quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Fragmentos de John Cage

Abaixo, apresentamos alguns fragmentos de textos (entre a poesia e a prosa) de De segunda a um ano, único livro de John Cage lançado no Brasil, em 1985, pela Hucitec. A tradução é de Rogério Duprat, conhecido por seu trabalho também junto aos tropicalistas, com revisão feita pelo poeta Augusto de Campos.


Fragmentos de “Conferência sobre o compromisso”


A fim de cumprir com todos os nossos compromissos, precisamos de mais ouvidos e olhos do que tínhamos originalmente. Além disso, os que tínhamos estão ficando gastos. Em que sentido estou perdendo meu ouvido para a música? Em todos os sentidos.

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Fazer? Ou já foi feito por nós? O que fizemos para nascer? Acaso nós escolhemos, depois de meditar, a vida aqui, em lugar de um outro planeta ou em um outro sistema solar, sentindo que havia melhores oportunidades na Terra? Que a gente iria mais longe?

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Agora chegamos ao tema da descontinuidade em relação ao compromisso. Digamos que eu tenha um compromisso. Digamos que alguém me interrompa enquanto estou trabalhando. Se eu permito (que foi o que eu fiz quando fui concebido), então eu entro na descontinuidade. Naturalmente, eu posso dizer: “Não me aborreça”, perdendo, assim, a oportunidade de renascer.

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O que é que está errado? A meteorologia ou os nossos calendários? Este devia ser o pior mês; talvez tudo tenha saído fora de posição.

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O que foi que, realmente, me fez escolher a música em lugar da pintura? Só porque as pessoas me disseram coisas mais bonitas sobre minha música do que sobre minhas pinturas? Mas eu não tenho ouvido absoluto. Não consigo sustentar uma nota. De fato, eu não tenho talento para a música. Da última vez em que a vi, Tia Phoebe disse: “Você está na profissão errada”.
Vou lhes dizer uma coisa: estar comprometido, como agora, com o compromisso, é muito curioso. Como disse Gertrude Stein: “There isn’t any there there”. [Não há nenhum lá, lá]. Se ao menos fosse uma pérola, eu poderia quebrar a cabeça e encontrá-la. Como disse Suzuki: Vivendo na cidade, não sei como poderá fazê-lo. Se vivesse no campo, você teria uma chance. E há o seu artigo intitulado Mãos. (Deixe que elas se sujem. E quem foi mesmo que falou de raízes – não só das raízes, mas da sujeira grudada nelas? Compare com as árvores mandadas pro Nebraska, que se recusaram a crescer, simplesmente porque limparam suas raízes.)


Fragmentos de “Miró na terceira pessoa: 8 proposições”

Expressando em uma palavra aquilo sobre o que sempre vinha insistindo, ele disse: Anima. Uns dias depois, quando eu lhe repeti a palavra, ficou intrigado; pareceu não entender o que eu estava dizendo. Contei isso a Duchamp. Duchamp foi enfático: Miró não fala latim; ele deve ter dito (sem pronunciar o g): Um image.

Este é o caminho: olhando em direção ao mar, onde está a ilha dele. “Eu faço isso com todo meu coração”. Caminho do quê? Catalunha. Ele se torna um jogador de xadrez árabe. (Visitando outra pessoa, a gente o visita. Mapas. Piada a Quatro do Rei.)

Espaço. Mesmo perto, há distância.

Vai pro Polo Norte? Então leve Miró consigo. “Parece-me que o conheço desde que nasci.” A guerra. Pinturas desconhecidas. Uma noite transcorrida em gargalhadas: omelete que caiu no chão.

Os signos estão completos (prontos para se tornarem uma coisa diferente do que são). Fogo. Ao vemos mudanças, não sabendo ainda esquecer.

“Você abre portas”. Estou certo de que ele sabe que elas são automáticas, fechando-se depois que a gente passa. Um jardineiro, ele é também um caçador, mesmo quando dorme: a terra remexida é receptiva a tudo que existe no ar: disseram-me que ele queria saber, ver o que estava acontecendo.

Pra ligar o amplificador, eu viro a esquina. Ele está olhando um Giacometti. Sozinho, não (está) sozinho. Conchas que têm a clave de fá fazem lembrar de música. Balé. O que será? Eu sou o primeiro a ficar surpreso. As coisas mais simples me dão ideias. Cegueira anônima: quatro de nós jogando xadrez; três estavam cometendo enganos.


Fragmentos de “Ritmo, etc.”

A rigor, nada há dizer sobre ritmo, porque não há tempo. Temos ainda de aprender os rudimentos, os meios úteis. Mas há mil razões para crer que isso vai acontecer, antes que os corpos fiquem inanimados. Quando eu vejo tudo que está à direita se assemelhar a tudo que está à esquerda, eu me sinto da mesma forma que eu me sinto em frente de algo em que não há nenhum centro de interesse. Atividade, negócio: – não daquele que o fez (suas intenções tinham se reduzido a quase nada) – talvez um grão de poeira.

Somos construídos simetricamente (com as habituais permissões para a imperfeição e a ignorância, com respeito ao que ocorre por dentro), e assim, vemos e ouvimos simetricamente, observamos que cada evento está no centro do campo em que nós-ele estamos. Não é apenas um ponto de vista democrático porque é igualmente aristocrático. Só objetamos quando alguém nos chama a atenção para algo que já estávamos em vias de ver. Ele mencionou o fato de ir pra trás ou pro lado, e combinou isso com a noção de progresso.

Para mudar de assunto. O que é que eu quero dizer quando falo: Ele não tem sentido-de-tempo? Não sabe pular de uma situação para outra nos momentos adequados? Por essa razão fizemos nossa obra experimental (imprevisível). a) Usamos operações ao acaso. Vendo que elas eram úteis somente onde havia uma limitação definida do número de possibilidades, b) usamos composição indeterminada em relação à sua execução (caracterizada em parte pela independência das partes de cada executante – sem partitura). Vendo que isso só era útil quando havia chance de conscientização da parte de cada executante, c) usamos execução indeterminada em si mesma.


Fragmentos de “Jasper Johns: estórias e ideias”

Todas as flores o deleitam. Ele acha mais pertinente que uma planta, depois de ficar verde desenvolve um talo e, na ponta, desabroche em cor, do que ele ter de preferir umas às outras. Dá a maior importância a plantar uma planta, se ela está fora da terra. Presenteado com bulbos do sul, impaciente por vê-los florescer, urdiu um plano para a sucessão acelerada de estações: colocá-los para resfriar no terraço e depois aquecê-los num forno. Todavia, não deixa que as flores morram no jardim. Elas são cortadas, e todas as variedades que estão florescendo estão reunidas em um bárbaro e único arranjo, quer sejam tiradas do jardim, da beira da estrada quer dos floristas: uma destas, duas daquelas etc. (Não se deixem enganar: o fato de ele ser um jardineiro não o exclui da caça; ele me disse ter encontrado a Lactarius azul nos bosques em Edisto.) Além de fazer pinturas que têm estruturas, fez outras que não têm nenhuma (por exemplo, Jubileu). Eu quero dizer que se duas pessoas tivessem de dizer qual a divisão em partes daquele retângulo, diriam duas coisas diferentes. As palavras que designam cores e o fato de que uma palavra não é apropriadamente colorida (“Você é o único pintor que eu conheço que não distingue uma cor da outra”), exercitam nossas faculdades, mas não dividem a superfície em partes. Em outras palavras, a gente vê um mapa cujas fronteiras foram obscurecidas (de fato, não havia nenhum mapa); ou poderíamos dizer que a gente vê o campo abaixo da bandeira: a bandeira, que antes estava em cima, foi removida. Estupidamente, pensamos em expressionismo abstrato. Mas aqui estamos livres da luta, do gesto e da imagem pessoal. Olhar de perto ajuda, embora a tinta esteja aplicada tão sensualmente que a gente corre o risco de se apaixonar.

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