Poesia e filosofia em Giorgio Agamben (I)
Por André Dick
Desde o lançamento de Homo sacer, o filósofo italiano Giorgio Agamben, nascido em Roma, em 1942, vem recebendo atenção no Brasil, por meio de Profanações (Boitempo Editorial) e Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental (Ed. UFMG), A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade e Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história (ambos lançados pela UFMG). Fixemo-nos nos livros que Agamben dedica mais a fazer uma interseção entre literatura e filosofia. Nesse sentido, Agamben, como Derrida, é um autor limítrofe. Todos esses livros são múltiplos, mostrando uma obra em plena realização e não se delimitam ao campo em que Agamben está começando a ser mais inserido: no do direito, em razão, sobretudo, dos admiráveis Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I e Estado de exceção, este continuando uma discussão já iniciada por Derrida em Força de lei, influenciado por Walter Benjamin. Ou seja, a procura, aqui, é pela ligação que Agamben, muito particularmente, faz da filosofia com a literatura – o que não pode ser totalizado, claro, com este breve texto.
A infância, na obra de Giorgio Agamben, é construída pela linguagem e por aquilo que o filósofo chama de “Voz”, que delineia o indivíduo. Por isso, para Agamben, em A linguagem e a morte, a Voz (com maiúscula para distingui-la da voz como mero som) “tem o estatuto de um não-mais (voz) e de um não-ainda (significado)”, constituindo uma “dimensão negativa”, produzindo-se por meio dos schifters de Roman Jakobson e os “índices de enunciação” de Benveniste, produzindo-se o conhecimento da linguagem. Há uma certa crítica a Derrida, quando Agamben afirma que a metafísica não é simplesmente o primado da voz sobre a grammá (a letra), pois, se a metafísica indica um origem, ela evoca uma Voz suprimida, negativa. Para Agamben, a voz (phoné) é, antes de tudo, a representação da morte, o que, para Derrida, seria basicamente a vida em detrimento do texto, da escrita, o que ele trabalhou em A farmácia de Platão (ensaio de La dissémination, publicado no Brasil como livro independente). Nesse sentido, o homem é um falante, pelo qual se constrói o que diz, ou seja, a morte.
Segundo Agamben, vivemos hoje “naquela extrema fímbria da metafísica em que esta retorna – como niilismo – ao próprio fundamento negativo”. O pensador lembra que, para Hegel, a linguagem “não era simplesmente a voz do homem, mas o articular-se desta em ‘voz da consciência’ através de uma Voz da morte”. A Voz faz parte do Dasein heideggeriano: aproxima-se intimamente da morte ou seja, ela pensa a morte, daí o “pensamento da morte” ser “o pensamento da Voz”, e esta se converte sempre em negativo do Ser, na visão de Agamben, de Hegel a Heidegger. “Ter experiência da morte como morte significa, efetivamente, fazer experiência da supressão da voz e do surgimento, em seu lugar, de outra Voz [...] que constitui o originário fundamento negativo da palavra humana” (Há um motivo para esses filósofos lhe servirem de referência: Agamben assistiu aos seminários de Martin Heidegger na Alemanha, em Le Thor, entre 1966 e 1968, sobre Heráclito – que também surge ao longo de sua exposição filosófica – e Hegel.) Agamben prossegue, afirmando que “colher a Voz pode significar apenas pensar além destas oposições: logo, pensar o Absoluto”, pelo qual a filosofia “pensa o próprio fundamento negativo” Segundo ele, de forma poética, “A filosofia é esta viagem, este retorno, a partir de si para si mesma da palavra humana que, abandonando a própria morada habitual da voz, se abre ao terror do nada e, simultaneamente, à maravilha do ser e, transformada em discurso significante, retorna afinal, como saber absoluto, à Voz”, constituindo a epistemologia negativa e uma reinterpretação da própria metafísica.
O filósofo italiano Giorgio Agamben, como Jacques Derrida, entende como vital a ligação entre filosofia e literatura. Em vários momentos, Agamben entrelaça seus argumentos sobre a negatividade a uma concepção poética: “Antes de mais nada, a poesia parece assumir desde sempre aquele caráter – simultaneamente universal e negativo – do ‘este’, cuja descoberta orientara a crítica hegeliana da certeza sensível”. A partir de imagens e da construção linguística do poema “O infinito”, de Leopardi, por exemplo, ele escreve: “A palavra poética acontece, pois, de tal modo que o seu acontecimento escapa já sempre em direção ao futuro e ao passado, e o lugar da poesia é sempre um lugar de memória e repetição”. Desenha-se uma convergência entre filosofia e poesia: numa espécie de hermenêutica, o filósofo avalia que a experiência poética da dicção – com seu trabalho por meio dos schifters da linguagem – coincide com a “experiência da linguagem da filosofia”. Aliás, adverte Agamben, “a poesia – toda poesia – contém, aliás, com respeito a esta, um elemento que já adverte sempre quem a escuta ou repete de que o evento de linguagem em questão já foi e retornará infinitas vezes”, rememorando também a concepção de “musa” para os gregos, que implicava a experiência da “inapreensibilidade do lugar originário da palavra poética”. A filosofia teria nascido como tentativa de “liberar a poesia da sua ‘inspiração’”, e consegue reter a Musa, para fazer dela, “como ‘espírito’, o seu próprio sujeito; mas este espírito (Geist) é, precisamente, o negativo (das Negative), e a ‘voz mais bela’ [...], que, segundo Platão, compete à Musa dos filósofos, é uma voz sem som”. É possível notar, nessa concepção de Agamben, uma tendência novamente a visualizar a infância, a negatividade do discurso.
De modo geral, A linguagem e a morte, mesmo com suas referências literárias, é o livro de Agamben, pelo menos entre os lançados no Brasil, mais filosófico, mesclando ideias de Hegel e de Heidegger numa direção até então não explorada nem por nomes que se dedicaram a estudar tais autores, como Derrida e Jürgen Habermas. Além disso, subjacente, há uma concepção religiosa que apresenta pontos de contato com vários momentos de Profanações e de Estâncias. Trata-se, além disso, de um texto fluido, mesmo que longo, que vai apresentando os pressupostos com enorme domínio, dispondo as referências, a Aristóteles e a Platão, por exemplo, com várias citações em grego, sem cansar.
No entanto, é no ensaio “Programa para uma revista”, de Infância e história, que Agamben compõe a ideia – igual à de A linguagem e a morte – de que a poesia ajuda a solidificar uma compreensão sobre essa passagem do ser humano para a linguagem. Nesse sentido, percebe-se que sua interpretação sobre Leopardi e de autores gregos (em A linguagem e a morte), Baudelaire, Dante e Cavalcanti (em Estâncias) e da poesia moderna (em Infância e história), mostra um autor extremamente plural e voltado para o sentido da ética literária como um posicionamento poético, o que ele vai explorar em Homo sacer. Agamben, nesse sentido, é o oposto do Platão de A república, preocupado com a sanidade das pessoas em detrimento dos artistas e, sobretudo, dos poetas, sendo possível perceber que hoje a poesia é também uma espécie de homo sacer, que deve ser morta sem piedade em praça pública. Agamben, no entanto, prova que a perseguição é nefasta: não se pode, sobretudo, perseguir a linguagem, inerente ao ser humano. Ele é uma prova cabal de que a linguística, cada vez mais dominada por elementos afastados do poético, guarda o caminho para que a literatura também se manifeste por uma ética do discurso.
domingo, 23 de janeiro de 2011
Poesia e filosofia em Giorgio Agamben (II)
Por André Dick
Em Profanações, com textos curtos, alguns quase em forma de fragmentos e de aforismos (no melhor estilo dos textos de Schlegel e Novalis, do romantismo de Iena, mas como uma visão menos ideológica, não percebendo o artista como salvador da humanidade), Agamben continua a linha de Walter Benjamin e Michel Foucault ao propor a recuperação de uma modernidade situada na saturação de uma certa paisagem romântica.
Agamben convida a profanar o sagrado, analisando a relação entre religião e capitalismo. Para ele, o profano é o que é restituído ao mundo dos homens, ao uso comum. Agamben observa que religio não deriva de religare (o que liga e une o humano e o divino), mas de “relegare”, indicando a “atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o ‘reler’) perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano”. Desse modo, “religio” não é o que une homens e deuses, “mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos”, havendo uma ligação entre as esferas do sagrado e do jogo, trazendo à cena o pensamento infantil. O jogo traz algo de sagrado, mas não sai da esfera do profano, o que remete à ligação e a constituição do homem na infância - na discussão proposta em Infância e história. Agamben avalia, baseado em Benjamin, que o capitalismo não representa apenas uma "secularização da fé protestante", mas ele mesmo é um “fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo”. No lugar da religião, que havia uma passagem do sagrado para o profano e do profano para o sagrado, o capitalismo institui o vazio do consumo, realizando a “pura forma da separação, sem mais nada a separar”: a religião capitalista “está voltada para a criação de algo Improfanável”. Ou seja, ela almeja o consumo absoluto, e, perdendo-se no vazio, faz com que o ser humano não consiga profanar esse mesmo consumo, e não se separe da ideia de que esse consumo é um fetiche.
A avaliação que Agamben faz da religião capitalista guarda correspondência direta com a seção “No mundo de Odradek: a obra de arte frente à mercadoria”, de Estâncias, em que é traçado uma ponte entre Marx e Baudelaire, com seu fetiche pela mercadoria. Para Agamben, esse fetiche leva à irrealidade.
Para isso, Agamben parte de uma interpretação de Freud sobre o fetiche: a negação do menino da ausência do pênis materno, e a sua negação dessa ausência, cria uma analogia para se estabelecer uma ponte com o objetivo da poesia moderna. O objeto-fetiche é algo concreto, mas, “como presença de uma ausência”, é, ao mesmo tempo, “imaterial e intangível, por remeter continuamente para além de si mesmo, para algo que nunca se pode possuir realmente”, sendo que o valor de uso não é maior, hoje, do que o valor de troca, o que mostra a inapreensibilidade do objeto: a sua presença-ausência. Sob o ponto de vista poético, a razão é que tornar a obra num fetiche implica aceitar a sua própria intocabilidade. No entanto, é preciso profaná-la, ou seja, transformá-la em mercadoria: a poesia, sob esse ângulo, passa a ser utilizada não mais como arte ou como mercadoria, mas como uma espécie de mistura, em que as duas se anulam.
Para Agamben, a grandeza de Baudelaire foi ele transformar em mercadoria e em fetiche a própria obra de arte. A partir da ideia de que a poesia não tem outro fim senão ela mesma, Baudelaire imprime à obra de arte o valor de troca que possui a mercadoria. Desse modo, ele impôs à obra um caráter de mercadoria absoluta, cujo valor seria a inutilidade, ou seja, o Improfanável. A mercadorização absoluta da obra de arte.
A lição que Baudelaire deixou à poesia moderna “é que o único modo de superar a mercadoria consistia em levar ao extremo suas contradições, a ponto de ela acabar abolida enquanto mercadoria, com o objetivo de devolver o objeto à sua verdade”, e, a partir daí, Agamben avalia que como o sacrifício “restitui ao mundo sagrado o que o uso servir degradou e tornou profano, assim também, através da transfiguração poética, o objeto é arrancado tanto da fruição quanto da acumulação, e restituído ao seu estatuto original”. Esse estatuto serve da própria descoberta da linguagem. Assim, “Se é só através da destruição que o sacrifício consagra, assim também é só através do estranhamento que a torna inapreensível, e através da inteligibilidade e da autoridade tradicionais, que a mentira da mercadoria se transforma em verdade. Esse é o sentido da teoria da art pour l'art, o que de modo algum significa gozo da arte por si mesma, mas destruição da arte por obra da arte”.
O equívoco de Agamben parece ser de que a condição para esta tarefa sacrifical é o artista levar às últimas consequências o “princípio da perda e do desapossamento de si”. Agamben, a partir daí, incursiona constantemente na impessoalidade de fundo romântico, quando afirma: “Depois de ter transformado a obra em mercadoria, o artista joga agora também sobre si a máscara desumana da mercadoria e abandona a imagem tradicional do humano. O que os críticos reacionários da arte moderna esquecem, quando denunciam sua desumanização, é que o centro de gravidade da arte nunca residia, no caso das grandes épocas artísticas, na esfera humana” – uma afirmação que pode ser contestada pela própria descoberta da linguagem proposta por Agamben em seus textos. Com a poesia moderna, há a novidade de que, “diante de um mundo que glorifica o homem na mesma proporção em que o reduz a objeto, ela desmascara a ideologia humanitária [...]”.Agamben toma o caminho da impessoalidade no sentido do sublime, o que é sempre um risco, quando afirma que, por meio de autores como Apollinaire, Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, Matisse, Montale e Celan, a poesia moderna “sinaliza para essa região inquietante, na qual já não existem nem homens nem deuses, e onde, como um ídolo primitivo, só se eleva incompreensivelmente além de si mesma uma presença que é, ao mesmo tempo, sagrada e miserável, fascinante e tremenda, uma presença que carrega consigo, contemporaneamente, a fixa materialidade do corpo morto e a fantasmática inapreensibilidade do ser vivo”. Ora, o que parece desumano ainda é linguístico e profano. Basta vermos o “Je est un autre”, de Rimbaud, que visa ao divino - mas com um aspecto moderno. Daí, neste caso, Agamben se contradizer, quando afirmar que há uma destruição da experiência na poesia moderna. A experiência, como vemos em Infância e história, continua sendo a descoberta constante da linguagem.
Por André Dick
Em Profanações, com textos curtos, alguns quase em forma de fragmentos e de aforismos (no melhor estilo dos textos de Schlegel e Novalis, do romantismo de Iena, mas como uma visão menos ideológica, não percebendo o artista como salvador da humanidade), Agamben continua a linha de Walter Benjamin e Michel Foucault ao propor a recuperação de uma modernidade situada na saturação de uma certa paisagem romântica.
Agamben convida a profanar o sagrado, analisando a relação entre religião e capitalismo. Para ele, o profano é o que é restituído ao mundo dos homens, ao uso comum. Agamben observa que religio não deriva de religare (o que liga e une o humano e o divino), mas de “relegare”, indicando a “atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o ‘reler’) perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano”. Desse modo, “religio” não é o que une homens e deuses, “mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos”, havendo uma ligação entre as esferas do sagrado e do jogo, trazendo à cena o pensamento infantil. O jogo traz algo de sagrado, mas não sai da esfera do profano, o que remete à ligação e a constituição do homem na infância - na discussão proposta em Infância e história. Agamben avalia, baseado em Benjamin, que o capitalismo não representa apenas uma "secularização da fé protestante", mas ele mesmo é um “fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo”. No lugar da religião, que havia uma passagem do sagrado para o profano e do profano para o sagrado, o capitalismo institui o vazio do consumo, realizando a “pura forma da separação, sem mais nada a separar”: a religião capitalista “está voltada para a criação de algo Improfanável”. Ou seja, ela almeja o consumo absoluto, e, perdendo-se no vazio, faz com que o ser humano não consiga profanar esse mesmo consumo, e não se separe da ideia de que esse consumo é um fetiche.
A avaliação que Agamben faz da religião capitalista guarda correspondência direta com a seção “No mundo de Odradek: a obra de arte frente à mercadoria”, de Estâncias, em que é traçado uma ponte entre Marx e Baudelaire, com seu fetiche pela mercadoria. Para Agamben, esse fetiche leva à irrealidade.
Para isso, Agamben parte de uma interpretação de Freud sobre o fetiche: a negação do menino da ausência do pênis materno, e a sua negação dessa ausência, cria uma analogia para se estabelecer uma ponte com o objetivo da poesia moderna. O objeto-fetiche é algo concreto, mas, “como presença de uma ausência”, é, ao mesmo tempo, “imaterial e intangível, por remeter continuamente para além de si mesmo, para algo que nunca se pode possuir realmente”, sendo que o valor de uso não é maior, hoje, do que o valor de troca, o que mostra a inapreensibilidade do objeto: a sua presença-ausência. Sob o ponto de vista poético, a razão é que tornar a obra num fetiche implica aceitar a sua própria intocabilidade. No entanto, é preciso profaná-la, ou seja, transformá-la em mercadoria: a poesia, sob esse ângulo, passa a ser utilizada não mais como arte ou como mercadoria, mas como uma espécie de mistura, em que as duas se anulam.
Para Agamben, a grandeza de Baudelaire foi ele transformar em mercadoria e em fetiche a própria obra de arte. A partir da ideia de que a poesia não tem outro fim senão ela mesma, Baudelaire imprime à obra de arte o valor de troca que possui a mercadoria. Desse modo, ele impôs à obra um caráter de mercadoria absoluta, cujo valor seria a inutilidade, ou seja, o Improfanável. A mercadorização absoluta da obra de arte.
A lição que Baudelaire deixou à poesia moderna “é que o único modo de superar a mercadoria consistia em levar ao extremo suas contradições, a ponto de ela acabar abolida enquanto mercadoria, com o objetivo de devolver o objeto à sua verdade”, e, a partir daí, Agamben avalia que como o sacrifício “restitui ao mundo sagrado o que o uso servir degradou e tornou profano, assim também, através da transfiguração poética, o objeto é arrancado tanto da fruição quanto da acumulação, e restituído ao seu estatuto original”. Esse estatuto serve da própria descoberta da linguagem. Assim, “Se é só através da destruição que o sacrifício consagra, assim também é só através do estranhamento que a torna inapreensível, e através da inteligibilidade e da autoridade tradicionais, que a mentira da mercadoria se transforma em verdade. Esse é o sentido da teoria da art pour l'art, o que de modo algum significa gozo da arte por si mesma, mas destruição da arte por obra da arte”.
O equívoco de Agamben parece ser de que a condição para esta tarefa sacrifical é o artista levar às últimas consequências o “princípio da perda e do desapossamento de si”. Agamben, a partir daí, incursiona constantemente na impessoalidade de fundo romântico, quando afirma: “Depois de ter transformado a obra em mercadoria, o artista joga agora também sobre si a máscara desumana da mercadoria e abandona a imagem tradicional do humano. O que os críticos reacionários da arte moderna esquecem, quando denunciam sua desumanização, é que o centro de gravidade da arte nunca residia, no caso das grandes épocas artísticas, na esfera humana” – uma afirmação que pode ser contestada pela própria descoberta da linguagem proposta por Agamben em seus textos. Com a poesia moderna, há a novidade de que, “diante de um mundo que glorifica o homem na mesma proporção em que o reduz a objeto, ela desmascara a ideologia humanitária [...]”.Agamben toma o caminho da impessoalidade no sentido do sublime, o que é sempre um risco, quando afirma que, por meio de autores como Apollinaire, Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, Matisse, Montale e Celan, a poesia moderna “sinaliza para essa região inquietante, na qual já não existem nem homens nem deuses, e onde, como um ídolo primitivo, só se eleva incompreensivelmente além de si mesma uma presença que é, ao mesmo tempo, sagrada e miserável, fascinante e tremenda, uma presença que carrega consigo, contemporaneamente, a fixa materialidade do corpo morto e a fantasmática inapreensibilidade do ser vivo”. Ora, o que parece desumano ainda é linguístico e profano. Basta vermos o “Je est un autre”, de Rimbaud, que visa ao divino - mas com um aspecto moderno. Daí, neste caso, Agamben se contradizer, quando afirmar que há uma destruição da experiência na poesia moderna. A experiência, como vemos em Infância e história, continua sendo a descoberta constante da linguagem.
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sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
Traduções de Arthur Rimbaud
Por André Dick
Sensation
Par les soirs bleus d’été, j’irai dans les sentiers,
Picoté par les blés, fouler l’herbe menue:
Rêveur, j’en sentirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.
Je ne parlerai pas, je ne penserai rien,
Mais l’amour infini me montera dans l’âme;
Et j’irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, heureux – comme avec une femme.
Mars 1870
Sensação
Nas tardes de verão, irei pelo caminho,
Pelo trigo, sobre a grama miúda:
Um frescor aos meus pés, sozinho,
E o vento a banhar minha cabeça desnuda.
Sigo em silêncio, não pensando em nada:
Meu amor procura em minha alma abrigo,
Boêmio, irei longe, muito longe, pela estrada,
Alegre – como se levasse uma mulher comigo.
Março, 1870
L’éternité
Elle est retrouvée.
Quoi? – L’Éternité.
C’est la mer allée
Avec le soleil.
Âme sentinelle,
Murmurons l’aveu
De la nuit si nulle
Et du jour en feu.
Des humains suffrages,
Des communs élans,
Là tu te dégages
Et voles selon.
Puisque de vous seules,
Braises de satin,
Le Devoir s’exale
Sans qu’on dise: enfin.
Là pas d’espérance,
Nul orietur.
Science avec patience,
Le supplice est sûr.
Elle est retrouvée.
Quoi? – L’Éternité.
C’est la mer allée
Avec le soleil.
Mai 1872
A eternidade
Ela está retrovada.
Quem? – A eternidade.
O mar some na calada
Com o sol que parte.
Alma sentinela,
Murmura seu chamado
De uma noite nula
De um dia queimado.
Dos atos humanos,
Impulsos de coração,
Você se livra de enganos
Voando então.
Pois apenas delas,
Brasas de cetim,
O Dever se exala
E não diz: enfim.
Lá não há esperança
E não há destino.
Ciência e paciência,
O suplício é vizinho.
Ela está retrovada.
Quem? – A eternidade.
O mar some na calada
Com o sol que parte.
Maio, 1872
Au Cabaret-Vert
cinq heures du soir
Depuis huit jours, j’avais déchiré mes bottines
Aux cailloux des chemins. J’entrais à Charleroi.
− Au Cabaret-Vert: je demandai des tartines
De beurre et du jambon qui fût à moitié froid.
Bienheureux, j’allongeai les jambes sous la table
Verte: je contemplai les sujets très naïfs
De la tapisserie. − Et ce fut adorable,
Quand la fille aux tétons énormes, aux yeux vifs,
− Celle-là, ce n’est pas un baiser qui l’épeure! −
Rieuse, m’apporta des tartines de beurre,
Du jambon tiède, dans un plat colorié,
Du jambon rose et blanc parfumé d'une gousse
D’ail, − et m'emplit la chope immense, avec sa mousse
Que dorait un rayon de soleil arriéré.
Octobre 70
No Cabaré Verde
às cinco horas da tarde
Oito dias depois, minhas botinas rasgadas
Pelas pedras do caminho: em Charleroi, entrei
– No cabaré verde: peço torradas
Com manteiga e presunto, feito um rei.
Descansado, jogo as pernas sobre a mesa
Verde: contemplo os traços mais ingênuos
De uma tapeçaria. – E, grande surpresa,
Uma garota de seios grandes, olhos plenos
– Não será um beijo que a deixe menos meiga! –
Sorridente, me traz torradas de manteiga
Com presunto, num prato colorido.
O presunto é rosa e branco, perfume de dente-
de-alho. Me dê um chope, com seu sabor excelente
Que doura um raio de sol ferido.
Outubro, 1870
Ma bohème (Fantaisie)
Je m’en allais, les poings dans mes poches crevées;
Mon paletot aussi devenait idéal;
J’allais sous le ciel, Muse ! et j'étais ton féal;
Oh! là là! que d’amours splendides j’ai rêvées!
Mon unique culotte avait un large trou.
– Petit-Poucet rêveur, j'égrenais dans ma course
Des rimes. Mon auberge était à la Grande Ourse.
– Mes étoiles au ciel avaient un doux frou-frou
Et je les écoutais, assis au bord des routes,
Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes
De rosée à mon front, comme un vin de vigueur;
Où, rimant au milieu des ombres fantastiques,
Comme des lyres, je tirais les élastiques
De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur!
Minha boêmia (Fantasia)
Já me ia, com as mãos no bolso sem costura
Meu paletó assim ficava ideal
Sob o ceú, musa!, eu fui seu amigo principal
Oh! Que coisa! Sonhando amores com bravura!
O meu único par de calças tinha um furo
– Pequeno polegar de rimas ao redor.
Meu albergue fica na Ursa-Maior
– Meus astros no céu rangem murmúrios.
Sentado, eu os ouvia, à beira das rotas
Em noites de setembro, nas quais senti as gotas
Da rosa à minha frente, como o vinho da razão.
Onde, rimando em meio a paisagens fantásticas
Eu tomava, como dos lírios, as botinas elásticas
Dos sapatos feridos, um pé preso no meu coração!
Por André Dick
Sensation
Par les soirs bleus d’été, j’irai dans les sentiers,
Picoté par les blés, fouler l’herbe menue:
Rêveur, j’en sentirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.
Je ne parlerai pas, je ne penserai rien,
Mais l’amour infini me montera dans l’âme;
Et j’irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, heureux – comme avec une femme.
Mars 1870
Sensação
Nas tardes de verão, irei pelo caminho,
Pelo trigo, sobre a grama miúda:
Um frescor aos meus pés, sozinho,
E o vento a banhar minha cabeça desnuda.
Sigo em silêncio, não pensando em nada:
Meu amor procura em minha alma abrigo,
Boêmio, irei longe, muito longe, pela estrada,
Alegre – como se levasse uma mulher comigo.
Março, 1870
L’éternité
Elle est retrouvée.
Quoi? – L’Éternité.
C’est la mer allée
Avec le soleil.
Âme sentinelle,
Murmurons l’aveu
De la nuit si nulle
Et du jour en feu.
Des humains suffrages,
Des communs élans,
Là tu te dégages
Et voles selon.
Puisque de vous seules,
Braises de satin,
Le Devoir s’exale
Sans qu’on dise: enfin.
Là pas d’espérance,
Nul orietur.
Science avec patience,
Le supplice est sûr.
Elle est retrouvée.
Quoi? – L’Éternité.
C’est la mer allée
Avec le soleil.
Mai 1872
A eternidade
Ela está retrovada.
Quem? – A eternidade.
O mar some na calada
Com o sol que parte.
Alma sentinela,
Murmura seu chamado
De uma noite nula
De um dia queimado.
Dos atos humanos,
Impulsos de coração,
Você se livra de enganos
Voando então.
Pois apenas delas,
Brasas de cetim,
O Dever se exala
E não diz: enfim.
Lá não há esperança
E não há destino.
Ciência e paciência,
O suplício é vizinho.
Ela está retrovada.
Quem? – A eternidade.
O mar some na calada
Com o sol que parte.
Maio, 1872
Au Cabaret-Vert
cinq heures du soir
Depuis huit jours, j’avais déchiré mes bottines
Aux cailloux des chemins. J’entrais à Charleroi.
− Au Cabaret-Vert: je demandai des tartines
De beurre et du jambon qui fût à moitié froid.
Bienheureux, j’allongeai les jambes sous la table
Verte: je contemplai les sujets très naïfs
De la tapisserie. − Et ce fut adorable,
Quand la fille aux tétons énormes, aux yeux vifs,
− Celle-là, ce n’est pas un baiser qui l’épeure! −
Rieuse, m’apporta des tartines de beurre,
Du jambon tiède, dans un plat colorié,
Du jambon rose et blanc parfumé d'une gousse
D’ail, − et m'emplit la chope immense, avec sa mousse
Que dorait un rayon de soleil arriéré.
Octobre 70
No Cabaré Verde
às cinco horas da tarde
Oito dias depois, minhas botinas rasgadas
Pelas pedras do caminho: em Charleroi, entrei
– No cabaré verde: peço torradas
Com manteiga e presunto, feito um rei.
Descansado, jogo as pernas sobre a mesa
Verde: contemplo os traços mais ingênuos
De uma tapeçaria. – E, grande surpresa,
Uma garota de seios grandes, olhos plenos
– Não será um beijo que a deixe menos meiga! –
Sorridente, me traz torradas de manteiga
Com presunto, num prato colorido.
O presunto é rosa e branco, perfume de dente-
de-alho. Me dê um chope, com seu sabor excelente
Que doura um raio de sol ferido.
Outubro, 1870
Ma bohème (Fantaisie)
Je m’en allais, les poings dans mes poches crevées;
Mon paletot aussi devenait idéal;
J’allais sous le ciel, Muse ! et j'étais ton féal;
Oh! là là! que d’amours splendides j’ai rêvées!
Mon unique culotte avait un large trou.
– Petit-Poucet rêveur, j'égrenais dans ma course
Des rimes. Mon auberge était à la Grande Ourse.
– Mes étoiles au ciel avaient un doux frou-frou
Et je les écoutais, assis au bord des routes,
Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes
De rosée à mon front, comme un vin de vigueur;
Où, rimant au milieu des ombres fantastiques,
Comme des lyres, je tirais les élastiques
De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur!
Minha boêmia (Fantasia)
Já me ia, com as mãos no bolso sem costura
Meu paletó assim ficava ideal
Sob o ceú, musa!, eu fui seu amigo principal
Oh! Que coisa! Sonhando amores com bravura!
O meu único par de calças tinha um furo
– Pequeno polegar de rimas ao redor.
Meu albergue fica na Ursa-Maior
– Meus astros no céu rangem murmúrios.
Sentado, eu os ouvia, à beira das rotas
Em noites de setembro, nas quais senti as gotas
Da rosa à minha frente, como o vinho da razão.
Onde, rimando em meio a paisagens fantásticas
Eu tomava, como dos lírios, as botinas elásticas
Dos sapatos feridos, um pé preso no meu coração!
sexta-feira, 7 de janeiro de 2011
A farmácia de Mallarmé
Por André Dick
Jacques Derrida, em “La double séance”, capítulo de La dissémination, compõe uma ligação entre Platão e Mallarmé – um hymen, como escreve Derrida, mostrando a passagem de um texto para o outro, não no sentido da metalinguagem, mas, como pensa o filósofo francês, na ausência de rastro, eliminando a presença original. Mallarmé afirma em seu texto “Mimique”, colocado ao lado de um fragmento do Filebo platônico, que o mímico não imita nada. Mais do que uma reatualização do conceito de mimesis, Derrida, em sua análise, afirma que Mallarmé reatualiza o conceito de simulacro, visto de forma negativa por Platão.
O que está em jogo, para Derrida, na releitura platônica de Sócrates (por si só, uma cópia da cópia, tão condenada por Platão), são as noções de literatura e verdade. A partir dessa linha de raciocínio, o que ele quer abordar é até que ponto uma literatura pode servir como representação de uma verdade e se esta realmente existe.
A explicação sobre a má influência dos poetas, no Livro II de A república, é tomada em termos de ordem para a sociedade, no diálogo entre Sócrates, Glauco e Adimanto. Os poetas, mesmo considerando boas “a temperança e a justiça”, as achariam “difíceis e penosas”; a “intemperança” e a “injustiça” seriam mais agradáveis a eles e “de fácil domínio, somente vergonhosas na óptica da opinião pública e da lei”. Para eles, as ações injustas, nesse sentido, seriam “mais proveitosas que as justas, no conjunto, e aceitam de bom grado proclamar os maus felizes e honrá-los, quando são ricos ou dispõem de algum poder; ao contrário, desprezam e olham com desdém para os bons que são fracos e pobres, embora reconhecendo que são melhores que os outros”. Além disso, os deuses seriam acusados pelos poetas de privilegiarem os maus, dando aos “homens virtuosos” o “infortúnio e uma vida miserável”. Também “convencem não apenas os simples cidadãos, mas também as cidades, de que se pode ser absolvido e purificado dos crimes, em vida ou depois da morte, por intermédio de sacrifícios e festas a que chamam mistérios”.
Sócrates, implicando com os versos de Homero, que contariam mentiras e influenciaram as crianças negativamente, avalia que não se deve dar ao poeta “a liberdade de afirmar que os homens punidos foram infelizes e que Deus foi o autor dos seus males”. Ao contrário, diz Socrátes, “se ele disser que os maus precisavam de castigo, sendo infelizes, e que Deus lhes fez bem castigando-os, devemos deixá-lo livre”. Por outro lado, se os poetas “disserem que Deus, que é bom, é a causa das desgraças de alguém, combateremos tais palavras com todas as nossas forças e não permitiremos que sejam proferidas ou ouvidas pelos jovens ou pelos velhos, em verso ou em prosa, numa cidade que deve ter boas leis, porque seriam pecaminoso, abusivo e absurdo”.
A preocupação de Sócrates é com o fato de os deuses serem vistos como seres que castigam e, consequentemente, com a criação: “Que as mães, convencidas pelos poetas, não assustem os filhos contando-lhes que certos deuses vagueiam de noite disfarçados em estranhos de todo tipo, a fim de evitarem, simultaneamente, blasfemar contra deuses e tornar as crianças mais covardes e medrosas”. As mentiras poéticas, para Sócrates, nada mais seriam do que “uma imitação do estado da alma”. E Homero continua sendo o principal culpado pelas impurezas da alma, sobretudo ao longo do extenso Livro III, em que o diálogo de Sócrates com os companheiros continua combatendo a poética. Em particular, nesse novo livro, Sócrates avalia que os poetas utilizam a imitação, que seria um gesto inferior, pois não representam nem o divino (que teria a palavra original) nem os recriadores de objetos divinos (o criador de um leito, por exemplo). Leia-se o seguinte fragmento: “(...) se um homem perito na arte de tudo imitar viesse à nossa cidade para exibir-se com os seus poemas, nós o saudaríamos como um ser sagrado, extraordinário, agradável; porém, lhe diríamos que não existe homem com ele na nossa cidade e que não pode existir; em seguida manda-lo-íamos para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra na cabeça e o termos coroado com fitas”. Tal explicação socrática é crônica: percebe-se em sua dialética o mesmo preconceito com os poetas de todos os tempos: vistos como sagrados, extraordinários e agradáveis, mas absolutamente inúteis para a sociedade, pois não vêm para contar a verdade, para ajudar na manutenção econômica ou na sustentação dos poderes, e sim para desvirtuar a realidade.
No fundo, a explicação de Platão leva ao sublime. Para ele, a verdade só pode existir se seguida por Deus. Assim, para ele, a ideia de cama ou mesa, ou a mesa ou a cama, é primeiramente divina. A cópia de tais objetos seria aquela modelada pelo carpinteiro ou artesão: seria uma cópia da realidade. Em terceiro plano, o pintor ou o poeta que se dispõem a falar da mesa ou da cama estão realizando uma cópia da cópia, imitando o objeto do artesão (ou carpinteiro) e não da ideia (Deus). Importante irmos, para a comprovação disso, aos diálogos de Sócrates:
Sócrates – Queres então que demos a Deus o nome de criador natural deste objeto ou qualquer outro nome semelhante?
Glauco – Nada mais justo, visto que criou a natureza desse objeto e de todas as outras coisas.
Sócrates – E o marceneiro? Devemos chamá-lo de obreiro da cama, não é verdade?
Glauco – Sim, é.
Sócrates – E chamaremos ao pintor o obreiro e o criador deste objeto?
Glauco – De modo nenhum.
Sócrates – Dize-me então o que é ele em relação à cama.
Glauco – Parece-me que o nome que lhe conviria melhor é o de imitador daquilo de que os outros dois são os artífices.
Sócrates – Que seja. Chamas portanto, imitador ao autor de uma produção afastada três graus da natureza.
Glauco – Com certeza.
Sócrates – Desse modo, o autor de tragédias, se é um imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da verdade, assim como todos os outros imitadores.
A partir disso, define-se que o poeta nunca lidaria com a verdade, daí sua ameaça à sociedade que pretende se organizar em termos de justiça e coerência em A república socrática. A verdade, claro, pertence ao rei. O poeta, fazendo uma cópia da cópia realiza um simulacro e, portanto, deve ser visto como uma ameaça ao poder (do rei). A verdade estaria representada justamente pela ideia logocêntrica da criação e não da cópia. Ou seja, o poeta, não sendo um Deus, capaz de ter criado um objeto, nem um ser humano capaz de imitá-lo (pelo trabalho braçal ou pelo conhecimento da construção), é capaz de apenas representá-lo, por meio da arte da escrita, não sendo um bom imitador, ao mostrar uma cópia da cópia, isto é, um simulacro.
A ideia de mimesis platônica, como lembra Compagnon, “vai da ideia (eidos) à cópia (eidolon) e à cópia da cópia (phantasma), e na medida em que se afasta da verdade, a semelhança ou fidelidade ao modelo se perverte: a cópia da cópia é uma cópia degradada. Em outras palavras, não há, entre a cópia e a cópia da cópia, uma diferença de natureza, mas apenas de grau, uma diferença mensurável pelo grau de afastamento da verdade”. A verdade está em questão, pois ilustra, para Platão, a reconfiguração da alma solitária em diálogo consigo mesma, em contato direto com Deus, sem a intermediação da fantasia e do imaginário do inconsciente (para trazermos o acréscimo estruturalista de Lacan).
Sobre a expulsão dos poetas da cidade enfocada por Platão, no livro II de A república, Derrida analisa:
A escritura em geral não é certamente a escrita literária. Mas em outro lugar, n’A república, por exemplo, o poeta só é julgado e depois condenado enquanto imitador, mímico que não pratica a ‘diégese simples’. O lugar específico do poeta pode ser julgado como tal segundo recorra ou não, de uma maneira ou de outra, à forma mimética.
Em O sofista, Platão descreve de modo diferente a mimesis: ela é apresentada, então, “como a arte de produzir – em particular no discurso: é o caso do sofista – ‘absolutamente todas as coisas’, logo, de produzir imagens (eidolon)”. Platão escreve que “Do homem que, através de uma arte única, se crê capaz de produzir tudo, sabemos, em suma, que ele não fabricará senão imitações e homônimos da realidade”. Tal técnica se encontraria tanto na pintura quanto na linguagem. Mas essas categorias, para Derrida, não valem ao se tratar de poesia como se trata da literatura; a segunda é uma criação muito mais recente e, por isso, inadequada ao plano mimético. Ela está colocada num limite que não se presta apenas a configurá-lo como parte de um processo ligado à construção de uma república baseada em conceitos de ordem. Os poetas são apenas maus imitadores, pois não dominam muitas vezes a arte daquilo que imitam. No entanto, Platão aponta dois tipos de imagens e divide a mimética em duas: uma que produz cópias (eikon), as boas imagens que respeitam as proporções, que são dotadas de semelhança com a ideia; e outro, a arte de produzir simulacros (phantasma), as más imagens que simulam a cópia, que fabricam a ilusão, que são desprovidas de semelhança com a ideia”, pois não passam por ela.
Esta separação, destacada em O sofista e não em A república, define a arte da cópia e a arte do simulacro. O que o pintor faria – voltando à analogia configurada em A república –, ao pintar uma cama, seria uma cópia da cópia, um simulacro, uma má imagem; o que o marceneiro faria seria uma cópia da ideia, sendo ela uma boa imagem. Compagnon afirma que esta distinção seria negada pelo próprio Platão em O sofista: ao falar sobre as artes de produção, Platão as divide em dois tipos: a produção divina e a produção humana; depois as divide em produção da realidade e produção de imagens. “Do lado divino, as realidades produzidas correspondem à criação, e as imagens são as sombras, os reflexos, os sonhos”. Por outro lado, o homem cria a casa real por meio do pedreiro e a casa do sonho, através do pintor. A produção humana se dividiria, portanto, em realidades e imagens, estas últimas divididas em cópias e simulacros. Daí se concluir que os objetos manufaturados não são mais considerados cópias, mas realidades, o que, segundo Compagnon, se contactena com o que Platão pensava ao final de sua vida, quando dizia que as ideias não corresponderiam mais a “objetos manufaturados”.
A pintura, por sua vez, não é mais considerada cópia da cópia, mas imagem oposta à realidade, explicação mais satisfatória do que aquela exposta em A república. O pintor imitaria o objeto do artesão e não a forma única, divina, porque apresenta a aparência e não a realidade; não é “a ideia em si” que ele imita, mas apenas a sua cópia. Essa cadeia proposta em A república, como nota Compagnon, é substituída por uma “arborescência: há uma diferença de natureza entre o objeto manufaturado (a realidade) e o objeto pintado (a imagem); há uma outra diferença de natureza entre as imagens, entre as cópias, e os simulacros”. Como afirma Gilles Deleuze, “não é o afastamento da realidade que perverte a semelhança do simulacro com a ideia e sua fidelidade ao modelo, mas sua natureza, sua essência por assim dizer, dado que o simulacro não é a cópia de absolutamente nada, é a cópia do não ser”. Assim, enquanto em A república, o discurso é visualizado como cópia (eidolon) e cópia da cópia (phantasma); em O sofista, ele é cópia (eikon) e simulacro (phantasma). A poesia é decisivamente afastada dos conceitos de verdade, pois representa um limite, sendo a mimesis da mimesis; portanto, o simulacro é uma definição coerente com sua existência.
Ao contrapor “Mimique” ao trecho do Filebo platônico, Derrida desenha o que ele chama de hymen: abertura para que dois textos se complementem através de suas diferenças. Desse modo, enquanto no texto de Platão temos ainda a noção de uma mimesis sintomática da verdade, do ser que copia o ente, em busca de uma verdade (no sentido de Heidegger, da aletheia), no texto de Mallarmé o que se destaca é a composição do papel em branco, onde nada acontece, e a escritura que irá preenchê-lo se faz de fugas. Ao mimetizar Platão, vemos que Mallarmé faz com que a composição não tenha mais origem, tornando-se escritura, numa necessidade de contemplá-la, de forma isolada, como uma ausência a ser preenchida.
O que separa Mallarmé de Platão é o mesmo que os aproxima, numa dialética filosófica que remete à concepção da poesia na sociedade. Platão, com a ideia de expulsar os poetas, por sua infantilidade, dos domínios da república, não é menos radical que Mallarmé que se expulsa, ele próprio, da sociedade e, sobretudo, do consumo, a se entender os meios de comunicação, como o jornalismo. Mas são radicalidades propostas de forma diferente. Sócrates visava à educação das crianças, à “saúde mental” da população, livre então de poetas que cantam coisas absurdas.
Platão considera a fala inferior à escrita, mas, de qualquer modo, não é coerente com a expulsão dos poetas da cidade, que poderiam prejudicar a ordem da cidade. Ora, Platão queria a expulsão deles porque o que o perturbava era justamente a phoné poética: ele a julgava, além de falsa, pouco educativa para as crianças. Para ele, as fábulas dos poetas prejudicariam a realidade do mundo, fazendo com que mães, por exemplo, ao contá-las, mentissem para seus filhos. Como se vê, os esteios entre a realidade e a literatura não passavam por filtros como no tempo, se quisermos restringir o escopo, de Mallarmé, em que a poesia, por si só, pouco tinha importância.
Mais do que um lapso na análise de Derrida – focalizar que na cena de expulsão dos poetas Platão, por meio do diálogo de Sócrates, privilegia o fonocentrismo e não a escritura, quando ele julgava as fábulas contadas oralmente um perigo para a ordem pública –, isso mostra o objetivo que tinha o filósofo francês ao negar a influência das leituras de Platão e de Hegel em Mallarmé. Seu objetivo era fazer com que a metafísica almejada por Mallarmé se reduzisse a uma fenomenologia da escritura: ou seja, o que queria Mallarmé, em seus textos, mais do que evitar o rastro da origem, era reduzir o poema a uma écriture distanciada da phoné, ou seja, da sociedade. A negativa derridiana é de fundo sociológico. A escritura seria o intermédio direto com Deus, enquanto a phoné desvirtuaria esse contato. A phoné seria a ideia imitada diretamente dos objetos de Deus, ou seja, não passavam pela intermediação da escritura. Os objetos a que Mallarmé se referia, de fato, eram, para ele, abstratos, ausentes, próximos do sentido divino da mimesis almejado por Platão em A república. Mas são, ao mesmo tempo, concretos: Mallarmé realiza um simulacro de imagens, no sentido que Platão dá a simulacros, mas os converte em escritura, logo em negatividade positiva, enquanto o filósofo grego só via nisso uma “má imagem”. Nisso, ele se distancia de Platão, para quem a ideia pura, original, divina, era a única que representava a boa mimesis. Percebe-se em Mallarmé que não existe Deus a não ser aquele que o ser humano oferece pela escritura.
O Deus de Mallarmé, ao contrário do que pensa Derrida, não é o Deus religioso ou metafísico, ou aquele que o romantismo julgava como sublime, propenso à elevação (hypsis) do sujeito, mas o Deus da escritura: esta não é cadavérica, ou seja, não é a morte, como ele registra em outro momento; Deus é a própria indefinição entre a morte e a vida, o vazio intercedendo na composição da narrativa poética que subsiste no indivíduo repartido, como a leitura e a escritura são opostos que se ligam na poética de Mallarmé. Cabe avaliar aqui que não estou contrariando a própria teoria de Derrida, que era contra o logocentrismo: ora, se Deus não é a vida, tampouco é a morte: ele é um rastro-por-vir, para utilizar o vocabulário derridiano.
Derrida, a fim de confirmar sua teoria, acertada, sobre o logocentrismo tendencioso que empurra a filosofia para campos da verdade e do conhecimento, da razão e da conscientização (capazes de destruir a literatura, ou seja, a modernidade), no entanto, equivocadamente, realçava que Mallarmé tinha uma concepção distanciada da figura divina. A ordem epistêmica dos escritos mallarmeanos registra não só uma ilusão de si, mas uma verdade (o que Derrida qualificava como quinquilharia dos classicistas) sobre si. Se não há verdade, tampouco há ilusão. Nesse fio tênue, entre a conscientização e a loucura, encontra-se o poeta moderno.
O poeta, na verdade, é comparado aos dementes: “Creio também que não devem imitar a linguagem e o comportamento dos dementes, pois é mister conhecer os dementes e os perversos, tanto homens quanto mulheres, mas não fazer nem imitar nada que seja próprio deles”. Nesse ponto, ao contrário do que escreve Guy Delfel, Mallarmé não quer integrar a poesia às demais atividades sociais da sociedade; pelo contrário, quer afastá-la, pois é a única maneira de sair ileso do confronto e com suas ideias de Absoluto e de Beleza intactas, mesmo que distanciadas da phoné religiosa.
Por André Dick
Jacques Derrida, em “La double séance”, capítulo de La dissémination, compõe uma ligação entre Platão e Mallarmé – um hymen, como escreve Derrida, mostrando a passagem de um texto para o outro, não no sentido da metalinguagem, mas, como pensa o filósofo francês, na ausência de rastro, eliminando a presença original. Mallarmé afirma em seu texto “Mimique”, colocado ao lado de um fragmento do Filebo platônico, que o mímico não imita nada. Mais do que uma reatualização do conceito de mimesis, Derrida, em sua análise, afirma que Mallarmé reatualiza o conceito de simulacro, visto de forma negativa por Platão.
O que está em jogo, para Derrida, na releitura platônica de Sócrates (por si só, uma cópia da cópia, tão condenada por Platão), são as noções de literatura e verdade. A partir dessa linha de raciocínio, o que ele quer abordar é até que ponto uma literatura pode servir como representação de uma verdade e se esta realmente existe.
A explicação sobre a má influência dos poetas, no Livro II de A república, é tomada em termos de ordem para a sociedade, no diálogo entre Sócrates, Glauco e Adimanto. Os poetas, mesmo considerando boas “a temperança e a justiça”, as achariam “difíceis e penosas”; a “intemperança” e a “injustiça” seriam mais agradáveis a eles e “de fácil domínio, somente vergonhosas na óptica da opinião pública e da lei”. Para eles, as ações injustas, nesse sentido, seriam “mais proveitosas que as justas, no conjunto, e aceitam de bom grado proclamar os maus felizes e honrá-los, quando são ricos ou dispõem de algum poder; ao contrário, desprezam e olham com desdém para os bons que são fracos e pobres, embora reconhecendo que são melhores que os outros”. Além disso, os deuses seriam acusados pelos poetas de privilegiarem os maus, dando aos “homens virtuosos” o “infortúnio e uma vida miserável”. Também “convencem não apenas os simples cidadãos, mas também as cidades, de que se pode ser absolvido e purificado dos crimes, em vida ou depois da morte, por intermédio de sacrifícios e festas a que chamam mistérios”.
Sócrates, implicando com os versos de Homero, que contariam mentiras e influenciaram as crianças negativamente, avalia que não se deve dar ao poeta “a liberdade de afirmar que os homens punidos foram infelizes e que Deus foi o autor dos seus males”. Ao contrário, diz Socrátes, “se ele disser que os maus precisavam de castigo, sendo infelizes, e que Deus lhes fez bem castigando-os, devemos deixá-lo livre”. Por outro lado, se os poetas “disserem que Deus, que é bom, é a causa das desgraças de alguém, combateremos tais palavras com todas as nossas forças e não permitiremos que sejam proferidas ou ouvidas pelos jovens ou pelos velhos, em verso ou em prosa, numa cidade que deve ter boas leis, porque seriam pecaminoso, abusivo e absurdo”.
A preocupação de Sócrates é com o fato de os deuses serem vistos como seres que castigam e, consequentemente, com a criação: “Que as mães, convencidas pelos poetas, não assustem os filhos contando-lhes que certos deuses vagueiam de noite disfarçados em estranhos de todo tipo, a fim de evitarem, simultaneamente, blasfemar contra deuses e tornar as crianças mais covardes e medrosas”. As mentiras poéticas, para Sócrates, nada mais seriam do que “uma imitação do estado da alma”. E Homero continua sendo o principal culpado pelas impurezas da alma, sobretudo ao longo do extenso Livro III, em que o diálogo de Sócrates com os companheiros continua combatendo a poética. Em particular, nesse novo livro, Sócrates avalia que os poetas utilizam a imitação, que seria um gesto inferior, pois não representam nem o divino (que teria a palavra original) nem os recriadores de objetos divinos (o criador de um leito, por exemplo). Leia-se o seguinte fragmento: “(...) se um homem perito na arte de tudo imitar viesse à nossa cidade para exibir-se com os seus poemas, nós o saudaríamos como um ser sagrado, extraordinário, agradável; porém, lhe diríamos que não existe homem com ele na nossa cidade e que não pode existir; em seguida manda-lo-íamos para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra na cabeça e o termos coroado com fitas”. Tal explicação socrática é crônica: percebe-se em sua dialética o mesmo preconceito com os poetas de todos os tempos: vistos como sagrados, extraordinários e agradáveis, mas absolutamente inúteis para a sociedade, pois não vêm para contar a verdade, para ajudar na manutenção econômica ou na sustentação dos poderes, e sim para desvirtuar a realidade.
No fundo, a explicação de Platão leva ao sublime. Para ele, a verdade só pode existir se seguida por Deus. Assim, para ele, a ideia de cama ou mesa, ou a mesa ou a cama, é primeiramente divina. A cópia de tais objetos seria aquela modelada pelo carpinteiro ou artesão: seria uma cópia da realidade. Em terceiro plano, o pintor ou o poeta que se dispõem a falar da mesa ou da cama estão realizando uma cópia da cópia, imitando o objeto do artesão (ou carpinteiro) e não da ideia (Deus). Importante irmos, para a comprovação disso, aos diálogos de Sócrates:
Sócrates – Queres então que demos a Deus o nome de criador natural deste objeto ou qualquer outro nome semelhante?
Glauco – Nada mais justo, visto que criou a natureza desse objeto e de todas as outras coisas.
Sócrates – E o marceneiro? Devemos chamá-lo de obreiro da cama, não é verdade?
Glauco – Sim, é.
Sócrates – E chamaremos ao pintor o obreiro e o criador deste objeto?
Glauco – De modo nenhum.
Sócrates – Dize-me então o que é ele em relação à cama.
Glauco – Parece-me que o nome que lhe conviria melhor é o de imitador daquilo de que os outros dois são os artífices.
Sócrates – Que seja. Chamas portanto, imitador ao autor de uma produção afastada três graus da natureza.
Glauco – Com certeza.
Sócrates – Desse modo, o autor de tragédias, se é um imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da verdade, assim como todos os outros imitadores.
A partir disso, define-se que o poeta nunca lidaria com a verdade, daí sua ameaça à sociedade que pretende se organizar em termos de justiça e coerência em A república socrática. A verdade, claro, pertence ao rei. O poeta, fazendo uma cópia da cópia realiza um simulacro e, portanto, deve ser visto como uma ameaça ao poder (do rei). A verdade estaria representada justamente pela ideia logocêntrica da criação e não da cópia. Ou seja, o poeta, não sendo um Deus, capaz de ter criado um objeto, nem um ser humano capaz de imitá-lo (pelo trabalho braçal ou pelo conhecimento da construção), é capaz de apenas representá-lo, por meio da arte da escrita, não sendo um bom imitador, ao mostrar uma cópia da cópia, isto é, um simulacro.
A ideia de mimesis platônica, como lembra Compagnon, “vai da ideia (eidos) à cópia (eidolon) e à cópia da cópia (phantasma), e na medida em que se afasta da verdade, a semelhança ou fidelidade ao modelo se perverte: a cópia da cópia é uma cópia degradada. Em outras palavras, não há, entre a cópia e a cópia da cópia, uma diferença de natureza, mas apenas de grau, uma diferença mensurável pelo grau de afastamento da verdade”. A verdade está em questão, pois ilustra, para Platão, a reconfiguração da alma solitária em diálogo consigo mesma, em contato direto com Deus, sem a intermediação da fantasia e do imaginário do inconsciente (para trazermos o acréscimo estruturalista de Lacan).
Sobre a expulsão dos poetas da cidade enfocada por Platão, no livro II de A república, Derrida analisa:
A escritura em geral não é certamente a escrita literária. Mas em outro lugar, n’A república, por exemplo, o poeta só é julgado e depois condenado enquanto imitador, mímico que não pratica a ‘diégese simples’. O lugar específico do poeta pode ser julgado como tal segundo recorra ou não, de uma maneira ou de outra, à forma mimética.
Em O sofista, Platão descreve de modo diferente a mimesis: ela é apresentada, então, “como a arte de produzir – em particular no discurso: é o caso do sofista – ‘absolutamente todas as coisas’, logo, de produzir imagens (eidolon)”. Platão escreve que “Do homem que, através de uma arte única, se crê capaz de produzir tudo, sabemos, em suma, que ele não fabricará senão imitações e homônimos da realidade”. Tal técnica se encontraria tanto na pintura quanto na linguagem. Mas essas categorias, para Derrida, não valem ao se tratar de poesia como se trata da literatura; a segunda é uma criação muito mais recente e, por isso, inadequada ao plano mimético. Ela está colocada num limite que não se presta apenas a configurá-lo como parte de um processo ligado à construção de uma república baseada em conceitos de ordem. Os poetas são apenas maus imitadores, pois não dominam muitas vezes a arte daquilo que imitam. No entanto, Platão aponta dois tipos de imagens e divide a mimética em duas: uma que produz cópias (eikon), as boas imagens que respeitam as proporções, que são dotadas de semelhança com a ideia; e outro, a arte de produzir simulacros (phantasma), as más imagens que simulam a cópia, que fabricam a ilusão, que são desprovidas de semelhança com a ideia”, pois não passam por ela.
Esta separação, destacada em O sofista e não em A república, define a arte da cópia e a arte do simulacro. O que o pintor faria – voltando à analogia configurada em A república –, ao pintar uma cama, seria uma cópia da cópia, um simulacro, uma má imagem; o que o marceneiro faria seria uma cópia da ideia, sendo ela uma boa imagem. Compagnon afirma que esta distinção seria negada pelo próprio Platão em O sofista: ao falar sobre as artes de produção, Platão as divide em dois tipos: a produção divina e a produção humana; depois as divide em produção da realidade e produção de imagens. “Do lado divino, as realidades produzidas correspondem à criação, e as imagens são as sombras, os reflexos, os sonhos”. Por outro lado, o homem cria a casa real por meio do pedreiro e a casa do sonho, através do pintor. A produção humana se dividiria, portanto, em realidades e imagens, estas últimas divididas em cópias e simulacros. Daí se concluir que os objetos manufaturados não são mais considerados cópias, mas realidades, o que, segundo Compagnon, se contactena com o que Platão pensava ao final de sua vida, quando dizia que as ideias não corresponderiam mais a “objetos manufaturados”.
A pintura, por sua vez, não é mais considerada cópia da cópia, mas imagem oposta à realidade, explicação mais satisfatória do que aquela exposta em A república. O pintor imitaria o objeto do artesão e não a forma única, divina, porque apresenta a aparência e não a realidade; não é “a ideia em si” que ele imita, mas apenas a sua cópia. Essa cadeia proposta em A república, como nota Compagnon, é substituída por uma “arborescência: há uma diferença de natureza entre o objeto manufaturado (a realidade) e o objeto pintado (a imagem); há uma outra diferença de natureza entre as imagens, entre as cópias, e os simulacros”. Como afirma Gilles Deleuze, “não é o afastamento da realidade que perverte a semelhança do simulacro com a ideia e sua fidelidade ao modelo, mas sua natureza, sua essência por assim dizer, dado que o simulacro não é a cópia de absolutamente nada, é a cópia do não ser”. Assim, enquanto em A república, o discurso é visualizado como cópia (eidolon) e cópia da cópia (phantasma); em O sofista, ele é cópia (eikon) e simulacro (phantasma). A poesia é decisivamente afastada dos conceitos de verdade, pois representa um limite, sendo a mimesis da mimesis; portanto, o simulacro é uma definição coerente com sua existência.
Ao contrapor “Mimique” ao trecho do Filebo platônico, Derrida desenha o que ele chama de hymen: abertura para que dois textos se complementem através de suas diferenças. Desse modo, enquanto no texto de Platão temos ainda a noção de uma mimesis sintomática da verdade, do ser que copia o ente, em busca de uma verdade (no sentido de Heidegger, da aletheia), no texto de Mallarmé o que se destaca é a composição do papel em branco, onde nada acontece, e a escritura que irá preenchê-lo se faz de fugas. Ao mimetizar Platão, vemos que Mallarmé faz com que a composição não tenha mais origem, tornando-se escritura, numa necessidade de contemplá-la, de forma isolada, como uma ausência a ser preenchida.
O que separa Mallarmé de Platão é o mesmo que os aproxima, numa dialética filosófica que remete à concepção da poesia na sociedade. Platão, com a ideia de expulsar os poetas, por sua infantilidade, dos domínios da república, não é menos radical que Mallarmé que se expulsa, ele próprio, da sociedade e, sobretudo, do consumo, a se entender os meios de comunicação, como o jornalismo. Mas são radicalidades propostas de forma diferente. Sócrates visava à educação das crianças, à “saúde mental” da população, livre então de poetas que cantam coisas absurdas.
Platão considera a fala inferior à escrita, mas, de qualquer modo, não é coerente com a expulsão dos poetas da cidade, que poderiam prejudicar a ordem da cidade. Ora, Platão queria a expulsão deles porque o que o perturbava era justamente a phoné poética: ele a julgava, além de falsa, pouco educativa para as crianças. Para ele, as fábulas dos poetas prejudicariam a realidade do mundo, fazendo com que mães, por exemplo, ao contá-las, mentissem para seus filhos. Como se vê, os esteios entre a realidade e a literatura não passavam por filtros como no tempo, se quisermos restringir o escopo, de Mallarmé, em que a poesia, por si só, pouco tinha importância.
Mais do que um lapso na análise de Derrida – focalizar que na cena de expulsão dos poetas Platão, por meio do diálogo de Sócrates, privilegia o fonocentrismo e não a escritura, quando ele julgava as fábulas contadas oralmente um perigo para a ordem pública –, isso mostra o objetivo que tinha o filósofo francês ao negar a influência das leituras de Platão e de Hegel em Mallarmé. Seu objetivo era fazer com que a metafísica almejada por Mallarmé se reduzisse a uma fenomenologia da escritura: ou seja, o que queria Mallarmé, em seus textos, mais do que evitar o rastro da origem, era reduzir o poema a uma écriture distanciada da phoné, ou seja, da sociedade. A negativa derridiana é de fundo sociológico. A escritura seria o intermédio direto com Deus, enquanto a phoné desvirtuaria esse contato. A phoné seria a ideia imitada diretamente dos objetos de Deus, ou seja, não passavam pela intermediação da escritura. Os objetos a que Mallarmé se referia, de fato, eram, para ele, abstratos, ausentes, próximos do sentido divino da mimesis almejado por Platão em A república. Mas são, ao mesmo tempo, concretos: Mallarmé realiza um simulacro de imagens, no sentido que Platão dá a simulacros, mas os converte em escritura, logo em negatividade positiva, enquanto o filósofo grego só via nisso uma “má imagem”. Nisso, ele se distancia de Platão, para quem a ideia pura, original, divina, era a única que representava a boa mimesis. Percebe-se em Mallarmé que não existe Deus a não ser aquele que o ser humano oferece pela escritura.
O Deus de Mallarmé, ao contrário do que pensa Derrida, não é o Deus religioso ou metafísico, ou aquele que o romantismo julgava como sublime, propenso à elevação (hypsis) do sujeito, mas o Deus da escritura: esta não é cadavérica, ou seja, não é a morte, como ele registra em outro momento; Deus é a própria indefinição entre a morte e a vida, o vazio intercedendo na composição da narrativa poética que subsiste no indivíduo repartido, como a leitura e a escritura são opostos que se ligam na poética de Mallarmé. Cabe avaliar aqui que não estou contrariando a própria teoria de Derrida, que era contra o logocentrismo: ora, se Deus não é a vida, tampouco é a morte: ele é um rastro-por-vir, para utilizar o vocabulário derridiano.
Derrida, a fim de confirmar sua teoria, acertada, sobre o logocentrismo tendencioso que empurra a filosofia para campos da verdade e do conhecimento, da razão e da conscientização (capazes de destruir a literatura, ou seja, a modernidade), no entanto, equivocadamente, realçava que Mallarmé tinha uma concepção distanciada da figura divina. A ordem epistêmica dos escritos mallarmeanos registra não só uma ilusão de si, mas uma verdade (o que Derrida qualificava como quinquilharia dos classicistas) sobre si. Se não há verdade, tampouco há ilusão. Nesse fio tênue, entre a conscientização e a loucura, encontra-se o poeta moderno.
O poeta, na verdade, é comparado aos dementes: “Creio também que não devem imitar a linguagem e o comportamento dos dementes, pois é mister conhecer os dementes e os perversos, tanto homens quanto mulheres, mas não fazer nem imitar nada que seja próprio deles”. Nesse ponto, ao contrário do que escreve Guy Delfel, Mallarmé não quer integrar a poesia às demais atividades sociais da sociedade; pelo contrário, quer afastá-la, pois é a única maneira de sair ileso do confronto e com suas ideias de Absoluto e de Beleza intactas, mesmo que distanciadas da phoné religiosa.
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