ainda ou queria ver os punti luminosi mas sabia não saber nada”, em “mármore ístrio”); de Gertrude Stein (“neste fio de linguagem há um fio de linguagem que uma rosa é uma rosa como uma prosa é uma prosa há um fio de viagem há um vis de mensagem e nesta margem da margem há pelo menos margem”, em cadvrescrito”); de Homero (“a primeira tinta da aurora agora o rosício roçar rosa da dedirrósea agora aurora”, em “multidudinous”), além das referências à literatura greco-latina em geral espalhadas em muitos fragmentos e ao Le livre inacabado de Mallarmé. O sujeito, sendo o próprio fluxo da linguagem, transforma-se em constelação de outras galáxias, imagem que possivelmente agradasse a Haroldo, que foi um estudioso de Macunaíma, personagem cujo fim, aliás, é estelar.
A pergunta que o possível (porque indefinido) autor, nesse caminho, se faz constantemente é: “O que é o Texto?”. Nesse sentido, Barthes dizia: “O Texto não é a coexistência de sentidos, mas passagem, travessia: não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação” (O rumor da língua). Haroldo persegue a resposta por páginas e páginas, sem conseguir encontrá-la, pois ela inexiste. Nesse sentido, sua obra revitaliza uma escritura essencialmente dialógica, voltada para aquela enunciação ininterrupta de imagens e situações, vividas real ou literariamente, solucionadas nos espaços da linguagem e do imaginário. Haroldo tem consciência sobre o que escreve, pois foi um aluno (tardio) de Stéphane Mallarmé. Foi ele quem traduziu, no final dos anos 1950, a obra Un coup de dés para Um lance de dados (para “lance” se reproduzir em “lançado”). A epígrafe mallarmeana de Galáxias (“La fiction affleurera et se dissipera, vite, d’après la mobilité de l’écrit”) mostra isso muito bem: a vida se movimenta também na “mobilidade da escrita”. Como tem essa consciência, Haroldo sabe que a modernidade é um projeto que destrói para renovar. Lembre-se que é um dos poemas mais importantes da modernidade, revolucionário a ponto de influenciar toda a crítica literária moderna. Nele, como observa Octavio Paz, Mallarmé ainda é simbolista, mas também já é moderno. Além disso, o poema mallarmeano também caracteriza a dissolução de territórios: através de sua linguagem ainda simbolista, já há um salto para o universo da música, apenas imaginado por Baudelaire em As flores do mal, mas não consumado.
Em Galáxias, Haroldo faz algumas dissoluções. Não me parece importante decidir sobre se a obra é prosa ou poesia, talvez a primeira pergunta que surja quando o leitor pegar o volume – e é a pergunta mais repetida desde sua publicação. Paulo Leminski escreveu em “Prosa estelar” (Anseios crípticos 2) que entre “a força centrífuga da prosa e a centrípeta da poesia”, o livro de Haroldo “representa uma síntese, uma espécie de momento de repouso entre dois ímpetos que seguem em direções opostas”, mas afirma que nele “a prosa parece sair ganhando por pouco”, sob influência de Joyce, a prosa que Guimarães Rosa viu como “do demo” (muito sob influência de seu Grande sertão: veredas). Já Haroldo propôs que se trata de “um poema longo, uma gesta em escritura”, em certa entrevista recolhida em Metalinguagem & outras metas. O propósito de Haroldo talvez seja mais o de anular os gêneros, por meio da rarefação de sentidos, da desautomatização linguística e sintática, ele que foi um estudioso das teorias de Jakobson, Kristeva e Barthes. Um objeto híbrido, em transformação, indeterminado, pois o espaço do qual trata é sem fronteiras. A viagem se passa dentro da escritura, e dentro da escritura pode acontecer tudo – até mesmo nada acontecer (“como quem escreve um livro como quem faz uma viagem”). E, sob tal aspecto, sua aproximação é com o Texto digamos neutro, o grau zero da escritura que Barthes propunha. Galáxias não é nem uma coisa nem outra. Ela é tudo (poesia, prosa, relato, diário, carta) ao mesmo tempo.
Haroldo no entanto se aplica como poucos na busca dessa sutileza musical, para transformar as palavras em música, como tentou, e conseguiu Caetano Veloso, em Circuladô, por meio da peça “Circuladô de fulô”, de Galáxias (é importante lembrar que, ao visitar Gil e Caetano no exílio, Haroldo lia a eles trechos de Galáxias), num dos grandes momento de invenção da MPB. Daí a redundância proposital: o seu sentido é invisível, transcende o olhar do leitor, que se perde no acaso legível da escritura: abstrato como a música. O texto de Haroldo, como uma peça ao mesmo tempo harmônica e caótica, recorre a si mesmo diversas vezes. Não por acaso (imagem cara a Mallarmé), ele escreve no texto “ora, direis, ouvir galáxias”, texto que havia sido elaborado para acompanhar o CD Isto não é um livro de viagem: “[...] cada fragmento isolado introduz sua ‘diferença’, mas contém em si mesmo, como em linha d’água, a imagem do livro inteiro [...]”. Não há dúvida de que Haroldo, aqui, relembra as “subdivisões prismáticas da Ideia”, do prefácio de Um lance de dados. A própria apresentação gráfica de Galáxias, sem parágrafos e pontuação, representa que há uma linha fina tênue, musical, conduzida do início ao fim. Ele não rompe seu texto (apesar do branco do verso de cada página), como não é possível resguardar o branco da página da ausência e da morte. Nesse sentido, ele adota, como bem percebeu João Alexandre Barbosa, uma “circularidade”. Seu ímpeto verbal também é feito de saques, do povo “inventalínguas”, convertidos imediatamente em linguagem: “a vida é também matéria de vida de lida de lido matéria delida deslida treslida tresvivida nessa via de vida que passa pelo livrovida livro ivro de vida bebida batida mexida” (em “neckarstrasse”). Essa conversão em linguagem tem um sentido visual muito apurado, tanto que Galáxias rendeu também um filme de Júlio Bressane, Galáxia albina.
Galáxias dialoga com toda a obra de Haroldo. Para notar isso, o leitor pode recorrer a um texto de Andrés Sánchez Robayna aproveitado em Signantia: quasi coelum, onde o autor avalia que Galáxias dialogaria com todas as obras de Haroldo, sobretudo a partir de o â mago do ô mega (1955-56). Em Lacunae, seleção de poemas de 1971-1972, representa bem a página como galáxia: palavras espalhadas, como estrelas, sobre o vazio da página. Esse traço apenas se amplia em Signantia: quasi coelum, como se o leitor avistasse a obra de um caleidoscópio. Embora se utilize da alegoria de uma jornada dantesca (como em Finismundo há uma alegoria da jornada de Ulisses, dialogando tanto com Homero como com Joyce), Signantia trata implicitamente da própria essência da escritura, ligando sua seleção à composição de Galáxias. Esta criação seminal de Haroldo também encontrará eco em sua tradução de Blanco, o poema mais ousado de Octavio Paz, e suas recriações bíblicas (A cena da origem é o exemplo mais direto, também por sua concepção gráfica) nos anos derradeiros de vida. E vai se proliferar nos poemas de A educação dos cinco sentidos, de Crisantempo e nos poemas mais recentes do livro póstumo, Entremilênios.
Se havia alguma obsessão na obra de Haroldo, é que ele traduziu a morte para a página em branco da maneira mais completa, pois deixava se apagar, fazia com que sua origem proposta – a da escritura – fosse também a origem do Outro, da palavra que cerca a linguagem. Não havia “fora do texto”: havia “dentro do texto”. Ele se deixava falar apenas em sua linguagem. Ele, porém, não era um autor que privilegiava a fala em detrimento da escrita (característica contra a qual seu amigo e admirador Jacques Derrida se manifestava). Haroldo se anulava em sua voz pessoal, tanto inscrita quanto distante do papel.
O que ele escreve, fala, se faz independente da sua figura humana, pelo espaço da escrita ou da música. Como Kafka, Haroldo sabia que era apenas literatura e não poderia nem queria ser outra coisa, ou seja, um “personagem” da melhor espécie, pois não apenas fictício. Em meio a essa busca, seu grande feito foi – e Galáxias demonstra isso – aproximar o rigor da síntese com a multiplicidade do barroco e do épico. Diminuiu a distância entre extremos, trabalhando com a solidão da página em branco, da ausência de qualquer exagero. Quando lê trechos de seu livro, Haroldo transforma-se em pó do cosmos (para utilizar a imagem de um poema de seu irmão Augusto), tornando-se, como a própria literatura, invisível. E quando lemos Galáxias sabemos que nós também podemos desaparecer junto com a sua textualidade. O êxito da obra talvez esteja em mostrar que o pai do texto – como queriam os estruturalistas – não está ali, mas os leitores podem procurá-lo e encontrar ainda um ponto de azul entre as estrelas, na linha de um espaço curvo. Ali ele deve permanecer esperando a chegada de outras galáxias, pois “o branco é uma linguagem que se estrutura como a linguagem seus signos acenam com senhas e desígnios são sinas estes signos que se desenham num fluxo contínuo”.
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