quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Haroldo de Campos e Paulo Leminski sob o signo de Saturno

Por André Dick

Haroldo de Campos e Paulo Leminski, nascidos em 19 de agosto de 1929 e 24 de agosto de 1944, respectivamente, se aproximam, muitas vezes, pelo aspecto saturnino. Segundo Aristóteles, como lembra Giorgio Agamben, em Estâncias:

Aqueles nos quais a bílis é abundante e fria tornam-se torpes e estranhos: outros, nos quais ela é abundante e quente, tornam-se maníacos e alegres, muito amorosos e facilmente dados à paixão... E muitos, porque o calor da bílis está perto da sede da inteligência, são tomados pelo furor ou pelo entusiasmo.

Lembra ainda Agamben que “essa dupla polaridade da bílis negra e sua vinculação com a platônica ‘mania divina’ foram reunidas e desenvolvidas com especial entusiasmo pela curiosa mistura de seita mística e de cenáculo de vanguarda que, na Florença de Lourenço, o Magnífico, se reunia à volta de Marsílio Ficino”.


É no pensamento de Ficino, “que se reconhecia de temperamento melancólico e cujo horóscopo mostrava ‘Saturnum in Aquario ascendentem’”, que “a reabilitação da melancolia acompanhava passo a passo o enobrecimento da influência de Saturno, que a tradição astrológica associava ao temperamento melancólico, como o planeta mais maligno, na intuição de uma polaridade dos extremos em que coexistiam, uma ao lado da outra, a ruinosa experiência da opacidade e a estática ascensão para a contemplação divina”.
Nessa perspectiva, acentua Agamben, “a influência elementar da terra e aquela astral de Saturno se juntavam para conferir ao melancólico uma propensão natural ao recolhimento interior e ao conhecimento contemplativo”.
Haroldo e Leminski não tinham propensão intensa ao recolhimento (embora, claro toda a obra o exija), sobretudo porque produziam em diversas linguagens e atuavam midiaticamente. No entanto, em sua expansão, da “platônica mania divina”, eles têm, em diversos poemas seus, o elemento da melancolia.
Entre a tristeza e a alegria apaixonada, Haroldo e Leminski parecem guiados por Saturno.
Haroldo compôs poemas dedicados a Saturno, em diálogo sobretudo com as obras de Agamben, Walter Benjamin e Baudelaire, como “saturnum in aquario ascendentem”, de Crisantempo: “o plúmbeo / anel de saturno / os anos de chumbo” e “o ciclo / depressivo / o ciclo- / tímido / o tumor benigno / o rictus saturnino” – que, em sua totalidade, remete ao livro Estâncias, de Giorgio Agamben, como Haroldo refere na nota ao poema.


Leminski, por sua vez, embora não tenha composto claramente poemas à melancolia, escreve, em carta a Régis Bonvicino, de 10 de julho de 1979: “muito grilo de saturno (hospital, operação, etc) = pouca motivação para cantar”. Ele subentende a má saúde do filho Miguel, que viria a falecer. Não há dúvida de que o bom humor de Leminski disfarça a melancolia. Diz ele em outra carta, sem data: “não pense que estou de bom humor, miguel não está bem, não estamos mas a gente disfarça”. Leminski não estar bem e disfarçar é a tônica da sua obra. Há poemas dele que conferem esta acídia. Afinal, como disse num outro poema seu, de La vie en close,

um dia sobre nós também
vai cair o esquecimento
como a chuva no telhado
e sermos esquecidos
será quase a felicidade.

Leminski, além de poeta, traduzia e escrevia ensaios, artigos e romances. Nascido em Curitiba, morreu aos 44 anos de idade, em razão de hepatite etílica. Entre 1984 e 1986, aconteceu o lançamento de suas principais traduções: Pergunte ao pó (de John Fante), Vida sem fim (de Lawrence Ferlinghetti), Um atrapalho no trabalho (de John Lennon), Sol e aço (de Yukio Mishima), O supermacho (de Alfred Jarry), Giacomo Joyce (de James Joyce), Satyricon (de Petrônio) e Malone morre (de Samuel Beckett). Em 1987, um ano após o suicídio de Pedro, único irmão, a confirmação de seu talento viria com Distraídos venceremos. Em 1989, a sua morte. Em 1991, o lançamento póstumo de La vie en close, com poemas de intensa melancolia.


Nesses poemas finais, quando fala das queimaduras que não cicatrizam, de sua desconstrução pessoal, Leminski traz a dor concentrada em versos: “a luz se põe / em cada átomo do universo / noite absoluta / desse mal a gente adoece / como se cada átomo doesse / como se fosse esta a última luta”, que contrariam o que ele diz no poema de encerramento de O ex-estranho: “nada sei de Saturno”.
São muitos os poemas presentes com o tema da aproximação da morte. Versos fortes, encontrados em “Como abater uma nuvem a tiros” (“a coisa escrita em sangue / nas paredes das danceterias”), em “Acidente no km 19” (“algo em mim se esvai / coisa que se escoa”), em “Sete dias na vida de uma luz” (“durante sete dias / uma luz brilhou / na ala dos queimados”), em “O que passou, passou” (“Agora, vamos ao testamento. / Hoje, a morte está difícil”), em “Luto por mim mesmo” (“o estilo desta dor / é clássico / dói nos lugares certos / sem deixar rastros”). Leminski, à sua maneira bem-humorada, deixa, igualmente, seus epitáfios, em “LÁPIDE 1 – epitáfio para o corpo” – “Aqui jaz um grande poeta. / Nada deixou escrito. / Este silêncio, acredito, / são suas obras completas” – e “LÁPIDE 2 – epitáfio para a alma” – “aqui jaz um artista / mestre em desastres / / viver / com a intensidade da arte / levou-o ao infarte / / deus tenha pena / dos seus disfarces”.


Já havia esse elemento melancólico em Caprichos & relaxos: “pompa há tanto conquista / cautela tão mal calculada / pausa na pauta / quem sabe em pio pousada / me passe este meio-dia / atravessa este meio-fio / aplaca em luz / a causa desta madrugada / / atiça-me a calma / em cólera e guerra floresça / toda esta falta minha alma”.
Na fase mais concreta evidenciada em “Sol-te”, seção de Caprichos & relaxos, também experimentava o sabor da afasia: “dissabor / de prazer / eu prazo / / dessaber / de passar / acaso / / certeza / sorte / aqui / me jazo”. Neste poema, Leminski estabelece um contraponto entre “acaso” (o azar) e “sorte”, que representariam a “certeza”, ou seja, a “morte”. Daí os versos “aqui / me jazo”, que ecoariam em outros de La vie en close – “vi vidas, vi mortes, / nada vi que se medisse / com o azar que tive / ao ter você, minha sorte”. Há, claro, nesse sentido da perda, da morte inevitável, o significativo “Motim de mim (1968-1988)”, também de La vie en close: “XX anos de xis / XX anos de xerox / XX de xadrez / não busquei o sucesso, / não busquei o fracasso, / busquei o acaso, / esses deus que desfaço”. O tempo assinalado na realização do poema é apenas uma das possíveis interpretações oferecidas por ele: há os “xis” de tentativas e o “xerox”, de poesia feita de forma artesanal. Ao final de duas décadas, apenas a constatação de que nada se buscou (o fracasso ou o sucesso), só o “acaso”, um “deus” que é desfeito pelo poeta, o mesmo talvez do “eu te fiz / agora / / sou teu deus / poema / / ajoelha / e / me / adora”, aquele que “também é o vento” e “está conosco”. Está conosco porque faz parte dessa imaterialidade da qual a morte é peça fundamental. Tamanho desalento aponta para os versos “acabo como começo / canções de fracasso / não fazem mais sucesso”.


Já Haroldo de Campos mostra seu aspecto saturnino pelo hermetismo e pelo diálogo com referências das mais diversas. No poema “Sinfonia dos salmos”, de Xadrez de estrelas, é inevitável perceber que a posição de Haroldo já procurava um elemento hierático, no contato com Deus, que, mais tarde, à la Nietzsche, reverteria-se em processo constitutivo na página branca, afirmando-se sobre a “morte do autor”, trabalhada por Barthes e Foucault. O verso inicial, “A face do Senhor assume os holocaustos” revela uma tentativa de processar um elemento negativo e pétreo diante da necessidade de transcendência, no paralelismo buscado no início da segunda estrofe, “A face do Senhor é o mármore impoluto” – mas também uma acídia compenetrada. Não se sabe até que ponto Haroldo conhecia, nessa época, os textos sobre o barroco alemão de Walter Benjamin, em que era abordada a “origem” do primeiro “filósofo”, Adão, mas pode-se notar sua especial atenção para o Deus supremo do universo, aquele que, para Nietzsche, está “morto”. O verso “E estamos nus, Senhor, algures, no Teu rosto” é bastante poderoso por concentrar toda essa dialética inspirada ao mesmo tempo por uma fonte religiosa e por uma fonte de descrença. Ao confirmar que todos estão nus diante do rosto do Senhor, há um movimento de confirmação e negação, uma vez que “no Teu rosto” indica uma proximidade livre de transcendência.


Um dos poemas que seguem o rastro de “Sinfonia dos salmos” é “A cidade”. Da mesma família, temos “Thálassa Thálassa”. Em “A cidade”, pode-se afirmar que Haroldo passa por um tour de force que mostra sua própria busca como poeta, aos 20 anos de idade, sugerindo-se aqui uma relação entre obra e história pessoal. Como observa Andrés Sánchez Robayna, é um poema, como outros do poeta, com uma linguagem que “ordena [...] a topologia da voz num lugar incondicionado da linguagem”. Esta “voz” não possuiria “origem” nem um “‘emissor’ preciso; é uma voz que não postula um falante, porque [...] não há tanto uma sacralização da linguagem impessoal quanto uma linguagem que fala por si mesma; há, talvez, uma anunciação ‘sacra’, ritual, apoiada num vocabulário de hipnose e numa sintaxe de amplo arco”. Robayna aponta como exemplo o fragmento seguinte, em que Haroldo menciona o nome de um rei que teria fundado o reino babilônico (Nemrod):

Quem, em si mesmo fechado,
Quando a terra é mais verde
Nemrod de forte voz e trinta sagitários
Atrela a seu corcel as sintaxes selvagens
E agita sobre Ti os címbalos de ouro do Poema?

Dividido em cinco partes, o poema, apesar de possuir esse elemento fonocêntrico (com os címbalos, antigos instrumentos de cordas), já perscruta uma linguagem concreta disfarçada nas entrelinhas, através da voz de uma certa tradição cabralina e valeryana: “A hora em que as aranhas invisíveis / Trabalham o fio do silêncio”; “Onde o homem sem nome é apenas um homem à sombra do / Teu Nome”; “O Enterrado é o que jaz em sua idade de pedra”; “O Enterrado é o que jaz requerendo a humilde / Temperatura da pedra”.


O erotismo do corpo, aliado a essa melancolia que atinge o corpo, marca presença, não metafísica, mas no rastro da escritura, ligada à linguagem das estruturas, uma vez que o eu lírico do poeta parece buscar o contorno de um rosto feminino, como nos poemas anteriores da coletânea, porém mais próximo da morte. “Que sei eu do amor sem amor e do sangue fechado / No círculo vicioso de Tuas veias?”; “Ergo a máscara de ouro onde Teu rosto jovem / Desafia os meses e os solstícios de inverno”; “Teu rosto – mandíbula de sal gema – roendo o ar”; “A Grande Cantárida do Sexo afogada em Teu visgo”; “Quem algemado a Teu pulso / Quando a terra é mais fria”; e “O sem nome / Ergue a viseira de diamante e Te contempla / Nos olhos”, são alguns dos versos que conduzem ao fato de que o eu lírico se declara um “Cavaleiro-das-Donzelas” na última parte do poema, um andarilho pelas cidades – os lugares, aqui, são o que menos importa – para aceitar que “as formigas do Poema Te cobrem e Te devoram”, ou seja, visualiza a mulher como uma despedida, aceitando a morte e aproximando Haroldo de Leminski algumas décadas antes de se conhecerem.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Giorgio Caproni e Giorgio Agamben: entre a poesia e a filosofia

Por André Dick

O poeta italiano Giorgio Caproni (1912-1990) finalmente chega ao Brasil, acompanhado pela análise do filósofo, também italiano, que melhor o compreendeu: Giorgio Agamben. O resultado está no livro A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, recém-lançado pela Editora UFSC, com tradução de Aurora Fornoni Bernardini, que também faz uma introdução muito produtiva à vida e à obra do poeta. Ele é capaz de despertar interesse por uma poesia que, apesar de empregar o minimalismo, não se parece quase nada com a de dois italianos que poderiam ser considerados antecessores de Caproni: Giuseppe Ungaretti e Eugenio Montale.


Ele até tem pontos de associação mais evidentes com Ungaretti, por vezes, pela sintaxe turva, pelos cortes e pelo enjambement, que desencadeia, ao mesmo tempo, um silêncio, pronunciado desde a fase inicial, em Come un’allegoria!, como no excelente “Vento de início de verão”: “A essa hora o sangue / do dia inflama ainda / a face do prado, / e se apagaram / as rixas e as pedradas / ruidosas, no vento está vivo / um halitar de bocas fogueadas / de crianças, após desabaladas / correrias”, “Primeira luz” (cujo dístico final é: “(São sempre os pássaros os primeiros / pensamentos do mundo)” e “Tarde de maremma”, cuja segunda estrofe mostra o interesse de Caproni pela infância e conduzindo a outro campo de interesse do Agamben filósofo-linguista.: “De coisas lábeis aparece / a terra: de vozes e quentes / rajadas. / Queimam, tão alegres / fogueiras, as cores das brincadeiras / infantis” – o que se acentua em Ballo a Fontanigorda e Finzioni. Os poemas ganham mais corpo em Cronistoria, Il passagio d’Enea (sobretudo em “Versos”), assim como em Il seme del piangere (em “Ad portam inferi”), e ainda mais em Congedo del viaggiatore cerimonioso & altre prosopopee. O Caproni dos primeiros livros, nesse sentido mais sintético – no tamanho dos poemas –, só regressa em Il muro della terra, Il franco cacciatore, Il Conte di Kevenhüller e Res amissa.


Em Ideia da prosa, Agamben escrevia: “Há poetas – Petrarca é seu arquétipo – nos quais o enjambement zero é a regra, e outros – e Caproni encontra-se entre eles – nos quais o grau marcado tende, pelo contrário, a prevalecer. Na fase tardia de Caproni, porém, esta tendência vai até os limites do inverossímil: aí, o enjambement devora o verso, que se reduz apenas àqueles elementos que permitem atestar a sua presença – portanto, ao seu núcleo específico diferencial, admitindo que o enjambement individualiza, no sentido referido, o traço distintivo do discurso poético”.
Na fase de Caproni em que o enjambement devora o verso, temos um poema como “Desengano”: “Pensava ter atingido / – finalmente – o ponto de mira. / Ilusão! O tão pretendido / alvo era de mentira”. Ou o poético, acima do político, “Pergunta e resposta”: “– Há mais liberdade / no cárcere ou na cidade? / / – Não há liberdade / É cárcere a inteira cidade” (ambos poemas de Res amissa). Ao final do texto de Agamben, “Desapropriada maneira”, que introduz essa antologia de Caproni e originalmente foi prefácio de Res amissa, ele assinala: “O verso é reduzido a seus elementos-limite: o enjambement – se é verdade que este é único critério que permite diferenciar prosa e poesia – e a cesura (Hölderlin defini-a ‘antirrítmica’ e aqui ela é patologicamente dilatada até devorar completamente o ritmo)”, não cabendo “falar de verso livre ou quebrado, mas sim de aprosódia [...]; e de uma prosódia, obviamente, pacientemente calculada e ordenada obsessivamente (os editores conhecem a atenção quase maníaca do último Caproni quanto à partitura tipográfica), mas nem por isso menos destrutiva”.


Por isso, como também escreve Agamben:

[...] se poemas e vida divergem infinitamente no plano da biografia e da psicologia do indivíduo, eles voltam a confundir-se sem resíduo algum no ponto de sua recíproca dessubjetivização. E nesse ponto eles se unem não imediatamente, mas mediatamente. A língua é a mediação. Poeta é quem, na palavra, gera a vida. A vida que o poeta gera na palavra é subtraída tanto da vivência do indivíduo psicossomático quanto da indizibilidade biológica do gênero.

É justamente isso: não há nenhum tipo de experiência que não passe, ao mesmo tempo, pela linguagem.
Como outros poetas da modernidade (a exemplo de August Stramm, Georg Trakl e Guillaume Apollinaire), Caproni serviu no exército: em 1939, foi convocado para servir no 42 Regimento de Infantaria e enviado a Gênova para lutar no front francês. Participou de outra guerra, como lembra Aurora: “de libertação nas montanhas da Val Trebbia”, que estende-se até 1944, quando Caproni, “exercendo a função de prefeito (de Rovegno), entre inúmeras dificuldades, reabre a escola primária da qual passa a ser o único mestre”. A família Caproni, após a guerra, sai de Gênova, atingida pelos bombardeios, para morar na periferia de Roma. No entanto, como lembra Aurora, “o empenho social que deu várias provas (escolheu, inclusive, classes de crianças marginalizadas) desaparece [...] na sua poesia”.


Caproni incorpora bem esse pensamento de tornar a sua linguagem num elemento corrosivo. Seus poemas – apesar de herméticos e, a princípios, fechados, reclusos – ganham sempre o Outro, que é o leitor, sugerindo sempre imagens a partir de um material concreto, mas que não se incomodam em se abstratizar, envolvendo uma sonoridade dura, mas, quando descascada, maleável também aos ouvidos.
Seus poemas finais, aos quais Agamben se refere ao tratar do enjambement que devora o verso, em Ideia da prosa, são, ao mesmo tempo, corrosivos e bem-humorados, sem nenhum elemento de engajamento ou demagogia; pelo contrário, está implícito nas pequenas formas o silêncio questionado por Caproni na sociedade que o nega. Agamben cita um poema:

............... A porta
branca...
A porta
que, da transparência, leva
à opacidade...
A porta
Condenada...

Nesse fragmento, escreve Agamben, a “tradicional consciência métrica do verso é aqui drasticamente reduzida, e as reticências, tão características da fase tardia de Caproni, assinalam precisamente a impossibilidade de desenvolver o tema prosódico para lá do seu núcleo constitutivo”.


Para Agamben, no enjambement, “o verso, no próprio ato com o qual, quebrando um nexo sintático, afirma a sua própria identidade, é, no entanto, irresistivelmente atraído para lançar a ponte para o verso seguinte, para atingir aquilo que rejeitou fora de si: esboça uma figura de prosa, mas com um gesto que atesta a sua versatilidade”. O poeta, entre a poesia e prosa, opta por um meio termo – que dilui a noção de métrica habitual. No poema “Res amissa”, Caproni leva ao limite essa cesura e as reticências como símbolos de um discurso inalcançável: (“[...] Um vento / de choque – um ar / quase silíceo enregela / agora o quarto... / / (É lâmina / de faca?”). Pelas imagens, lembra João Cabral de Melo Neto.
Interessante notar que, pelo menos a meu ver, os poemas das obras finais – que rumam ao silêncio – são os melhores de Caproni, como “Tudo”, “O último arrabalde” – que guarda alguns traços de William Carlos Williams – e “Voltando, em negativo, a uma página de Kierkgaard”, de Il franco cacciatore; “A presa” e “Três improvisos sobre o tema a mão e o rosto”, de Il Conte di Kevenhüller, que parece dialogar com o poema “Anoitecer”, do Drummond de A rosa do povo, além de “O mar como material”, de Il Conte di Kevenhüller, poema extraordinário, que parece dialogar com “Thálassa thálassa”, de Haroldo de Campos. Obviamente, não sei se Caproni tinha a leitura desses nomes (Michael Hamburger, crítico alemão e autor de A verdade da poesia, menciona, por sua vez, bastante Drummond, mostrando o conhecimento de um crítico europeu da poesia moderna brasileira), mas parece-me que esses poemas guardam diálogos quase que explícitos.
Esquecido durante anos na Itália, voltando a ser lido e debatido apenas nos anos 80, Caproni carrega consigo essa herança da modernidade, não há dúvida. Na época em que realizou esses poemas, se não foram aceitos, é porque não havia uma reciprocidade quanto aos temas e às formas abordadas, de cunho ateológico ou não, sobretudo, mas Caproni escreve para quem tem uma visão moderna de poesia - e encontra em Aurora Bernardini, especialista em poesia moderna, sobretudo russa e italiana, uma tradução já referencial.


Por isso, mesmo Agamben afirmando não existir nem mesmo a “teologia negativa” da modernidade (surgida com Hölderlin), na obra de Caproni, trazendo ela “queda sonambúlica do divino e do humano rumo a uma zona incerta”, não imaginamos que, por isso, não haja mais sujeito nela, ou essa zona esteja “achatada no transcendental” – como Agamben já afirmava em determinados momentos de Infância e história. Não creio haver essa negatividade em Caproni, e o indivíduo que ele foca, apesar de indefinido, incerto, nem figura humana nem divina, é ainda um sujeito – de profunda linguagem. Trata-se de um indivíduo que sabe da impossibilidade do silêncio, por isso um sujeito que não se nega à cesura, nem a vislumbrar que o hoje, não sendo mais mitológico, não pode ser mais apropriado – por si ou pela obra.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O Imaginário da infância em Dante Alighieri

Por André Dick

Em seu livro Infância e história, Giorgio Agamben fala que “a infância é a origem da linguagem e a linguagem é a origem da infância”. Para o filósofo italiano, essa infância não é um paraíso perdido, mas continua com o homem, à medida que ele vai se constituindo como sujeito e como falante. É através da linguagem, portanto, que o homem se constitui como homem. Sendo assim, a infância é o limite transcendental da linguagem do homem, pois este se situa entre o semiótico (o conjunto de signos que vai conhecendo) e o semântico (que o conduz para o discurso).
Na mesma infância que Dante, aos nove anos de idade, tendo sua visão, a de Beatriz, ainda viva, procedida de uma ausência não suprida nem no último verso do Paraíso da Divina comédia.


Através da linguagem – de uma linguagem construída, como afirma Agamben, a partir da ideia de infância –, a ausência é permanente no Imaginário de Dante. Mas esse Outro que ele almeja já não é passível de toque; tornado Imaginário, ele se estabelece em sua ausência. Se o Imaginário nos guarda a visão do outro é porque, ao mesmo tempo que explora as subjetividades do autor, ele se constrói também por meio da ausência, que carrega o pensamento da morte, composto pela subjetividade.
A interseção perfeita entre o autor/o Nada (a falta de si mesmo, o não ser) e a falta/o Vazio (ora de uma pessoa, ora de um lugar), com o qual Dante interage através da escritura, é o mote de sua obra. Em Dante, o Imaginário se dá como hipótese de um discurso que se insere no ser humano e se constrói por meio de suas ausências, onde há sua mais intensa subjetividade. A morte, com isso, está ligada diretamente ao Imaginário e à sua conservação, através da memória, o esquecimento e a lembrança, depois de o corpo ser despojado. Também é representação e possibilidade de nos colocar diante do outro, aqui, como elemento do Imaginário. Estar diante de quem se imagina pode, muitas vezes, não conduzir além do espaço que já foi examinado em pensamento, capaz de transcender o Imaginário múltiplo. As palavras também são cobertas por um véu, como o corpo. Também se morre e se vive no pensamento, deixando marcas – nisso se reproduz a visão do outro, entre despojos de um corpo morto.
A poesia de Dante Alighieri representa a procura da essência humana e da visão do outro. Mais do que um poeta, Dante foi um personagem dos seus próprios versos e de suas histórias (para não esquecermos Vita nova), e não é um exagero remeter a permanência literária de um pensamento mitológico, procurado em sua própria personalidade, ao anseio de se reproduzir e se refletir na trajetória pelo inferno, paraíso e purgatório. Grande orador, participou ativamente da vida política de Florença e desejou oniricamente uma ligação amorosa com a figura feminina síntese de sua existência: Beatriz. De suas rimas pedrosas ao resto de sol e poeira sobre suas memórias, Dante coletou o que poderia se chamar de “pedras da memória” de sua primeira visão. Há um laço que o mantém, a partir desse pressuposto, ao que Roland Barthes nomeia “grau zero da escritura”, sobre o qual costuma-se identificar um lento reencontro com a origem da linguagem do autor, e é simplesmente a questão básica sobre a qual Dante trabalhou ao longo de sua suma poética.


Entre o sol (a claridade, a luz) e as estrelas (a luz em meio às trevas), Dante recorda de sua musa Beatriz, num mundo divino comandado por visões, como observa T. S. Eliot (e revisto por Giorgio Agamben). Iluminado pela visão da amada aos nove anos de idade – mote para a partida de Vita nova –, Dante a persegue sem saber que este percurso reproduz a si mesmo, a sua humanidade. Beatriz, seu espelho, reproduz o que ele na infância deixou de ser, diante do pálido futuro que o guardaria como um simples mortal.
Como observa Haroldo de Campos, a “biografia literária” de Dante, além de entrelaçada desdobrar-se erótico-metafísico de uma sobredominante metáfora escritural, fica também indissoluvelmente ligada à sua passagem pela ‘bossa nova’ do tempo, o dolce stil nuovo, marcando-se alternativamente, pela influência do stizzoso (agastadiço, temperalmental) e melancólico Cavalcanti (o poeta do spleen toscano)”. Nesse sentido, George Steiner faz-se produtivo: “Boa parte da poesia da Vita nova dialoga ou desafia outros virtuoses do soneto e da vinheta satírica. Em certos trechos, padrões de rima e versos inteiros são tomados de empréstimo e permutados”. Como também na Divina comédia, para Steiner, Dante faz “um alistamento que revela uma apaixonada prodigalidade do sujeito e um impulso de criatividade tão veemente que parece requerer a representação de um eco, seu espelhamento em outros artistas igualmente reativos”.


Expondo a relação com predecessores e seus contemporâneos, Dante, conforme Steiner, faz com que todos participem da “ficção real composta pelo sujeito criativo”, afinal, mesmo o “mais ‘original’ dos artistas, no sentido mais rigoroso de toda noção de ‘originalidade’, é polifônico”. Desse modo, Dante já inicia Vita nova com uma inverdade em potencial: “Naquela parte do livro da minha memória, antes da qual pouco se poderia ler, se encontra uma rubrica que diz: Incipit Vita nova”. Afirmar “Minha memória”, diante da tradição da qual parte Dante, mostrando, ao mesmo tempo, uma recriação e um diálogo com outros autores, é no mínimo ilusório.
T. S. Eliot veio a dizer que o pequeno livro de Dante, traduzido no Brasil por Décio Pignatari, é uma mistura de “alegoria” e “biografia”. Não é a personalidade do poeta-narrador que é importante. O que importa é a “causa final”, tópico comum na crítica de Eliot, para quem a “fuga da personalidade” era a caracterização mais forte da personalidade.
A própria Beatriz, como pondera Harold Bloom, na linha do crítico Charles Williams, é a maior criação de Dante. Nesse ponto, Bloom compara a figura de Beatriz com a de Dulcinea del Toboso, a amada de Dom Quixote. Assim, vê-se que o “mito de Beatriz, embora seja a invenção central de Dante, só existe dentro de sua poesia”. Para Bloom, Beatriz, para Dante, “é muito mais que uma revelação pessoal ou individual. Ela veio inicialmente ao seu poeta, Dante, mas através dele chega aos que o leem”.
Segundo Bloom, ao analisar a Divina comédia, Dante só procura a si mesmo, o que é uma aposta arriscada do crítico americano, já que este reflete no poeta italiano a hipóstase do Eu solitário, do Autor supremo. Dante, no entanto, visualiza o Outro (Beatriz) como um escape de si mesmo, mas não só: Beatriz é seu reflexo para que deixe de lado sua potência narcísica, ingressando no jogo do Imaginário. Jorge Luis Borges viu o encontro entre Dante e Beatriz como ilusório, afinal, para ele “Beatriz existia infinitamente para Dante; Dante existia muito pouco, e talvez nem existisse para Beatriz. Nossa piedade, nossa veneração nos fazem esquecer essa lamentável desarmonia, que era inesquecível para Dante”. Ele iria potencializar essa escolha pelo Outro na Divina comédia. Essa possibilidade de leitura que abre a obra de Dante – uma mistura, como reflete Eliot, de “alegoria” e “biografia” – costuma ser negada por críticos formalistas e estruturalistas radicais, para quem a vida do escritor não importa e nada acrescenta; que o que importa é somente sua obra. O que vemos, segundo o ponto de vista de Agamben, é que Dante não regressa à infância, mas está inserido nela, na medida em que se torna ser falante.


Giorgio Agamben alia essa análise de Dante à recuperação do conceito de melancolia – sobretudo, sua concepção de sentimento condenatório, pela religião, que a via como a acídia, o enfraquecimento da alma e uma fuga ao divino –, como que para estabelecer um diálogo com o conceito de “fantasma”, na análise que faz, sobretudo, da Vita nova de Dante. Nesse misto entre poesia e prosa, o poeta esquece que nunca possuiu Beatriz, a não ser em seu Imaginário - mas lamenta sua perda. Essa perda do “fantasma” que nunca possuiu indica uma melancolia particular, uma imagem congelada, remete aos textos de Agamben sobre a fotografia e, sobretudo, ao texto “O ser especial”, de Profanações, em que retoma a ideia, provinda de Dante e de Cavalcanti, de que o amor é como um “acidente em substância” - imagem, aliás, de Vita nova. A imagem - ou o fantasma da melancolia – “é gerada a cada instante de acordo com o movimento ou a presença de quem a contempla”. Para o filósofo italiano, “Entre a percepção da imagem e o reconhecer-se nela há um intervalo que os poetas medievais denominavam amor”. Ao se prolongar o intervalo “entre a percepção e o reconhecimento, a imagem é interiorizada como fantasma, e o amor recai na psicologia”. O “fantasma” remete à melancolia, que, por sua vez, indica a voz da morte, negativa, de A linguagem e a morte.


Agamben investiga constantemente a infância e, através da voz impressa, relembra a imagem do “fantasma” dos poetas medievais, no que se liga a ensaios de Estâncias e aos shifters de Jakobson ou aos “índices de enunciação” de Benveniste, em A linguagem e a morte e Infância e história: “A descoberta medieval do amor por obra dos poetas provençais e estilnovistas é, deste ponto de vista, a descoberta de que o amor tem como objeto não diretamente a coisa sensível, mas o fantasma; é, portanto, simplesmente a descoberta do caráter fantasmático do amor. Mas, dada a natureza medial da fantasia, isto significa que o fantasma é, também, o sujeito e não simplesmente o objeto do Eros”. Diante disso, não há um contato com a corporeidade, mas com a imagem, uma “nova pessoa”, “na qual se abolem os confins entre subjetivo e objetivo, corpóreo e incorpóreo, o desejo e seu objeto”. Com esta fantasia, surge o “espírito fantástico”, e a noção de fantasia, sob esse aspecto, é também lembrada num momento de Infância e história – indicando o inexperenciável, como a própria ligação de Dante com Beatriz.
Dante e sua vita nova

Por André Dick

A mimesis dos textos amorosos – a maneira como cada autor lida com as imagens do amor que desponta – marca-se sobretudo pela intertextualidade. A obra Vita nova, de Dante, não existiria sem os provençais e a mitologia greco-latina. Na visão de Erich Auerbach, “a obra lança uma luz essencial sobre a vida interior de Dante”. Isso porque mostra “como ele fazia derivar toda a estrutura do seu pensamento do misticismo amoroso do stil nuovo e indica o lugar que lhe cabe entre os seus companheiros de literatura”. Nesse sentido, segundo Giorgio Agamben, em Estâncias, “não é possível, especialmente, compreender o cerimonial amoroso que a lírica trovadoresca e os poetas do dolce stil nuovo deixaram em herança para a sociedade ocidental moderna, se não se considerar o fato de que ele se apresenta, desde a origem, como um processo fantasmático”.


Esse processo se dá por uma incorporação visual do autor, no caso Dante Alighieri, em sua obra Vita nova, já na Idade Média, da lírica trovadoresca e do dolce stil nuovo (ligação explorada sobretudo por Augusto de Campos no volume Invenção, em que apresenta algumas das melhores traduções em língua portuguesa de Dante). E essa percepção de Dante, por meio do entendimento de uma tradição, leva à narrativa e ao “processo fantasmático”, ao qual nos referimos anteriormente, que compõe, partindo do primeiro encontro com sua amada, sua “musa teologal”, ocorrido por volta de 1274, quando ele tinha nove anos de idade. Há toda uma concepção religiosa medieval nesse primeiro encontro de Dante com Beatriz: é como se ela fosse a salvação de sua alma penada, sofrida, vagando errante pelo mundo. E como se “o espírito animado” o acompanhasse.
Para isso, utiliza uma linguagem poética, com metáforas e um sentimento de perplexidade. Ele comenta em seguida, sob o efeito da visão (em tradução primorosa de Décio Pignatari, extraída do volume Retrato do amor quando jovem):

Dali em diante, o Amor tomou conta da minha alma, que logo se dispôs a desposá-lo: em relação a mim, foi ganhando tanta firmeza e poderio, pela virtude que lhe transmitia minha imaginação, que nada mais me restava a não ser atender os seus menores desejos. Ordenava-me, muitas vezes, que eu fosse ver aquela menina-anja: saía à sua procura e muitas vezes a vi, quando menino; sua nobre figura e sua louvável conduta me levavam a dizer as palavras de Homero: “Não parecia filha de gente mortal, mas de um deus”.

Coloco em itálico a passagem que mostra exatamente um dos elementos do discurso amoroso (que se amplificam na tradução de Décio, autor de alguns dos poemas amorosos mais surpreendentes): a virtude que transmite a imaginação do indivíduo (seu Imaginário) à pessoa amada, no caso, uma “menina anja”.


E, para comprovar que o relato de Dante não é apenas de sua memória pessoal, ele evoca as palavras de Homero para falar da beleza e da louvável conduta de Beatriz. Mas, antes de tudo, a paixão amorosa surge quase como um incidente corriqueiro (Dante olha a praça e, de repente, enxerga a mulher comparável a uma deusa, Afrodite).
O segundo encontro aconteceria nove anos depois (número simbólico para Dante), quando a “menina anja” surgiu novamente diante de Dante:

[...] passando por uma rua, volveu os olhos para a direção onde eu me encontrava a tremer: graças, porém, à sua gentileza inefável, que hoje é louvada na vida eterna, cumprimentou-me tão virtuosamente que, naquela saudação, julguei ver todas as expressões da santidade. Era, sem dúvida, meio-dia, quando me atingiu aquela saudação tão doce; e, como era a primeira vez que as suas palavras se moviam em direção aos meus ouvidos, fui tomado de um tal langor que, como um inebriado, afastei-me da companhia das pessoas e me recolhi a um canto ermo dos meus aposentos, onde pudesse pensar na mais que gentil.

Veja-se que Beatriz – uma figura já louvada na vida eterna, pois o livro é a “memória” de Dante – lhe trazia “todas as expressões da santidade” apenas pelo ato de saudá-lo. Já recolhido ao seu quarto, Dante imaginaria, tomado por um “doce sono”, uma “névoa cor de fogo, em meio à qual discerni a figura de um senhor de aspecto amedrontador a quem o visse, mas que, no entanto, coisa extraordinária, dava demonstrações de uma alegria interna; muitas coisas dizia com suas palavras, das quais eu entendia apenas algumas poucas – entre elas, as seguintes: ‘Eu sou o seu senhor’”. Essa visão trazia nos braços o corpo de Beatriz, apertando, numa das mãos, “uma coisa que ardesse em fogo”, e ele lhe disse: “Olhe o seu coração”. Beatriz parecia comer o coração que a figura trazia nas mãos.


A alegria do vulto então se transformaria em choro e amargura, e o senhor se afastaria, acordando Dante. Este vulto reaparece ao longo de Vita nova, instigando Dante a compor poemas sobre seu sofrimento ou dando conselhos sobre Beatriz. Como escreve Giorgio Agamben, “não é um corpo externo, mas uma imagem interior, ou melhor, o fantasma impresso, através do olhar, nos espíritos fantásticos, que é a origem e o objeto do enamoramento; mas só a elaboração atenta e a desmedida contemplação desse fantástico simulacro mental eram consideradas capazes de gerar uma autêntica paixão amorosa”. Após essa visão, Dante então escreve seu primeiro soneto:

A toda alma gentil ou que no peito
sinta vibrar os versos que ora digo,
solicito que fale-me a respeito,
saudando o amor, nosso comum amigo.

Já era aquela hora em que, ao leito,
se recolhem todos, menos o céu antigo,
com seus astros, quando me vi sujeito,
ao vulto de um Amor quase inimigo.

Afetava alegria, ao comprimir
meu coração na mão, tendo nos braços
minha senhora, em panos, a dormir.

Depois a despertava e ela, aos pedaços,
o coração se punha a consumir.
Chorando, o Amor se volve sobre os passos.

Há um diálogo de Dante obviamente com o Imaginário, com o fantasma incorpóreo a que se refere Agamben. No entanto, mais do que isso, há um congelamento de Dante na linguagem que ele descobre na infância: Beatriz é a imagem que deixa Dante no eterno momento de descoberta da linguagem, que remete ao que Agamben escreve em Infância e história. Beatriz representa a sua busca incessante pela linguagem, e é o que o acompanha. Agamben, diga-se de passagem, investiga a infância dessa constituição do “eu” e relembra a imagem do “fantasma” dos poetas medievais, em Infância e história.


Agamben procura constantemente, com isso, localizar elementos que possam explicar que o sagrado está ligado ao profano, ou seja, o artista visto como uma espécie de representante da humanidade é uma figura passada; a linguagem de cada um pertence à comunidade com quem convive. A infância instaura na linguagem a cisão entre língua e discurso, entre o semiótico e o semântico, sistema de signos e discurso. O sujeito da linguagem é fundamento da experiência e do conhecimento, e a origem transcendental da linguagem se localiza, portanto, na infância do homem, a pura língua do discurso humano.
A infância em questão, no entanto, não assinala apenas um período, mas “coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dele efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito”. Desse modo, Dante compõe não só Vita nova, mas a sua obra dita mais importante, A divina comédia. A figura de Beatriz, que o ajuda a descobrir, no caso, a sua linguagem, se transforma numa referência – é o “processo fantasmático” que estende a infância para dentro do sujeito, a imagem do Outro dentro de si mesmo.
Essas visões, próprias a um autor de Idade Média, sem saber que sua escrita representa uma antecipação da modernidade, acabam fazendo com que a obra revele sua própria construção, à medida que o autor a conta a partir de uma possível experiência pessoal. Para Roland Barthes, Vita nova é uma “obra-maquete”: “se apresenta como sua própria experimentação: ela encena uma produção ou, em todo o caso, um dispositivo para produzir efetivamente (e não apenas a veleidade de produzir)”. A sua “narrativa leva ao poema (se bem que tenha sido escrita, ao que parece, depois deste) e o poema se coroa, retroativamente, com a exposição retórica de sua composição (produção)”.


Mas essa experiência, moderna, só sobrevive a partir do diálogo com o ambiente que cerca Dante e o que o antecede, que é a tradição, e sua própria descoberta da linguagem. Como observa Giorgio Agamben, “só na cultura medieval é que o fantasma emerge ao primeiro plano como origem e objeto de amor, e o lugar próprio de Eros se desloca da visão para a fantasia”. É esse Eros que se desloca da visão para a fantasia que mais se apresenta na Vita nova dantesca – e acaba dialogando com a fantasia que a própria tradição traz consigo. Por isso, a modernidade, e Vita nova a confirma, é uma fantasia tão definitiva.