Poesia e filosofia em Giorgio Agamben (I)
Por André Dick
Desde o lançamento de Homo sacer, o filósofo italiano Giorgio Agamben, nascido em Roma, em 1942, vem recebendo atenção no Brasil, por meio de Profanações (Boitempo Editorial) e Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental (Ed. UFMG), A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade e Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história (ambos lançados pela UFMG). Fixemo-nos nos livros que Agamben dedica mais a fazer uma interseção entre literatura e filosofia. Nesse sentido, Agamben, como Derrida, é um autor limítrofe. Todos esses livros são múltiplos, mostrando uma obra em plena realização e não se delimitam ao campo em que Agamben está começando a ser mais inserido: no do direito, em razão, sobretudo, dos admiráveis Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I e Estado de exceção, este continuando uma discussão já iniciada por Derrida em Força de lei, influenciado por Walter Benjamin. Ou seja, a procura, aqui, é pela ligação que Agamben, muito particularmente, faz da filosofia com a literatura – o que não pode ser totalizado, claro, com este breve texto.
A infância, na obra de Giorgio Agamben, é construída pela linguagem e por aquilo que o filósofo chama de “Voz”, que delineia o indivíduo. Por isso, para Agamben, em A linguagem e a morte, a Voz (com maiúscula para distingui-la da voz como mero som) “tem o estatuto de um não-mais (voz) e de um não-ainda (significado)”, constituindo uma “dimensão negativa”, produzindo-se por meio dos schifters de Roman Jakobson e os “índices de enunciação” de Benveniste, produzindo-se o conhecimento da linguagem. Há uma certa crítica a Derrida, quando Agamben afirma que a metafísica não é simplesmente o primado da voz sobre a grammá (a letra), pois, se a metafísica indica um origem, ela evoca uma Voz suprimida, negativa. Para Agamben, a voz (phoné) é, antes de tudo, a representação da morte, o que, para Derrida, seria basicamente a vida em detrimento do texto, da escrita, o que ele trabalhou em A farmácia de Platão (ensaio de La dissémination, publicado no Brasil como livro independente). Nesse sentido, o homem é um falante, pelo qual se constrói o que diz, ou seja, a morte.
Segundo Agamben, vivemos hoje “naquela extrema fímbria da metafísica em que esta retorna – como niilismo – ao próprio fundamento negativo”. O pensador lembra que, para Hegel, a linguagem “não era simplesmente a voz do homem, mas o articular-se desta em ‘voz da consciência’ através de uma Voz da morte”. A Voz faz parte do Dasein heideggeriano: aproxima-se intimamente da morte ou seja, ela pensa a morte, daí o “pensamento da morte” ser “o pensamento da Voz”, e esta se converte sempre em negativo do Ser, na visão de Agamben, de Hegel a Heidegger. “Ter experiência da morte como morte significa, efetivamente, fazer experiência da supressão da voz e do surgimento, em seu lugar, de outra Voz [...] que constitui o originário fundamento negativo da palavra humana” (Há um motivo para esses filósofos lhe servirem de referência: Agamben assistiu aos seminários de Martin Heidegger na Alemanha, em Le Thor, entre 1966 e 1968, sobre Heráclito – que também surge ao longo de sua exposição filosófica – e Hegel.) Agamben prossegue, afirmando que “colher a Voz pode significar apenas pensar além destas oposições: logo, pensar o Absoluto”, pelo qual a filosofia “pensa o próprio fundamento negativo” Segundo ele, de forma poética, “A filosofia é esta viagem, este retorno, a partir de si para si mesma da palavra humana que, abandonando a própria morada habitual da voz, se abre ao terror do nada e, simultaneamente, à maravilha do ser e, transformada em discurso significante, retorna afinal, como saber absoluto, à Voz”, constituindo a epistemologia negativa e uma reinterpretação da própria metafísica.
O filósofo italiano Giorgio Agamben, como Jacques Derrida, entende como vital a ligação entre filosofia e literatura. Em vários momentos, Agamben entrelaça seus argumentos sobre a negatividade a uma concepção poética: “Antes de mais nada, a poesia parece assumir desde sempre aquele caráter – simultaneamente universal e negativo – do ‘este’, cuja descoberta orientara a crítica hegeliana da certeza sensível”. A partir de imagens e da construção linguística do poema “O infinito”, de Leopardi, por exemplo, ele escreve: “A palavra poética acontece, pois, de tal modo que o seu acontecimento escapa já sempre em direção ao futuro e ao passado, e o lugar da poesia é sempre um lugar de memória e repetição”. Desenha-se uma convergência entre filosofia e poesia: numa espécie de hermenêutica, o filósofo avalia que a experiência poética da dicção – com seu trabalho por meio dos schifters da linguagem – coincide com a “experiência da linguagem da filosofia”. Aliás, adverte Agamben, “a poesia – toda poesia – contém, aliás, com respeito a esta, um elemento que já adverte sempre quem a escuta ou repete de que o evento de linguagem em questão já foi e retornará infinitas vezes”, rememorando também a concepção de “musa” para os gregos, que implicava a experiência da “inapreensibilidade do lugar originário da palavra poética”. A filosofia teria nascido como tentativa de “liberar a poesia da sua ‘inspiração’”, e consegue reter a Musa, para fazer dela, “como ‘espírito’, o seu próprio sujeito; mas este espírito (Geist) é, precisamente, o negativo (das Negative), e a ‘voz mais bela’ [...], que, segundo Platão, compete à Musa dos filósofos, é uma voz sem som”. É possível notar, nessa concepção de Agamben, uma tendência novamente a visualizar a infância, a negatividade do discurso.
De modo geral, A linguagem e a morte, mesmo com suas referências literárias, é o livro de Agamben, pelo menos entre os lançados no Brasil, mais filosófico, mesclando ideias de Hegel e de Heidegger numa direção até então não explorada nem por nomes que se dedicaram a estudar tais autores, como Derrida e Jürgen Habermas. Além disso, subjacente, há uma concepção religiosa que apresenta pontos de contato com vários momentos de Profanações e de Estâncias. Trata-se, além disso, de um texto fluido, mesmo que longo, que vai apresentando os pressupostos com enorme domínio, dispondo as referências, a Aristóteles e a Platão, por exemplo, com várias citações em grego, sem cansar.
No entanto, é no ensaio “Programa para uma revista”, de Infância e história, que Agamben compõe a ideia – igual à de A linguagem e a morte – de que a poesia ajuda a solidificar uma compreensão sobre essa passagem do ser humano para a linguagem. Nesse sentido, percebe-se que sua interpretação sobre Leopardi e de autores gregos (em A linguagem e a morte), Baudelaire, Dante e Cavalcanti (em Estâncias) e da poesia moderna (em Infância e história), mostra um autor extremamente plural e voltado para o sentido da ética literária como um posicionamento poético, o que ele vai explorar em Homo sacer. Agamben, nesse sentido, é o oposto do Platão de A república, preocupado com a sanidade das pessoas em detrimento dos artistas e, sobretudo, dos poetas, sendo possível perceber que hoje a poesia é também uma espécie de homo sacer, que deve ser morta sem piedade em praça pública. Agamben, no entanto, prova que a perseguição é nefasta: não se pode, sobretudo, perseguir a linguagem, inerente ao ser humano. Ele é uma prova cabal de que a linguística, cada vez mais dominada por elementos afastados do poético, guarda o caminho para que a literatura também se manifeste por uma ética do discurso.
domingo, 23 de janeiro de 2011
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dick, bacaníssimo esse teu ensaio sobre a reflexão de agamben. de fato, o filósofo italiano lê novamente alguns pontos indicados por derrida sobre o fenômeno da voz. se puder, leia 'o fim do poema'. não sei se esse texto do agamben já está em livro. mas qualquer coisa, tenho-o aqui, avulso. abraço e parabéns!
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