quarta-feira, 26 de outubro de 2011

John Cage: o Nada e o silêncio (I)

Por André Dick

Na introdução do livro Silence, John Cage escreveu: “Por mais de vinte anos tenho escrito artigos e dado palestras. Muitas delas têm sido incomum na forma… porque tenho empregado nelas meios de compor semelhante ao meu meio de compor no campo da música… Conforme olho para trás, me dou conta de que uma preocupação com a poesia se encontrava em mim desde cedo. Na faculdade de Pomona, em resposta a perguntas sobre os poetas do Lago, escrevi à maneira de Gertrude Stein, irrelevante e repetitivo”. É este estilo “irrelevante e repetitivo” uma das marcas de John Cage na literatura. O que o torna bastante relevante e um avesso da repetição.


Como conta o próprio Cage: “Um editor de Londres enviou um formulário em branco para que eu preenchesse, então eu seria incluído na pesquisa de poetas contemporâneos da língua inglesa. Eu joguei fora. Semanas depois chegou um pedido urgente, mais um formulário duplicado. ‘Por favor retorne com uma foto lustrosa.’ Obedeci. Julho, agosto, setembro. O editor, então, enviou uma carta dizendo que tinha sido decidido que não sou um poeta significativo: Se eu fosse, qualquer um também o seria”. É uma história curiosa, pois Cage costuma ainda não ser visto como poeta. Diz Octavio Paz, no seu ensaio ”e. e. cummings: recordação”, de 1965, ou seja, posterior à publicação de Silence, o primeiro livro de Cage: “Não sei o que pensar de sua música (pensa-se a música?); em compensação, sei que é um dos poucos poetas, apesar de não escrever poemas, que existem hoje nos Estados Unidos”.
Cage nasceu em Los Angeles, em 1912, e foi, talvez, na segunda metade do século XX, embora pareça paradoxal, pois é conhecido como músico, um dos poetas norte-americanos mais importantes. Começou a compor partituras bem antes de se envolver com as palavras. Aluno de Henry Cowell e Arnold Schoenberg, recebia aulas de graça deste último, com a condição de que dedicasse sua vida à música.
Avesso à harmonia, Cage teve esse defeito apontado por Schoenberg, que enxergava nisso um muro em qualquer carreira musical. No entanto, contrariando o mestre, Cage afirmou que devotaria sua vida a bater com a cabeça nesse muro. Foi também um dos responsáveis por trazer à cultura norte-americana o aprendizado oriental do I Ching e, com ele, a música indeterminada, além da consciência do acaso (o silêncio), fazendo com que suas peças musicais tivessem bastante repercussão. Como a peça 4’33 (1952), em que, nesse tempo exato, a plateia fazia os sons, durante o “silêncio” da apresentação. “O que se busca”, segundo Cage, “não é a indeterminância ou determinância e sim não intenção. Ela é a base do silêncio, que está cheio de sons que simplesmente ocorrem. A única diferença entre aqueles sons e os sons que você provoca é a intenção. O mais importante é a ausência de intenção e a aceitação do que acontece”. Para ele, o “acaso” é “um mecanismo que “não tem nada a ver com meus sentimentos e meus pensamentos, uma operação que permite libertar-me do meu ego. O ego é uma barreira para a experiência. O acaso permite uma situação que não expressa o ‘eu’, mas que abre o ‘eu’ para coisas que estão fora dele”. Nesse sentido, a crítica literária norte-americana Marjorie Perloff, em Poetics of indeterminacy, percebe que a poesia, desde Rimbaud, busca o acaso, a não intenção, o que ressoa em Gertrude Stein, em Pound, em William Carlos Williams e Samuel Beckett, entre outros, até chegar à poesia de John Cage.


Silence foi a primeira obra (musical literária/literária musical) de John Cage. A obra resulta de suas experiências existenciais, um mosaico anárquico musical, partindo sempre da música para o pensamento poético. Há a “Conferência sobre o nada” e a “Conferência sobre algo”, poemas sobre preparação de piano, textos em prosa reproduzindo diálogos do cotidiano de Cage: contatos, amizades etc.
Sua única obra traduzida (por Rogério Duprat e revisada por Augusto de Campos) no Brasil, sucessora de Silence, De segunda a um ano (A year from monday) reúne alguns dos caminhos mais percorridos por Cage em sua trajetória poética. Nele, há o “Diário: como melhorar o mundo (você só tornará as coisas piores)”, que se estende pelo livro e por várias obras suas e reúne ideias colhidas ao acaso, sobre política, música, sociedade, entre outras coisas, como fazia Thoreau, ídolo de Cage, em A desobediência civil.
Há também o “Diário: seminário de música de Emma Lake”, em que Cage, ao comentar sobre suas peregrinações como compositor, ao mesmo tempo tece comentários sobre diversos tipos de comida em diversas regiões dos Estados Unidos; “Papo nº 1”, uma série de colagens de versos, palavras, pensamentos, colhidos, também, ao acaso total, com forte influência do Dadaísmo; o capítulo “Como passar, chutar, cair e correr”, com uma série de histórias de pessoas que cercavam a vida de Cage, principalmente, é claro, músicos (Christian Wolff, David Tudor, Stockhausen), explicando seus métodos de elaboração para as peças, realizadas sobre operações de acaso.
O livro também apresenta homenagens para outros artistas: “26 proposições sobre Duchamp” (já mencionado); “Miró na terceira pessoa: 8 proposições” (sobre o pintor espanhol), “Nam June Paik: um diário” (sobre o videomaker) etc. No campo específico da música, há muitos momentos: em “Daqui, para onde vamos?”, que aborda os sentidos dos sons; “Duas proposições sobre Ives” (poema com um trabalho tipográfico singular e as palavras interrompidas por sinais, como uma peça musical pelas notas); a “Conferência na Juilliard”, conferência em forma de poema, dividida em quatro seções. Apresentada na Juilliard School of Music, a convite dos alunos dela, Cage lembra, em De segunda a um ano, que, enquanto falava o texto, seu amigo David Tudor tocava algumas peças de piano, composições de Morton Feldman, Christian Wolff e dele próprio. Eram usados cronômetros para coordenar o programa, feito por Tudor sem que Cage o conhecesse previamente.


A primeira seção iniciou aos 0’0’’, a segunda aos 12’10’’, a terceira aos 24’20’’ e a quarta aos 36’30’’. Cage lembra que escreveu o texto em quatro colunas “para facilitar uma leitura rítmica e a medição dos silêncio”, lendo “cada linha da página da esquerda para a direita, não de cima pra baixo, seguindo as colunas”, para “evitar o resultado artificial que poderia decorrer do fato de seguir rigorosamente a posição das palavras na páginas”.
Em De segunda a um ano, por sua vez, também começa a publicar seu longo poema “Diários (Como melhorar o mundo, você só tornará as coisas piores)”, que se estende por algumas obras. Para Augusto de Campos, é o primeiro poema longo, depois de Os cantos, de Ezra Pound, com qualidade. Isso porque Cage foi um leitor atento dos Cantos poundianos. Não por acaso, existem referências multiculturais em seu “Diários (Como melhorar o mundo, você só tornará as coisas piores)”. Do mesmo modo que em Pound, Cage vai fazendo uma colagem de fatos, situações, mesclando política e artes em geral, com um senso de humor, no entanto, mais apurado do que encontramos em Pound. Outro detalhe que os aproxima é a admiração pelo universo oriental. Ainda assim, Cage não aplica ideias específicas sobre política, fazendo apenas menção ao contexto socioeconômico dos Estados Unidos, sobretudo diante do mundo, e ao universo midiático (muitas de suas colagens parecem notícias de jornal). Na dedicatória de De segunda a um ano, observa: “Para nós e todos aqueles que nos odeiam, para que os E.U.A. possam se tornar simplesmente uma outra parte do mundo, nem mais nem menos”.

John Cage: o Nada e o silêncio (II)

Por André Dick

Depois de De segunda a um ano, vieram M (1973), reunindo escritos de 1967-72 e Notations (1969). O último livro desta linha é Empty words (1979). A obra de Cage é um painel vigoroso da literatura depois da metade do século XX. Na obra M, por exemplo, falava sobre as principais figuras que tinham seus nomes iniciados com a letra-título (como Merce Cunningham, seu parceiro até o fim da vida, e Mao Tsé-Tung); em outras obras, apresentava seus “Mesósticos” (com uma palavra transpassando, verticalmente, o poema ou a anarquia das letra-sets comentada por Augusto, escolhidas ao acaso). Em todos, referências a escritores (Jack Kerouac, Gertrude Stein), a músicos (Mozart, Beethoven, Schoenberg), entre outros. Cage ainda teve, como referências de geração, o filósofo dos mass media Marshall McLuhan e o artista plástico Marcel Duchamp. Com suas colagens, figuras, sons, um dadaísmo literário-musical. Cage provém também do Futurismo e do Dadaísmo.


Durante anos, principalmente depois de se tornar também um poeta, Cage foi uma espécie de artista multimídia, com seu “Musicircus”, gravando, inclusive, poemas de e. e. cummings, que não havia dado importância às suas experiências quando levadas a ele por Cage, e trechos de textos de Finnegans Wake, a obra mais complexa de Joyce, no projeto Roaratorio.
O acaso, a não intenção, o I Ching e a mistura de ideias ocidentais às orientais fazem com que a literatura de Cage, mesclada à sua música (afinal, ele compunha e escrevia, antes de escrever, compunha mais, depois, as duas coisas), rivalizem em inovação com as obras de James Joyce, Finnegans wake e Ulysses. Alguns textos do primeiro, inclusive, foram musicados por Cage, sobretudo no projeto “Roaratorio”, de 1979. Augusto de Campos lembra, em “Outras palavras sobre Finnegans wake” (ensaio de À margem da margem), que Cage, “que já em 1942 musicara o fragmento ‘The wonderful widow of eighteen springs’, pertencente ao Finnegans wake” prestou outras homenagens à obra: “A partir da ideia de extrair do texto o que chama de ‘mesósticos (acrósticos montados sobre as letras intermediárias da palavra) com o nome de James Joyce, através de operações aleatórias, produziu Writing through Finnegans wake (1977) e Writing for the second time through Finnegans wake (1978)”. O poeta norte-americano gostava tanto do poeta irlandês que apresentou sua obra, assim como fez com a de cummings, ao seu amigo músico Pierre Boulez, que, mais tarde, discordou do amigo a respeito de algumas ideias sobre a utilização do acaso no universo musical.


Declarou em For the birds (1976), a Daniel Charles, que Joyce foi seu principal inspirador. O Futurismo, uma das alavancas da work in progress de Joyce, foi também uma das referências de Cage, tal como o Dadaísmo – Duchamp, seu amigo, da mesma geração, é um representante das colagens no século XX. Em determinada época, ambos discutiam uma possível versão para a música de Um lance de dados, de Mallarmé. Este era outro poeta que agradava muito a Cage; ele e a seu amigo, com quem jogava xadrez, Marcel Duchamp.
Com isso, conhecer a obra de Cage – musical e poética – é lidar com uma nova percepção poética que, ao mesmo tempo em que descende de poetas como Gertrude Stein e Ezra Pound, também descende de outros visualmente mais “excêntricos”. As influências de Cage? “cummings, Pound, Joyce, Gertrude Stein… Depois, Thoreau. Cummings, mais pela sua tipografia excêntrica, e Joyce por motivos óbvios…”, respondeu o próprio Cage numa entrevista feita por Rodrigo Garcia Lopes, publicada em Vozes e visões.
O poeta que transformou de todas as maneiras a tipografia comum pode ser visto, com certeza, nos poemas em que Cage utiliza suas letra-sets, em formatos e tamanhos diferentes. Mesmo assim, a tipografia excêntrica de Cage parece, no tamanho daquela adotada em alguns poemas, descender mais dos “caligramas” do poeta francês Guillaume Apollinaire, o que não há em cummings (os poetas feitos para “representarem” seu conteúdo). Para Augusto, “há uma forte presença cummingsiana na obra de Cage, que compartilha com o poeta uma generosa ética anarco-individual da cidadania americana, com raízes comuns na ‘desobediência civil’ de Thoreau”. Octavio Paz, no ensaio intitulado “e. e. cummings: recordação” (de Signos em rotação), escreve, comparando o comportamento pessoal de cummings e Cage: “Estive em contato com alguns poetas e artistas anglo-americanos. Nenhum me deu esta sensação de extrema simplicidade e refinamento, humor e paixão, graça e ousadia — exceto o músico John Cage. Mas Cage é mais inteligente e complicado: um ianque que fosse também Erik Satie e um sábio oriental. O dadaísmo e Bashô. O humor de cummings se parecia com o box (jogo que já foi de cavalheiros em certa época): o de Cage é menos direto e mais corrosivo”.


Discípulo do pensamento anárquico de Henry David Thoreau, uma referência cultural da cultura dos Estados Unidos, Cage foi certamente o autor que mais rompeu as fronteiras das artes (uma afirmação que pode soar exagerada, se vermos outros artistas, mas em seu caso absolutamente natural e partilhada por muitos). Aprendiz de Schoenberg, Cage não se satisfez em trabalhar, elaborar partituras, criar o piano preparado, no campo da música, como depois o transportou seu pensamento – assim como seu silêncio – para a sua filosofia poética inserida no Nada. Antes já havia o silêncio de Thoreau, que Cage buscara em Walden. Para Cage, Thoreau “percebeu que o silêncio não existe. Ele tinha consciência do silêncio e do fato de que ele não existe, de que o silêncio na verdade são os sons. Para ele, o momento que estamos vivendo agora é silêncio e os sons que percebemos são apenas bolhas em sua superfície”.
Se lermos Heidegger, e lermos especificamente sobre o Nada, veremos que este conceito é complexo. Tanto quanto o trabalho de Cage rompendo fronteiras. O Nada em Cage estava tão próximo do tempo (4’33), quando o pianista entrava no palco para não tocar nada, enquanto a plateia fazia a música, entre xingamentos, quanto da conferência irrelevante e repetitiva, diante de uma plateia ávida em levantar e se livrar daquela monotonia tediosa vertida em palavras por um Cage pouco preocupado em agradar. É comum se achar que a cultura é feita de faíscas gradativas que irrompem do enorme discurso pomposo do exagero. Em Cage, esse exagero é abolido – em mão dupla, pois retorna em forma de reverso a um discurso desgastado. Essa mão dupla converte-se exatamente no Nada, que se dizia capaz de romper amarras e destituir poderes, acabando com o curso tedioso de uma certa negatividade admirada. Seu silêncio não faz parte de um programa pré-concebido, mas da vivência.
A verdade é que o arrozal de textos, conferências, anotações parecidas com bilhetes, fragmentos de diários, observações ao acaso, não pareciam fazer de Cage um poeta literário.


Cage pertenceu a uma geração que fez da colagem o seu ruído no mundo contemporâneo convertido em silêncio pelo excesso de dúvidas e desconfiança do todo.
Para Cage, a arte é quase como um mosaico dadaísta: só com os fragmentos é que podemos entender um pouco da precariedade que sentimos ao perceber o Nada e só este pode caber na mente de quem luta para que ele não exista, podendo vir a ser uma espécie de redescoberta de algum gesto, de alguma obra.
Assim como sua obra musical, representativa de um pensamento anárquico (o silêncio, com seu pulso grave na câmera de Dakota, na qual Cage comprovou que o silêncio não existe, é apenas nós mesmos, ideia que Cage usou até não poder mais, talvez chamando mais atenção para ela do que para sua obra, bem mais interessante que esta peça de engrenagem), sua obra “literária”, “livresca”, “filosófica” – as palavras e as aspas não seriam nunca interrompidas – confere uma espécie de retomada – por incrível que possa parecer, num autor tão cheio de rupturas – da tradição.
Em “O futuro da música: credo”, texto que abre Silence, Cage escreve: “onde quer que estejamos, o que ouvimos é ruído. Quando o ignoramos, nos incomoda. Quando o escutamos, descobrimos que é fascinante. O som de um caminhão a 90 quilômetros por hora. Os ruídos entre uma emissora de rádio e outra. A chuva. Nós queremos capturar e controlar estes sons, utilizá-los não como efeitos sonoros, mas como instrumentos musicais”. Com seus ruídos musicais e poéticos, Cage merece ser descoberto e estudado. Embora apenas um livro dele tenha sido publicado no Brasil, De segunda a um ano, certamente os outros livros e a sua obra musical não chegaram aqui por falta de apoio financeiro, não por desinteresse do público.


Conhecer a obra de Cage é lidar com uma nova percepção poética que, ao mesmo tempo em que descende desses poetas referidos, também descende de outros que ousaram lidar com o aspecto visual da poesia, como Guillaume Apollinaire e e. e. cummings, do qual Cage admirava, sobretudo, a tipografia excêntrica, mas com o qual nunca havia conseguido fazer amizade e que é referencial para a poesia concreta. Há, igualmente, uma presença do objetivismo de Louis Zukofsky, e é importante lembrar que Cage frequentou o Black Mountain College, onde se reuniam poetas como Charles Olson e Robert Creeley.
Descendente direto de uma tradição moderna firmada, John Cage merece ser descoberto e estudado. Do mesmo modo que Cummings, Gertrude e Pound, Cage levou a cabo, até o fim da vida, o gosto pela experimentação, morando entre os silêncios e, sobretudo, barulhos de Nova York, até 1992.
Fragmentos de John Cage

Abaixo, apresentamos alguns fragmentos de textos (entre a poesia e a prosa) de De segunda a um ano, único livro de John Cage lançado no Brasil, em 1985, pela Hucitec. A tradução é de Rogério Duprat, conhecido por seu trabalho também junto aos tropicalistas, com revisão feita pelo poeta Augusto de Campos.


Fragmentos de “Conferência sobre o compromisso”


A fim de cumprir com todos os nossos compromissos, precisamos de mais ouvidos e olhos do que tínhamos originalmente. Além disso, os que tínhamos estão ficando gastos. Em que sentido estou perdendo meu ouvido para a música? Em todos os sentidos.

*

Fazer? Ou já foi feito por nós? O que fizemos para nascer? Acaso nós escolhemos, depois de meditar, a vida aqui, em lugar de um outro planeta ou em um outro sistema solar, sentindo que havia melhores oportunidades na Terra? Que a gente iria mais longe?

*

Agora chegamos ao tema da descontinuidade em relação ao compromisso. Digamos que eu tenha um compromisso. Digamos que alguém me interrompa enquanto estou trabalhando. Se eu permito (que foi o que eu fiz quando fui concebido), então eu entro na descontinuidade. Naturalmente, eu posso dizer: “Não me aborreça”, perdendo, assim, a oportunidade de renascer.

*

O que é que está errado? A meteorologia ou os nossos calendários? Este devia ser o pior mês; talvez tudo tenha saído fora de posição.

*

O que foi que, realmente, me fez escolher a música em lugar da pintura? Só porque as pessoas me disseram coisas mais bonitas sobre minha música do que sobre minhas pinturas? Mas eu não tenho ouvido absoluto. Não consigo sustentar uma nota. De fato, eu não tenho talento para a música. Da última vez em que a vi, Tia Phoebe disse: “Você está na profissão errada”.
Vou lhes dizer uma coisa: estar comprometido, como agora, com o compromisso, é muito curioso. Como disse Gertrude Stein: “There isn’t any there there”. [Não há nenhum lá, lá]. Se ao menos fosse uma pérola, eu poderia quebrar a cabeça e encontrá-la. Como disse Suzuki: Vivendo na cidade, não sei como poderá fazê-lo. Se vivesse no campo, você teria uma chance. E há o seu artigo intitulado Mãos. (Deixe que elas se sujem. E quem foi mesmo que falou de raízes – não só das raízes, mas da sujeira grudada nelas? Compare com as árvores mandadas pro Nebraska, que se recusaram a crescer, simplesmente porque limparam suas raízes.)


Fragmentos de “Miró na terceira pessoa: 8 proposições”

Expressando em uma palavra aquilo sobre o que sempre vinha insistindo, ele disse: Anima. Uns dias depois, quando eu lhe repeti a palavra, ficou intrigado; pareceu não entender o que eu estava dizendo. Contei isso a Duchamp. Duchamp foi enfático: Miró não fala latim; ele deve ter dito (sem pronunciar o g): Um image.

Este é o caminho: olhando em direção ao mar, onde está a ilha dele. “Eu faço isso com todo meu coração”. Caminho do quê? Catalunha. Ele se torna um jogador de xadrez árabe. (Visitando outra pessoa, a gente o visita. Mapas. Piada a Quatro do Rei.)

Espaço. Mesmo perto, há distância.

Vai pro Polo Norte? Então leve Miró consigo. “Parece-me que o conheço desde que nasci.” A guerra. Pinturas desconhecidas. Uma noite transcorrida em gargalhadas: omelete que caiu no chão.

Os signos estão completos (prontos para se tornarem uma coisa diferente do que são). Fogo. Ao vemos mudanças, não sabendo ainda esquecer.

“Você abre portas”. Estou certo de que ele sabe que elas são automáticas, fechando-se depois que a gente passa. Um jardineiro, ele é também um caçador, mesmo quando dorme: a terra remexida é receptiva a tudo que existe no ar: disseram-me que ele queria saber, ver o que estava acontecendo.

Pra ligar o amplificador, eu viro a esquina. Ele está olhando um Giacometti. Sozinho, não (está) sozinho. Conchas que têm a clave de fá fazem lembrar de música. Balé. O que será? Eu sou o primeiro a ficar surpreso. As coisas mais simples me dão ideias. Cegueira anônima: quatro de nós jogando xadrez; três estavam cometendo enganos.


Fragmentos de “Ritmo, etc.”

A rigor, nada há dizer sobre ritmo, porque não há tempo. Temos ainda de aprender os rudimentos, os meios úteis. Mas há mil razões para crer que isso vai acontecer, antes que os corpos fiquem inanimados. Quando eu vejo tudo que está à direita se assemelhar a tudo que está à esquerda, eu me sinto da mesma forma que eu me sinto em frente de algo em que não há nenhum centro de interesse. Atividade, negócio: – não daquele que o fez (suas intenções tinham se reduzido a quase nada) – talvez um grão de poeira.

Somos construídos simetricamente (com as habituais permissões para a imperfeição e a ignorância, com respeito ao que ocorre por dentro), e assim, vemos e ouvimos simetricamente, observamos que cada evento está no centro do campo em que nós-ele estamos. Não é apenas um ponto de vista democrático porque é igualmente aristocrático. Só objetamos quando alguém nos chama a atenção para algo que já estávamos em vias de ver. Ele mencionou o fato de ir pra trás ou pro lado, e combinou isso com a noção de progresso.

Para mudar de assunto. O que é que eu quero dizer quando falo: Ele não tem sentido-de-tempo? Não sabe pular de uma situação para outra nos momentos adequados? Por essa razão fizemos nossa obra experimental (imprevisível). a) Usamos operações ao acaso. Vendo que elas eram úteis somente onde havia uma limitação definida do número de possibilidades, b) usamos composição indeterminada em relação à sua execução (caracterizada em parte pela independência das partes de cada executante – sem partitura). Vendo que isso só era útil quando havia chance de conscientização da parte de cada executante, c) usamos execução indeterminada em si mesma.


Fragmentos de “Jasper Johns: estórias e ideias”

Todas as flores o deleitam. Ele acha mais pertinente que uma planta, depois de ficar verde desenvolve um talo e, na ponta, desabroche em cor, do que ele ter de preferir umas às outras. Dá a maior importância a plantar uma planta, se ela está fora da terra. Presenteado com bulbos do sul, impaciente por vê-los florescer, urdiu um plano para a sucessão acelerada de estações: colocá-los para resfriar no terraço e depois aquecê-los num forno. Todavia, não deixa que as flores morram no jardim. Elas são cortadas, e todas as variedades que estão florescendo estão reunidas em um bárbaro e único arranjo, quer sejam tiradas do jardim, da beira da estrada quer dos floristas: uma destas, duas daquelas etc. (Não se deixem enganar: o fato de ele ser um jardineiro não o exclui da caça; ele me disse ter encontrado a Lactarius azul nos bosques em Edisto.) Além de fazer pinturas que têm estruturas, fez outras que não têm nenhuma (por exemplo, Jubileu). Eu quero dizer que se duas pessoas tivessem de dizer qual a divisão em partes daquele retângulo, diriam duas coisas diferentes. As palavras que designam cores e o fato de que uma palavra não é apropriadamente colorida (“Você é o único pintor que eu conheço que não distingue uma cor da outra”), exercitam nossas faculdades, mas não dividem a superfície em partes. Em outras palavras, a gente vê um mapa cujas fronteiras foram obscurecidas (de fato, não havia nenhum mapa); ou poderíamos dizer que a gente vê o campo abaixo da bandeira: a bandeira, que antes estava em cima, foi removida. Estupidamente, pensamos em expressionismo abstrato. Mas aqui estamos livres da luta, do gesto e da imagem pessoal. Olhar de perto ajuda, embora a tinta esteja aplicada tão sensualmente que a gente corre o risco de se apaixonar.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A poesia-relâmpago de Khlébnikov

Por André Dick

A Rússia foi sempre um país privilegiado em matéria de cultura, apresentando, por exemplo, grandes poetas. Entre eles, está o nome de Vielimir Khlébnikov, o poeta do “travesseiro”, cuja obra está inserida, com certeza, na lista das maiores da modernidade. Pouco conhecida, em relação a à de Maiakóvski – visto como o grande poeta russo, o mais representativo –, a poesia de Khlébnikov se caracteriza pela universalidade e pela experimentação de linguagem, tão bem sintetizadas por Augusto de Campos no ensaio “O Colombo dos novos continentes poéticos”, de À margem da margem.


Nascido na aldeia de Tundúvoto, do governo de Astrakan, na Rússia, em 1895, Khlébnikov era filho de pai ornitologista de uma mãe que apreciava música, história e literatura. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, estudou Física, Matemática e Ciências Naturais. Também aprendeu sânscrito na Faculdade de Línguas Orientais e se transferiu para a área de Letras, a fim de estudar Eslavística.
Para o poeta Assiéiev, ele “era semelhante em espécie a um passarinho pensativo com as longas mãos e com o hábito de descansar sobre um pé, com seu olho atento, com suas migrações imprevistas e as precipitações do espaço e as fugas para o futuro”. Mais preocupado em imigrar para diversos lugares, obedecendo às mudanças de estação, o poeta, não demonstrava interesse em publicar seus poemas, a fim de compor uma obra.
Era preciso que seus amigos escolhessem, dentre as pilhas de rascunhos relegados ao provável esquecimento, aqueles poemas que seriam publicados.
O poeta Vladimir Maiakóvski dizia se espantar com o trabalho de Khlébnikov. Segundo ele, o quarto do poeta “era vazio de mobília e vivia abarrotado de cadernos, frases soltas e pedacinhos de papel, cobertos de sua letra miudinha”. Se alguém não extraía de suas pilhas de poemas algum para imprimir, o poeta russo, antes de partir em viagem, enchia uma fronha com os manuscritos. Nas viagens, dormia sobre esse travesseiro - e acabava por perdê-lo.


Nesse sentido, interessante a reflexão de Murilo Mendes sobre o poeta russo, no fabuloso Retratos-relâmpago, a qual vale a pena ser reproduzida por completo:

Sonha por dentro e por fora. Carrega a mochila das onomatopoesias em ásperos caminhos da Rússia e do autocosmo. Alimenta-se de várias eternidades. Oscila entre o tempo neolítico e o da revolução de outubro. Contesta os hábitos do universo. Rejeita (mesmo disfarçada) a garra do sistema. Recusa-se a ser condicionado e teleguiado. Depende da estrela e da uva, mas toma-as como figuras subjetivas. Passa fome, fome igual a programa e manifesto. Não pousa em parte alguma. Julga o autostop cômodo demais. Não vêm no jornal. Irmão separado dos homens, “sacerdote das flores”, monge leigo, investiga através da solidão a luz das suas letras e das suas palavras geminadas, o alfabeto original. Adia o acontecimento, provoca a ruptura. Sobe as escadas descendo. Nunca chega, sempre volta. Do alto e do baixo. Persegue a música do enigma. É iluminado pela interrogação, explicado pelo tremor da terra, mantido pelo absoluto. Antiaristotélico, segue a flecha de Aristóteles: “saber encontrar belas metáforas significa descobrir as semelhanças entre as coisas”; mas vira em direção contrária, isto é, através da metáfora fixa o dissenso das coisas. Talvez tenha nascido sob o signo da palavra-relâmpago “aussitôt que l’idée du déluge se fuit rassise”, mas não é Rimbaud nº 2, sim Vielimir Khliébnikov 1º e único. Manifesta-se o super hippy, o superguru sem teto, bússola nem máquina. Nomeia-se estátua de comendador, para comprimir, diz, na mão de pedra os poemas refratários, e presidente do globo terrestre, para acabar, diz, com os “grandes”; mas sem arma, séquito ou petróleo, superexprime a distância das analogias, a guerra das categorias, a aversão às ideologias. Faz explodir o surrealismo da natureza e a instantaneidade do futuro.


Fala-se que a criação do futurismo se deve a Khlébnikov. No entanto, o poeta russo, além de nunca ter tentado publicar seus trabalhos, muito menos quis organizar movimentos. Claro que por meio da linguagem “zaúm” (a linguagem transmental), em que vocábulos eram criados com o propósito de alcançar novas sonorizações – encontradas nos poemas ao final deste artigo – e que ajudou a moldar, Khlébnikov ficou mais próximo do ideal futurista, mas é impossível afirmar que o poeta pretendia pertencer a uma corrente poética de vanguarda ou coisa similar.
Conforme Krystina Pomorska, em Formalismo e futurismo:

O conceito de zaúm de Khlébnikov não pressupõe de modo algum uma linguagem sem sentido. Como Biéli, ele advogou a revivescência de uma linguagem automatizada, a fim de restabelecer o contato perdido entre signo e referente (...) Um dos modos possíveis de fazer isso é revitalizar raízes arcaicas, acrescentando-lhes novos afixos. Ou a justaposição de radicais cuja etimologia comum em geral se perdeu.

Tal linguagem “atuaria de acordo com os mesmos poderes da linguagem dos sortilégios das fórmulas cabalísticas ou da liturgia religiosa: a audiência não compreende o significado das palavras, mas elas influenciam os seus sentimentos e a sua imaginação”.

Segundo Boris Schnaiderman, a

língua transmental (zaúm) era para ele algo bem concreto e preciso; os sons aglutinados não eram fortuitos, embora estivessem desligados do conceito habitual. A linguagem dos feiticeiros, dos xamãs da Ásia Central; a montagem e desmontagem das palavras; a transformação de nomes próprios em verbos, de substantivos em adjetivos e vice-versa; o registro dos pássaros, a formação de palavras nas línguas eslavas em geral – eis alguns dos recursos de que se serviu. Muito antes dos surrealistas já prenunciava a chamada escrita automática. Superando as limitações de espaço e tempo, antecipou em certo sentido o dadaísmo. Seus caligramas são anteriores aos de Apollinaire, e suas montagens de palavras efetuam-se na mesma época que as de Joyce.

Admirador do Simbolismo, segundo Pomorska, Khlébnikov “foi ao mesmo tempo o continuador da tradição e o ponto de partida para todos os tipos de poesia futurista”. Já para Jakobson, em A geração que esbanjou seus poetas, foi quem nos deu um novo gênero épico, as primeiras criações autenticamente épicas depois de muitas décadas de estagnação. Até mesmo seus poemas curtos, fundidos sem esforço aos poemas narrativos, produzem o efeito de fragmentos de epopeia. Khlébnikov é épico apesar desses tempos antiépicos, sendo essa uma das explicações para o efeito de estranhamento que sua obra causa sobre o leitor.


Seu objetivo era realizar poesia, seja em poemas de risco, com a linguagem “zaúm”, seja em poemas de tradição simbolista. Como escreve Boris Schnaiderman, no artigo “O mundo precisa de Khlébnikov”, “sua linguagem é a mais despojada de literatice, a mais arrojada, a mais próxima do genuíno espírito da língua”. Desse modo, para Schnaiderman, ele é um precursor: “Antes que Joyce amadurecesse a sua extraordinária revolução na linguagem literária, Khlébnikov já publicava poemas em que são evidentes os elementos pré-joyceanos. Antes que dadaístas e surrealistas expusessem preto no branco a sua subversão dos valores consagrados em arte e literatura, Khlébnikov já fazia pré-dadaísmo e pré-surrealismo”.
Os últimos anos do poeta, no entanto, foram conturbados. Aventureiro, Khlébnikov prestou serviço militar na infantaria russa na guerra de 14. Durante a Guerra Civil, foi preso como espião, indo parar num hospital psiquiátrico. Entre 1918 e 1920, viveu num quarto frio e sem luz, faltando a ele roupa e comida. Adoeceu de tifo por duas vezes. Em 1920, trabalhou na Agência Telegráfica de Cáucaso, para, no ano seguinte, partir em direção à Pérsia com o Exército Vermelho.
Na volta à Rússia, arranjou trabalho como guarda-noturno na Agência Rosta, pois tinha de se alimentar, e em 1921 partiu para Moscou, num vagão de epiléticos. Khlébnikov acabou por morrer na aldeia de Santalovo, governo de Nóvgorod, em 1922, ano em que Mário e Oswald de Andrade estavam à frente da Semana de Arte Moderna, em São Paulo.
Irritado com as publicações que reconheciam a obra de Khlébnikov após sua morte – em vida o poeta foi perseguido pelo regime stalinista, que proíbe qualquer discordância ou ideais que não estejam em seus planos –, Maiakóvski pediu: “Artigos sobre os vivos! Pão para os vivos! Papel para os vivos!”. Khlébnikov que, dentre seus muitos sonhos e profecias, pretendia criar uma sociedade de presidentes do Globo Terrestre (com poetas, filósofos, sábios, revolucionários) que governaria o mundo, talvez não se interessasse em ser lembrado, talvez porque soubesse, antes de mais nada, que sua poesia era constituída de inteligência e visão literária, e, dia menos dia, seria lembrada.


Tanto quanto sua poesia, a faceta voltada a ideias revolucionárias de Khlébnikov era bastante imaginária – o motivo de ter sido tão rechaçado por Stálin, que não admitia posicionamentos contrários aos seus. Como diz Barthes, quando analisa a “escrita stalinista”, em O grau zero da escritura, ela quer dar “o real sob a sua forma julgada, impondo uma leitura imediata das condenações: o conteúdo objetivo da palavra ‘desviacionista’ é de ordem penal. Se dois ‘desviacionistas’ se reúnem, passam a ser ‘fraccionistas’, o que não corresponde a uma falta objetivamente diferente, mas a um agravamento da penalidade”. Uma escrita autoritária como a de Stálin “tem como missão fazer coincidir fraudulentamente a origem do fato e a sua manifestação mais longínqua, dando à justificação do ato a caução de sua realidade”. Tal escrita, lembra Barthes, é “própria a todos os regimes autoritários; é o que poderia se chamar de escrita policial: conhece-se, por exemplo, o conteúdo eternamente repressivo da palavra ‘Ordem’”. Por isso, os stalinistas rechaçam qualquer opinião discordante – e por isso combatem tanto os poetas, instituindo uma vigilância policial.
O que fica não é o discurso stalinista, e sim a obra de quem ele perseguiu, no caso a de, entre outros, Khlébnikov. Em 1928, saiu uma edição da obra do poeta na Rússia, com cinco volumes, que seria completada por inéditos em 1940. No Brasil, vale a pena conferir as obras Ka (com tradução de Aurora Fornoni Bernardini) e Poesia russa moderna (em que há ótimas traduções do russo para o português pelas mãos de Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman). Um dos maiores estudiosos atuais do poeta é Mário Ramos Francisco, que traduziu o seu longo poema Zanguézi. Abaixo, uma pequena seleção (feita com a colaboração de Nicole Cristofalo) dos poemas de Khlébnikov, traduzidos por Augusto de Campos, Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos. Ela mostra um pouco da “poesia-relâmpago” (para evocar Murilo) do poeta russo.

O GRILO

Aleteando com a ourografia
Das veias finíssimas
O grilo
Enche o grill do ventre-silo
Com muitas gramas e talos de ribeira.
– Pin, pin, pin! – taramela o zinziber.
Oh, cisnencanto!
Oh, ilumínios!

(Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

*
Tempos-juncos
            Na margem do lago,
Onde as pedras são tempo,
Onde o tempo é de pedra.
            No lago da margem,
Tempos, juncos,
Na margem do lago,
            Santos, juntos.

(Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)


*

Bobeóbi cantar de lábios,
Lheeómi cantar de olhos,
Cieeo cantar de cílios,
Stioeei cantar do rosto
Gri-gsi-gseo o grilhão cantante.
Assim no bastidor dessas correspondências
Transespaço vivia o semblante.

(Tradução de Haroldo de Campos)

*

Anos, países, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A água é espelho móvel,
Estrelas – redes; nós – os peixes;
Visões da treva – os deuses.

(Tradução de Augusto de Campos)

*
Uma vez mais, uma vez mais
Sou pra você
Uma estrela.
Ai do marujo que tomar
O ângulo errado de marear
Por uma estrela:
Ele se despedaçará nas rochas,
Nos bancos sob o mar.
Ai de você, por tomar
O ângulo errado de amar
Comigo: você
Vai se despedaçar nas rochas
E as rochas hão de rir
Por fim
Como você riu
De mim.

(Tradução de Augusto de Campos)

*

ENCANTAÇÃO PELO RISO

Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos – risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,
Hilariando, riando,
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!

(Tradução de Haroldo de Campos)

*

Neste dia de ursos cerúleos
a correr sobre dias tranquilos
transvejo para além da água azul
o acordar na taça das pupilas.

Na colher de prata de olhos latos
vejo a procelária em mar sonoro
e ao largo vai a rússia dos pássaros
transvoando entrecílios ignotos.

Marventoso em celamor soçobra
a vela de alguém na azul esfera,
e eis que o desespero tudo engolfa
trovão e porvir de primavera.

(Tradução de Haroldo de Campos)

*

Hoje de novo sigo a senda
Para a vida, o varejo, a venda,
E guio as hostes da poesia
Contra a maré da mercancia.

(Tradução de Augusto de Campos)