Um concreto ainda mais à margem
Por André Dick
Deve-se lembrar da obra de José Lino Grünewald (1931-2000), o poeta concreto mais bem-humorado, autor de peças antológicas como “serviço público”, “sufixar” e “vai e vem”, reunidas em Escreviver, reeditado pela Perspectiva, de textos críticos sobre o movimento e sobre literatura (incluídos em O grau zero do escreviver), e de traduções, sobretudo as dos Cantos poundianos e de poemas mallarmeanos.
A edição da Perspectiva, com os poemas da primeira edição (da Nova Fronteira), uma seleção de inéditos e textos sobre a obra do poeta, mostra que Grünewald, apesar de ter produzido pouco, depois dos anos 1960, é um poeta realmente indispensável, para compreender tanto o movimento da poesia concreta quanto uma certa poesia mais estrutural e, para alguns, excessivamente culta. O seu livro é uma perfeita fusão entre certas ideias de vanguarda e um estilo clássico. Ou seja, Grünewald transita pelo concretismo com a mesma desenvoltura que transita pelo soneto.
Os seus poemas têm um aspecto mais bem-humorado do que os outros concretos. Peças como “sempre ceder”, “durassolado”, "apertar o cinto", e “frase” mostram bem isso. Assim como o antológico “vai e vem”:
Na fase partipante da poesia concreta, José Lino escreve poemas como "dono", "carne leite pão" e "parlamentarismo". Além disso, ele utiliza o espaço da página de maneira efetivamente atraente, mesmo sem utilizar uma tipografia mais variada, como aquela utilizada por Augusto sobretudo a partir de seus Stelegramas, nos anos 1970. Ou seja, há, em José Lino, uma simplicidade e, ao mesmo tempo, uma maior ortodoxia (numa opinião respeitável, Augusto afirma que ele é “o mais ortodoxo dos concretos”, quando essa “acusação” costuma ser feita ao seu próprio trabalho, e realmente os poemas de José Lino aparentam seguir quase fielmente a teoria da poesia concreta, mais até do que os do trio Noigandres). No entanto, não me parece ser ortodoxa a postura de José Lino. Até por ter sido crítico de cinema, sua poesia lembra muito cortes de filmes, lances quase cinematográficos, além de quando, é claro, utiliza uma tipografia mais concreta.
Se a geração de 45 tentou realizar sonetos, José Lino vem mostrar que é possível fazer poemas em duas quadras e dois tercetos com rara desenvoltura – e modernidade (vejamos os dois tercetos de "os vossos olhos mia gentil senhora"):
pouco seria o que por vós me peno
se pouco o canto fosse e breve a dor.
volver de pálpebras, um leve aceno
os gestos tênues num suave amor
e seu silente olhar me não feria
nessa colheita, serena em lua fria.
Não raro, seus sonetos lembram peças clássicas: bem arquitetadas e bem tramadas, sem nenhum excesso, mas também não simplistas. Despojamento é a palavra-chave para definir essa poética de Grünewald que mostra um arrojo verbal difícil de ser esquecido. Ao final, seu poema "cartascantos", constituído por lembranças e fragmentos de cartas, buscando diálogo com os cantos poundianos, é uma das tentativas mais bem-sucedidas de poema longo metalinguístico já realizadas recentemente no Brasil. Lembrando em alguns poemas a “Rosa d’os amigos”, de Pignatari, e o “Ad augustum per angusta”, de Augusto, José Lino, no entanto, emprega um bom humor mais visível – sem cair numa poesia coloquial –, misturando versos livres com versos rimados com rara desenvoltura.
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terça-feira, 5 de outubro de 2010
sábado, 25 de setembro de 2010
Uma exposição erthográfica
Por Nicole Cristofalo e André Dick
Está acontecendo, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, até 24 de outubro, a exposição "Erthos Albino de Souza. Poesia: do dáctilo ao dígito", com curadoria de Augusto de Campos e André Vallias.
O cartaz/fôlder que acompanha a exposição é uma obra de arte feita em homenagem ao artista mineiro, nascido em Ubá, mas que viveu na Bahia, como funcionário da Petrobras, e se caracterizou, já nos anos 1970, em fazer poemas no computador, sendo uma espécie de precursor nesse sentido ao lado de Waldemar Cordeiro. Na sua única entrevista, concedida a Carlos Ávila, e que se encontra hoje publicada no volume Poesia pensada (7Letras) com o título "O engenheiro da poesia", ele diz: "a minha primeira experiência em poesia de computador, na realidade, não foi com computador. Foi com o poema 'Vogaláxia', do Pedro Xisto. O Xisto fez um projeto de poema, com permutação das vogais e repetição. E ele me pediu para executar, porque eu era engenheiro e entendia disso".
Além disso, Erthos ajudou a compor a bibliografia de ReVisão de Sousândrade (autor que o aproximou dos concretos), edição que também financiou, a encontrar inéditos de Kilkerry e no estabelecimento da bibliografia de Pagu. No entanto, raramente publicou seus próprios poemas, preocupando-se, como afirma Augusto, primeiramente com a obra dos outros."Eu sempre gostei muito desse negócio de bibliografia, essa é uma mania que eu tenho, antiga", diz ele, na mesma entrevista a Ávila. Conforme Augusto, Erthos "ficava feliz com o êxito dos projetos e das obras dos poetas em quem acreditava e que financiava com a maior e mais desinteressada generosidade".
Trata-se de uma referência citada por Leminski e poetas dos anos 1970. Numa de suas cartas a Régis Bonvicino, publicada em Envie meu dicionário, datada de 10 de janeiro de 1980, Leminski escreve: "passagens compradas / dia 16, 1: 30 / jantando em salvador / ficando em ap erthográfico / [...] / na bahia vamos tar com erthos: cartas ou fone para, ok?". Erthos, não por acaso, editou a revista Código com Antonio Risério (com doze números até 1989), e publicou em Polem, Artéria, Muda e Atlas.
Diante das imagens que temos da exposição de Erthos, vemos que Augusto e André buscaram a síntese de sua obra, repleta de poemas feitos com números. Temos como referência histórica da obra de Erthos o "Le tombeau de Mallarmé" (1972), publicado no volume Mallarmé, com traduções de Augusto e Haroldo de Campos e de Décio Pignatari. Na nota introdutória ao livro, lê-se: "O poeta e engenheiro Erthos Albino de Souza contribuiu para esta edição com as variações gráficas executadas por meio do computador, que integram seu poema 'Le tombeau de Mallarmé'. Erthos elaborou um programa sobre distribuição de temperaturas, cujo resultado visual evoca um 'túmulo' ou uma 'estela'. Alternando apenas um fator, os gráficos se tornam diferentes, permitindo uma enorme variedade de soluções".
No cartaz da exposição,surge uma Briggite Bardot de números. Colagens, sobretudo artesanais, que remetem ao futurismo e ao dadaísmo. Um de seus principais poemas, destacados no cartaz/fôlder é "Crisálida" que, depois de uma metamorfose, transforma-se em "Borboleta", que remete ao "metamorfose/metaformose" de Leminski.
Segundo Augusto, "CRISÁLIDA e outros dactiloscritos foram reunidos em um projeto de livro, intitulado DACTILOGRAMAS 1967 (13 poemas), dos quais foram aquele poema e o primeiro da série, DE TANTO VER TRIUNFAR AS NULIDADES… os únicos, que eu saiba, publicados. Tenho uma cópia original desse livro, inédito, que marca o início da criação poética de Erthos. Tributário, certamente, da poesia concreta da linha ortodoxa, mas com realizações distintas, e demonstrando muita habilidade de composição. CRISÁLIDA é um dos mais bem realizados, e resolve de modo inteligente e sutil a metamorfose do vocábulo em BORBOLETA, que tem o mesmo número de letras, mas configura uma impossibilia posta sob o desafio dos doublets de Lewis Carroll, nos quais, há que se passar de um termo ao outro mudando só uma letra de cada vez e sempre usando vocábulos vernaculizados".
Há poemas em forma de cartão, remetendo ao Le Livre mallarmeano, mas com uma precariedade que se autossustenta sem precisar da "missa poética" pretendida pelo poeta simbolista:
Em outro poema, "Cygnus", faz uma síntese entre "signo" e "cisne", fundindo tradição e pesquisa - uma leitura que perfaz o caminho de Baudelaire a Mallarmé, como vemos na análise de João Alexandre Barbosa sobre poemas desses autores em que figura o "cisne":
E também apresenta cartões perfurados de computador (como a versão de "Cidade city cité" publicada por Augusto na Caixa preta). Diz Erthos, na entrevista a Ávila: "Eu traduzi o poema para um outro código, usando a perfuração do cartão, quer dizer, a codificação. Porque cada letra do alfabeto é codificada com aqueles furinhos. Então a combinação de dois, três furos corresponde a uma letra. Eu achei uma das coisas mais interessantes que fiz, apesar de ser baseada no poema dele". Erthos consegue captar o lado noturno da metrópole, e as perfurações lembram janelas de apartamentos, assim como as estrelas de "O pulsar" remetem ao espaço sideral.
Ao mesmo tempo, em seus trabalhos, percebe-se um diálogo bastante apurado também com as obras de Pedro Xisto e José Lino Grünewald. Augusto divide a obra de Erthos em três fases: "Dactilogramas" (1967), "Poesignos" e "Musa speculatrix". Além disso, Erthos utilizava o computador para contagens vocabulares - como as que se referem à obra de Kilkerry, utilizadas por Augusto no estudo que fez sobre o poeta baiano, em ReVisão de Kilkerry.
A julgar pelo texto poético de Augusto, para o cartaz-fôlder, Erthos é um enigma. Mas um enigma feito, sobretudo, de atenção com o trabalho alheio, tal a importância que dava ao diálogo com outros autores."Jamais conheci um intelectual generoso como ele", afirma Augusto, fazendo dessa exposição construída com André Vallias uma referência para a redescoberta de mais um autor essencial para entender a trajetória da poesia brasileira.
Por Nicole Cristofalo e André Dick
Está acontecendo, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, até 24 de outubro, a exposição "Erthos Albino de Souza. Poesia: do dáctilo ao dígito", com curadoria de Augusto de Campos e André Vallias.
O cartaz/fôlder que acompanha a exposição é uma obra de arte feita em homenagem ao artista mineiro, nascido em Ubá, mas que viveu na Bahia, como funcionário da Petrobras, e se caracterizou, já nos anos 1970, em fazer poemas no computador, sendo uma espécie de precursor nesse sentido ao lado de Waldemar Cordeiro. Na sua única entrevista, concedida a Carlos Ávila, e que se encontra hoje publicada no volume Poesia pensada (7Letras) com o título "O engenheiro da poesia", ele diz: "a minha primeira experiência em poesia de computador, na realidade, não foi com computador. Foi com o poema 'Vogaláxia', do Pedro Xisto. O Xisto fez um projeto de poema, com permutação das vogais e repetição. E ele me pediu para executar, porque eu era engenheiro e entendia disso".
Além disso, Erthos ajudou a compor a bibliografia de ReVisão de Sousândrade (autor que o aproximou dos concretos), edição que também financiou, a encontrar inéditos de Kilkerry e no estabelecimento da bibliografia de Pagu. No entanto, raramente publicou seus próprios poemas, preocupando-se, como afirma Augusto, primeiramente com a obra dos outros."Eu sempre gostei muito desse negócio de bibliografia, essa é uma mania que eu tenho, antiga", diz ele, na mesma entrevista a Ávila. Conforme Augusto, Erthos "ficava feliz com o êxito dos projetos e das obras dos poetas em quem acreditava e que financiava com a maior e mais desinteressada generosidade".
Trata-se de uma referência citada por Leminski e poetas dos anos 1970. Numa de suas cartas a Régis Bonvicino, publicada em Envie meu dicionário, datada de 10 de janeiro de 1980, Leminski escreve: "passagens compradas / dia 16, 1: 30 / jantando em salvador / ficando em ap erthográfico / [...] / na bahia vamos tar com erthos: cartas ou fone para, ok?". Erthos, não por acaso, editou a revista Código com Antonio Risério (com doze números até 1989), e publicou em Polem, Artéria, Muda e Atlas.
Diante das imagens que temos da exposição de Erthos, vemos que Augusto e André buscaram a síntese de sua obra, repleta de poemas feitos com números. Temos como referência histórica da obra de Erthos o "Le tombeau de Mallarmé" (1972), publicado no volume Mallarmé, com traduções de Augusto e Haroldo de Campos e de Décio Pignatari. Na nota introdutória ao livro, lê-se: "O poeta e engenheiro Erthos Albino de Souza contribuiu para esta edição com as variações gráficas executadas por meio do computador, que integram seu poema 'Le tombeau de Mallarmé'. Erthos elaborou um programa sobre distribuição de temperaturas, cujo resultado visual evoca um 'túmulo' ou uma 'estela'. Alternando apenas um fator, os gráficos se tornam diferentes, permitindo uma enorme variedade de soluções".
No cartaz da exposição,surge uma Briggite Bardot de números. Colagens, sobretudo artesanais, que remetem ao futurismo e ao dadaísmo. Um de seus principais poemas, destacados no cartaz/fôlder é "Crisálida" que, depois de uma metamorfose, transforma-se em "Borboleta", que remete ao "metamorfose/metaformose" de Leminski.
Segundo Augusto, "CRISÁLIDA e outros dactiloscritos foram reunidos em um projeto de livro, intitulado DACTILOGRAMAS 1967 (13 poemas), dos quais foram aquele poema e o primeiro da série, DE TANTO VER TRIUNFAR AS NULIDADES… os únicos, que eu saiba, publicados. Tenho uma cópia original desse livro, inédito, que marca o início da criação poética de Erthos. Tributário, certamente, da poesia concreta da linha ortodoxa, mas com realizações distintas, e demonstrando muita habilidade de composição. CRISÁLIDA é um dos mais bem realizados, e resolve de modo inteligente e sutil a metamorfose do vocábulo em BORBOLETA, que tem o mesmo número de letras, mas configura uma impossibilia posta sob o desafio dos doublets de Lewis Carroll, nos quais, há que se passar de um termo ao outro mudando só uma letra de cada vez e sempre usando vocábulos vernaculizados".
Há poemas em forma de cartão, remetendo ao Le Livre mallarmeano, mas com uma precariedade que se autossustenta sem precisar da "missa poética" pretendida pelo poeta simbolista:
Em outro poema, "Cygnus", faz uma síntese entre "signo" e "cisne", fundindo tradição e pesquisa - uma leitura que perfaz o caminho de Baudelaire a Mallarmé, como vemos na análise de João Alexandre Barbosa sobre poemas desses autores em que figura o "cisne":
E também apresenta cartões perfurados de computador (como a versão de "Cidade city cité" publicada por Augusto na Caixa preta). Diz Erthos, na entrevista a Ávila: "Eu traduzi o poema para um outro código, usando a perfuração do cartão, quer dizer, a codificação. Porque cada letra do alfabeto é codificada com aqueles furinhos. Então a combinação de dois, três furos corresponde a uma letra. Eu achei uma das coisas mais interessantes que fiz, apesar de ser baseada no poema dele". Erthos consegue captar o lado noturno da metrópole, e as perfurações lembram janelas de apartamentos, assim como as estrelas de "O pulsar" remetem ao espaço sideral.
Ao mesmo tempo, em seus trabalhos, percebe-se um diálogo bastante apurado também com as obras de Pedro Xisto e José Lino Grünewald. Augusto divide a obra de Erthos em três fases: "Dactilogramas" (1967), "Poesignos" e "Musa speculatrix". Além disso, Erthos utilizava o computador para contagens vocabulares - como as que se referem à obra de Kilkerry, utilizadas por Augusto no estudo que fez sobre o poeta baiano, em ReVisão de Kilkerry.
A julgar pelo texto poético de Augusto, para o cartaz-fôlder, Erthos é um enigma. Mas um enigma feito, sobretudo, de atenção com o trabalho alheio, tal a importância que dava ao diálogo com outros autores."Jamais conheci um intelectual generoso como ele", afirma Augusto, fazendo dessa exposição construída com André Vallias uma referência para a redescoberta de mais um autor essencial para entender a trajetória da poesia brasileira.
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