John Cage: o Nada e o silêncio (I)
Por André Dick
Na introdução do livro Silence, John Cage escreveu: “Por mais de vinte anos tenho escrito artigos e dado palestras. Muitas delas têm sido incomum na forma… porque tenho empregado nelas meios de compor semelhante ao meu meio de compor no campo da música… Conforme olho para trás, me dou conta de que uma preocupação com a poesia se encontrava em mim desde cedo. Na faculdade de Pomona, em resposta a perguntas sobre os poetas do Lago, escrevi à maneira de Gertrude Stein, irrelevante e repetitivo”. É este estilo “irrelevante e repetitivo” uma das marcas de John Cage na literatura. O que o torna bastante relevante e um avesso da repetição.
Como conta o próprio Cage: “Um editor de Londres enviou um formulário em branco para que eu preenchesse, então eu seria incluído na pesquisa de poetas contemporâneos da língua inglesa. Eu joguei fora. Semanas depois chegou um pedido urgente, mais um formulário duplicado. ‘Por favor retorne com uma foto lustrosa.’ Obedeci. Julho, agosto, setembro. O editor, então, enviou uma carta dizendo que tinha sido decidido que não sou um poeta significativo: Se eu fosse, qualquer um também o seria”. É uma história curiosa, pois Cage costuma ainda não ser visto como poeta. Diz Octavio Paz, no seu ensaio ”e. e. cummings: recordação”, de 1965, ou seja, posterior à publicação de Silence, o primeiro livro de Cage: “Não sei o que pensar de sua música (pensa-se a música?); em compensação, sei que é um dos poucos poetas, apesar de não escrever poemas, que existem hoje nos Estados Unidos”.
Cage nasceu em Los Angeles, em 1912, e foi, talvez, na segunda metade do século XX, embora pareça paradoxal, pois é conhecido como músico, um dos poetas norte-americanos mais importantes. Começou a compor partituras bem antes de se envolver com as palavras. Aluno de Henry Cowell e Arnold Schoenberg, recebia aulas de graça deste último, com a condição de que dedicasse sua vida à música.
Avesso à harmonia, Cage teve esse defeito apontado por Schoenberg, que enxergava nisso um muro em qualquer carreira musical. No entanto, contrariando o mestre, Cage afirmou que devotaria sua vida a bater com a cabeça nesse muro. Foi também um dos responsáveis por trazer à cultura norte-americana o aprendizado oriental do I Ching e, com ele, a música indeterminada, além da consciência do acaso (o silêncio), fazendo com que suas peças musicais tivessem bastante repercussão. Como a peça 4’33 (1952), em que, nesse tempo exato, a plateia fazia os sons, durante o “silêncio” da apresentação. “O que se busca”, segundo Cage, “não é a indeterminância ou determinância e sim não intenção. Ela é a base do silêncio, que está cheio de sons que simplesmente ocorrem. A única diferença entre aqueles sons e os sons que você provoca é a intenção. O mais importante é a ausência de intenção e a aceitação do que acontece”. Para ele, o “acaso” é “um mecanismo que “não tem nada a ver com meus sentimentos e meus pensamentos, uma operação que permite libertar-me do meu ego. O ego é uma barreira para a experiência. O acaso permite uma situação que não expressa o ‘eu’, mas que abre o ‘eu’ para coisas que estão fora dele”. Nesse sentido, a crítica literária norte-americana Marjorie Perloff, em Poetics of indeterminacy, percebe que a poesia, desde Rimbaud, busca o acaso, a não intenção, o que ressoa em Gertrude Stein, em Pound, em William Carlos Williams e Samuel Beckett, entre outros, até chegar à poesia de John Cage.
Silence foi a primeira obra (musical literária/literária musical) de John Cage. A obra resulta de suas experiências existenciais, um mosaico anárquico musical, partindo sempre da música para o pensamento poético. Há a “Conferência sobre o nada” e a “Conferência sobre algo”, poemas sobre preparação de piano, textos em prosa reproduzindo diálogos do cotidiano de Cage: contatos, amizades etc.
Sua única obra traduzida (por Rogério Duprat e revisada por Augusto de Campos) no Brasil, sucessora de Silence, De segunda a um ano (A year from monday) reúne alguns dos caminhos mais percorridos por Cage em sua trajetória poética. Nele, há o “Diário: como melhorar o mundo (você só tornará as coisas piores)”, que se estende pelo livro e por várias obras suas e reúne ideias colhidas ao acaso, sobre política, música, sociedade, entre outras coisas, como fazia Thoreau, ídolo de Cage, em A desobediência civil.
Há também o “Diário: seminário de música de Emma Lake”, em que Cage, ao comentar sobre suas peregrinações como compositor, ao mesmo tempo tece comentários sobre diversos tipos de comida em diversas regiões dos Estados Unidos; “Papo nº 1”, uma série de colagens de versos, palavras, pensamentos, colhidos, também, ao acaso total, com forte influência do Dadaísmo; o capítulo “Como passar, chutar, cair e correr”, com uma série de histórias de pessoas que cercavam a vida de Cage, principalmente, é claro, músicos (Christian Wolff, David Tudor, Stockhausen), explicando seus métodos de elaboração para as peças, realizadas sobre operações de acaso.
O livro também apresenta homenagens para outros artistas: “26 proposições sobre Duchamp” (já mencionado); “Miró na terceira pessoa: 8 proposições” (sobre o pintor espanhol), “Nam June Paik: um diário” (sobre o videomaker) etc. No campo específico da música, há muitos momentos: em “Daqui, para onde vamos?”, que aborda os sentidos dos sons; “Duas proposições sobre Ives” (poema com um trabalho tipográfico singular e as palavras interrompidas por sinais, como uma peça musical pelas notas); a “Conferência na Juilliard”, conferência em forma de poema, dividida em quatro seções. Apresentada na Juilliard School of Music, a convite dos alunos dela, Cage lembra, em De segunda a um ano, que, enquanto falava o texto, seu amigo David Tudor tocava algumas peças de piano, composições de Morton Feldman, Christian Wolff e dele próprio. Eram usados cronômetros para coordenar o programa, feito por Tudor sem que Cage o conhecesse previamente.
A primeira seção iniciou aos 0’0’’, a segunda aos 12’10’’, a terceira aos 24’20’’ e a quarta aos 36’30’’. Cage lembra que escreveu o texto em quatro colunas “para facilitar uma leitura rítmica e a medição dos silêncio”, lendo “cada linha da página da esquerda para a direita, não de cima pra baixo, seguindo as colunas”, para “evitar o resultado artificial que poderia decorrer do fato de seguir rigorosamente a posição das palavras na páginas”.
Em De segunda a um ano, por sua vez, também começa a publicar seu longo poema “Diários (Como melhorar o mundo, você só tornará as coisas piores)”, que se estende por algumas obras. Para Augusto de Campos, é o primeiro poema longo, depois de Os cantos, de Ezra Pound, com qualidade. Isso porque Cage foi um leitor atento dos Cantos poundianos. Não por acaso, existem referências multiculturais em seu “Diários (Como melhorar o mundo, você só tornará as coisas piores)”. Do mesmo modo que em Pound, Cage vai fazendo uma colagem de fatos, situações, mesclando política e artes em geral, com um senso de humor, no entanto, mais apurado do que encontramos em Pound. Outro detalhe que os aproxima é a admiração pelo universo oriental. Ainda assim, Cage não aplica ideias específicas sobre política, fazendo apenas menção ao contexto socioeconômico dos Estados Unidos, sobretudo diante do mundo, e ao universo midiático (muitas de suas colagens parecem notícias de jornal). Na dedicatória de De segunda a um ano, observa: “Para nós e todos aqueles que nos odeiam, para que os E.U.A. possam se tornar simplesmente uma outra parte do mundo, nem mais nem menos”.
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
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