quarta-feira, 26 de outubro de 2011

John Cage: o Nada e o silêncio (II)

Por André Dick

Depois de De segunda a um ano, vieram M (1973), reunindo escritos de 1967-72 e Notations (1969). O último livro desta linha é Empty words (1979). A obra de Cage é um painel vigoroso da literatura depois da metade do século XX. Na obra M, por exemplo, falava sobre as principais figuras que tinham seus nomes iniciados com a letra-título (como Merce Cunningham, seu parceiro até o fim da vida, e Mao Tsé-Tung); em outras obras, apresentava seus “Mesósticos” (com uma palavra transpassando, verticalmente, o poema ou a anarquia das letra-sets comentada por Augusto, escolhidas ao acaso). Em todos, referências a escritores (Jack Kerouac, Gertrude Stein), a músicos (Mozart, Beethoven, Schoenberg), entre outros. Cage ainda teve, como referências de geração, o filósofo dos mass media Marshall McLuhan e o artista plástico Marcel Duchamp. Com suas colagens, figuras, sons, um dadaísmo literário-musical. Cage provém também do Futurismo e do Dadaísmo.


Durante anos, principalmente depois de se tornar também um poeta, Cage foi uma espécie de artista multimídia, com seu “Musicircus”, gravando, inclusive, poemas de e. e. cummings, que não havia dado importância às suas experiências quando levadas a ele por Cage, e trechos de textos de Finnegans Wake, a obra mais complexa de Joyce, no projeto Roaratorio.
O acaso, a não intenção, o I Ching e a mistura de ideias ocidentais às orientais fazem com que a literatura de Cage, mesclada à sua música (afinal, ele compunha e escrevia, antes de escrever, compunha mais, depois, as duas coisas), rivalizem em inovação com as obras de James Joyce, Finnegans wake e Ulysses. Alguns textos do primeiro, inclusive, foram musicados por Cage, sobretudo no projeto “Roaratorio”, de 1979. Augusto de Campos lembra, em “Outras palavras sobre Finnegans wake” (ensaio de À margem da margem), que Cage, “que já em 1942 musicara o fragmento ‘The wonderful widow of eighteen springs’, pertencente ao Finnegans wake” prestou outras homenagens à obra: “A partir da ideia de extrair do texto o que chama de ‘mesósticos (acrósticos montados sobre as letras intermediárias da palavra) com o nome de James Joyce, através de operações aleatórias, produziu Writing through Finnegans wake (1977) e Writing for the second time through Finnegans wake (1978)”. O poeta norte-americano gostava tanto do poeta irlandês que apresentou sua obra, assim como fez com a de cummings, ao seu amigo músico Pierre Boulez, que, mais tarde, discordou do amigo a respeito de algumas ideias sobre a utilização do acaso no universo musical.


Declarou em For the birds (1976), a Daniel Charles, que Joyce foi seu principal inspirador. O Futurismo, uma das alavancas da work in progress de Joyce, foi também uma das referências de Cage, tal como o Dadaísmo – Duchamp, seu amigo, da mesma geração, é um representante das colagens no século XX. Em determinada época, ambos discutiam uma possível versão para a música de Um lance de dados, de Mallarmé. Este era outro poeta que agradava muito a Cage; ele e a seu amigo, com quem jogava xadrez, Marcel Duchamp.
Com isso, conhecer a obra de Cage – musical e poética – é lidar com uma nova percepção poética que, ao mesmo tempo em que descende de poetas como Gertrude Stein e Ezra Pound, também descende de outros visualmente mais “excêntricos”. As influências de Cage? “cummings, Pound, Joyce, Gertrude Stein… Depois, Thoreau. Cummings, mais pela sua tipografia excêntrica, e Joyce por motivos óbvios…”, respondeu o próprio Cage numa entrevista feita por Rodrigo Garcia Lopes, publicada em Vozes e visões.
O poeta que transformou de todas as maneiras a tipografia comum pode ser visto, com certeza, nos poemas em que Cage utiliza suas letra-sets, em formatos e tamanhos diferentes. Mesmo assim, a tipografia excêntrica de Cage parece, no tamanho daquela adotada em alguns poemas, descender mais dos “caligramas” do poeta francês Guillaume Apollinaire, o que não há em cummings (os poetas feitos para “representarem” seu conteúdo). Para Augusto, “há uma forte presença cummingsiana na obra de Cage, que compartilha com o poeta uma generosa ética anarco-individual da cidadania americana, com raízes comuns na ‘desobediência civil’ de Thoreau”. Octavio Paz, no ensaio intitulado “e. e. cummings: recordação” (de Signos em rotação), escreve, comparando o comportamento pessoal de cummings e Cage: “Estive em contato com alguns poetas e artistas anglo-americanos. Nenhum me deu esta sensação de extrema simplicidade e refinamento, humor e paixão, graça e ousadia — exceto o músico John Cage. Mas Cage é mais inteligente e complicado: um ianque que fosse também Erik Satie e um sábio oriental. O dadaísmo e Bashô. O humor de cummings se parecia com o box (jogo que já foi de cavalheiros em certa época): o de Cage é menos direto e mais corrosivo”.


Discípulo do pensamento anárquico de Henry David Thoreau, uma referência cultural da cultura dos Estados Unidos, Cage foi certamente o autor que mais rompeu as fronteiras das artes (uma afirmação que pode soar exagerada, se vermos outros artistas, mas em seu caso absolutamente natural e partilhada por muitos). Aprendiz de Schoenberg, Cage não se satisfez em trabalhar, elaborar partituras, criar o piano preparado, no campo da música, como depois o transportou seu pensamento – assim como seu silêncio – para a sua filosofia poética inserida no Nada. Antes já havia o silêncio de Thoreau, que Cage buscara em Walden. Para Cage, Thoreau “percebeu que o silêncio não existe. Ele tinha consciência do silêncio e do fato de que ele não existe, de que o silêncio na verdade são os sons. Para ele, o momento que estamos vivendo agora é silêncio e os sons que percebemos são apenas bolhas em sua superfície”.
Se lermos Heidegger, e lermos especificamente sobre o Nada, veremos que este conceito é complexo. Tanto quanto o trabalho de Cage rompendo fronteiras. O Nada em Cage estava tão próximo do tempo (4’33), quando o pianista entrava no palco para não tocar nada, enquanto a plateia fazia a música, entre xingamentos, quanto da conferência irrelevante e repetitiva, diante de uma plateia ávida em levantar e se livrar daquela monotonia tediosa vertida em palavras por um Cage pouco preocupado em agradar. É comum se achar que a cultura é feita de faíscas gradativas que irrompem do enorme discurso pomposo do exagero. Em Cage, esse exagero é abolido – em mão dupla, pois retorna em forma de reverso a um discurso desgastado. Essa mão dupla converte-se exatamente no Nada, que se dizia capaz de romper amarras e destituir poderes, acabando com o curso tedioso de uma certa negatividade admirada. Seu silêncio não faz parte de um programa pré-concebido, mas da vivência.
A verdade é que o arrozal de textos, conferências, anotações parecidas com bilhetes, fragmentos de diários, observações ao acaso, não pareciam fazer de Cage um poeta literário.


Cage pertenceu a uma geração que fez da colagem o seu ruído no mundo contemporâneo convertido em silêncio pelo excesso de dúvidas e desconfiança do todo.
Para Cage, a arte é quase como um mosaico dadaísta: só com os fragmentos é que podemos entender um pouco da precariedade que sentimos ao perceber o Nada e só este pode caber na mente de quem luta para que ele não exista, podendo vir a ser uma espécie de redescoberta de algum gesto, de alguma obra.
Assim como sua obra musical, representativa de um pensamento anárquico (o silêncio, com seu pulso grave na câmera de Dakota, na qual Cage comprovou que o silêncio não existe, é apenas nós mesmos, ideia que Cage usou até não poder mais, talvez chamando mais atenção para ela do que para sua obra, bem mais interessante que esta peça de engrenagem), sua obra “literária”, “livresca”, “filosófica” – as palavras e as aspas não seriam nunca interrompidas – confere uma espécie de retomada – por incrível que possa parecer, num autor tão cheio de rupturas – da tradição.
Em “O futuro da música: credo”, texto que abre Silence, Cage escreve: “onde quer que estejamos, o que ouvimos é ruído. Quando o ignoramos, nos incomoda. Quando o escutamos, descobrimos que é fascinante. O som de um caminhão a 90 quilômetros por hora. Os ruídos entre uma emissora de rádio e outra. A chuva. Nós queremos capturar e controlar estes sons, utilizá-los não como efeitos sonoros, mas como instrumentos musicais”. Com seus ruídos musicais e poéticos, Cage merece ser descoberto e estudado. Embora apenas um livro dele tenha sido publicado no Brasil, De segunda a um ano, certamente os outros livros e a sua obra musical não chegaram aqui por falta de apoio financeiro, não por desinteresse do público.


Conhecer a obra de Cage é lidar com uma nova percepção poética que, ao mesmo tempo em que descende desses poetas referidos, também descende de outros que ousaram lidar com o aspecto visual da poesia, como Guillaume Apollinaire e e. e. cummings, do qual Cage admirava, sobretudo, a tipografia excêntrica, mas com o qual nunca havia conseguido fazer amizade e que é referencial para a poesia concreta. Há, igualmente, uma presença do objetivismo de Louis Zukofsky, e é importante lembrar que Cage frequentou o Black Mountain College, onde se reuniam poetas como Charles Olson e Robert Creeley.
Descendente direto de uma tradição moderna firmada, John Cage merece ser descoberto e estudado. Do mesmo modo que Cummings, Gertrude e Pound, Cage levou a cabo, até o fim da vida, o gosto pela experimentação, morando entre os silêncios e, sobretudo, barulhos de Nova York, até 1992.

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