A farmácia de Mallarmé
Por André Dick
Jacques Derrida, em “La double séance”, capítulo de La dissémination, compõe uma ligação entre Platão e Mallarmé – um hymen, como escreve Derrida, mostrando a passagem de um texto para o outro, não no sentido da metalinguagem, mas, como pensa o filósofo francês, na ausência de rastro, eliminando a presença original. Mallarmé afirma em seu texto “Mimique”, colocado ao lado de um fragmento do Filebo platônico, que o mímico não imita nada. Mais do que uma reatualização do conceito de mimesis, Derrida, em sua análise, afirma que Mallarmé reatualiza o conceito de simulacro, visto de forma negativa por Platão.
O que está em jogo, para Derrida, na releitura platônica de Sócrates (por si só, uma cópia da cópia, tão condenada por Platão), são as noções de literatura e verdade. A partir dessa linha de raciocínio, o que ele quer abordar é até que ponto uma literatura pode servir como representação de uma verdade e se esta realmente existe.
A explicação sobre a má influência dos poetas, no Livro II de A república, é tomada em termos de ordem para a sociedade, no diálogo entre Sócrates, Glauco e Adimanto. Os poetas, mesmo considerando boas “a temperança e a justiça”, as achariam “difíceis e penosas”; a “intemperança” e a “injustiça” seriam mais agradáveis a eles e “de fácil domínio, somente vergonhosas na óptica da opinião pública e da lei”. Para eles, as ações injustas, nesse sentido, seriam “mais proveitosas que as justas, no conjunto, e aceitam de bom grado proclamar os maus felizes e honrá-los, quando são ricos ou dispõem de algum poder; ao contrário, desprezam e olham com desdém para os bons que são fracos e pobres, embora reconhecendo que são melhores que os outros”. Além disso, os deuses seriam acusados pelos poetas de privilegiarem os maus, dando aos “homens virtuosos” o “infortúnio e uma vida miserável”. Também “convencem não apenas os simples cidadãos, mas também as cidades, de que se pode ser absolvido e purificado dos crimes, em vida ou depois da morte, por intermédio de sacrifícios e festas a que chamam mistérios”.
Sócrates, implicando com os versos de Homero, que contariam mentiras e influenciaram as crianças negativamente, avalia que não se deve dar ao poeta “a liberdade de afirmar que os homens punidos foram infelizes e que Deus foi o autor dos seus males”. Ao contrário, diz Socrátes, “se ele disser que os maus precisavam de castigo, sendo infelizes, e que Deus lhes fez bem castigando-os, devemos deixá-lo livre”. Por outro lado, se os poetas “disserem que Deus, que é bom, é a causa das desgraças de alguém, combateremos tais palavras com todas as nossas forças e não permitiremos que sejam proferidas ou ouvidas pelos jovens ou pelos velhos, em verso ou em prosa, numa cidade que deve ter boas leis, porque seriam pecaminoso, abusivo e absurdo”.
A preocupação de Sócrates é com o fato de os deuses serem vistos como seres que castigam e, consequentemente, com a criação: “Que as mães, convencidas pelos poetas, não assustem os filhos contando-lhes que certos deuses vagueiam de noite disfarçados em estranhos de todo tipo, a fim de evitarem, simultaneamente, blasfemar contra deuses e tornar as crianças mais covardes e medrosas”. As mentiras poéticas, para Sócrates, nada mais seriam do que “uma imitação do estado da alma”. E Homero continua sendo o principal culpado pelas impurezas da alma, sobretudo ao longo do extenso Livro III, em que o diálogo de Sócrates com os companheiros continua combatendo a poética. Em particular, nesse novo livro, Sócrates avalia que os poetas utilizam a imitação, que seria um gesto inferior, pois não representam nem o divino (que teria a palavra original) nem os recriadores de objetos divinos (o criador de um leito, por exemplo). Leia-se o seguinte fragmento: “(...) se um homem perito na arte de tudo imitar viesse à nossa cidade para exibir-se com os seus poemas, nós o saudaríamos como um ser sagrado, extraordinário, agradável; porém, lhe diríamos que não existe homem com ele na nossa cidade e que não pode existir; em seguida manda-lo-íamos para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra na cabeça e o termos coroado com fitas”. Tal explicação socrática é crônica: percebe-se em sua dialética o mesmo preconceito com os poetas de todos os tempos: vistos como sagrados, extraordinários e agradáveis, mas absolutamente inúteis para a sociedade, pois não vêm para contar a verdade, para ajudar na manutenção econômica ou na sustentação dos poderes, e sim para desvirtuar a realidade.
No fundo, a explicação de Platão leva ao sublime. Para ele, a verdade só pode existir se seguida por Deus. Assim, para ele, a ideia de cama ou mesa, ou a mesa ou a cama, é primeiramente divina. A cópia de tais objetos seria aquela modelada pelo carpinteiro ou artesão: seria uma cópia da realidade. Em terceiro plano, o pintor ou o poeta que se dispõem a falar da mesa ou da cama estão realizando uma cópia da cópia, imitando o objeto do artesão (ou carpinteiro) e não da ideia (Deus). Importante irmos, para a comprovação disso, aos diálogos de Sócrates:
Sócrates – Queres então que demos a Deus o nome de criador natural deste objeto ou qualquer outro nome semelhante?
Glauco – Nada mais justo, visto que criou a natureza desse objeto e de todas as outras coisas.
Sócrates – E o marceneiro? Devemos chamá-lo de obreiro da cama, não é verdade?
Glauco – Sim, é.
Sócrates – E chamaremos ao pintor o obreiro e o criador deste objeto?
Glauco – De modo nenhum.
Sócrates – Dize-me então o que é ele em relação à cama.
Glauco – Parece-me que o nome que lhe conviria melhor é o de imitador daquilo de que os outros dois são os artífices.
Sócrates – Que seja. Chamas portanto, imitador ao autor de uma produção afastada três graus da natureza.
Glauco – Com certeza.
Sócrates – Desse modo, o autor de tragédias, se é um imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da verdade, assim como todos os outros imitadores.
A partir disso, define-se que o poeta nunca lidaria com a verdade, daí sua ameaça à sociedade que pretende se organizar em termos de justiça e coerência em A república socrática. A verdade, claro, pertence ao rei. O poeta, fazendo uma cópia da cópia realiza um simulacro e, portanto, deve ser visto como uma ameaça ao poder (do rei). A verdade estaria representada justamente pela ideia logocêntrica da criação e não da cópia. Ou seja, o poeta, não sendo um Deus, capaz de ter criado um objeto, nem um ser humano capaz de imitá-lo (pelo trabalho braçal ou pelo conhecimento da construção), é capaz de apenas representá-lo, por meio da arte da escrita, não sendo um bom imitador, ao mostrar uma cópia da cópia, isto é, um simulacro.
A ideia de mimesis platônica, como lembra Compagnon, “vai da ideia (eidos) à cópia (eidolon) e à cópia da cópia (phantasma), e na medida em que se afasta da verdade, a semelhança ou fidelidade ao modelo se perverte: a cópia da cópia é uma cópia degradada. Em outras palavras, não há, entre a cópia e a cópia da cópia, uma diferença de natureza, mas apenas de grau, uma diferença mensurável pelo grau de afastamento da verdade”. A verdade está em questão, pois ilustra, para Platão, a reconfiguração da alma solitária em diálogo consigo mesma, em contato direto com Deus, sem a intermediação da fantasia e do imaginário do inconsciente (para trazermos o acréscimo estruturalista de Lacan).
Sobre a expulsão dos poetas da cidade enfocada por Platão, no livro II de A república, Derrida analisa:
A escritura em geral não é certamente a escrita literária. Mas em outro lugar, n’A república, por exemplo, o poeta só é julgado e depois condenado enquanto imitador, mímico que não pratica a ‘diégese simples’. O lugar específico do poeta pode ser julgado como tal segundo recorra ou não, de uma maneira ou de outra, à forma mimética.
Em O sofista, Platão descreve de modo diferente a mimesis: ela é apresentada, então, “como a arte de produzir – em particular no discurso: é o caso do sofista – ‘absolutamente todas as coisas’, logo, de produzir imagens (eidolon)”. Platão escreve que “Do homem que, através de uma arte única, se crê capaz de produzir tudo, sabemos, em suma, que ele não fabricará senão imitações e homônimos da realidade”. Tal técnica se encontraria tanto na pintura quanto na linguagem. Mas essas categorias, para Derrida, não valem ao se tratar de poesia como se trata da literatura; a segunda é uma criação muito mais recente e, por isso, inadequada ao plano mimético. Ela está colocada num limite que não se presta apenas a configurá-lo como parte de um processo ligado à construção de uma república baseada em conceitos de ordem. Os poetas são apenas maus imitadores, pois não dominam muitas vezes a arte daquilo que imitam. No entanto, Platão aponta dois tipos de imagens e divide a mimética em duas: uma que produz cópias (eikon), as boas imagens que respeitam as proporções, que são dotadas de semelhança com a ideia; e outro, a arte de produzir simulacros (phantasma), as más imagens que simulam a cópia, que fabricam a ilusão, que são desprovidas de semelhança com a ideia”, pois não passam por ela.
Esta separação, destacada em O sofista e não em A república, define a arte da cópia e a arte do simulacro. O que o pintor faria – voltando à analogia configurada em A república –, ao pintar uma cama, seria uma cópia da cópia, um simulacro, uma má imagem; o que o marceneiro faria seria uma cópia da ideia, sendo ela uma boa imagem. Compagnon afirma que esta distinção seria negada pelo próprio Platão em O sofista: ao falar sobre as artes de produção, Platão as divide em dois tipos: a produção divina e a produção humana; depois as divide em produção da realidade e produção de imagens. “Do lado divino, as realidades produzidas correspondem à criação, e as imagens são as sombras, os reflexos, os sonhos”. Por outro lado, o homem cria a casa real por meio do pedreiro e a casa do sonho, através do pintor. A produção humana se dividiria, portanto, em realidades e imagens, estas últimas divididas em cópias e simulacros. Daí se concluir que os objetos manufaturados não são mais considerados cópias, mas realidades, o que, segundo Compagnon, se contactena com o que Platão pensava ao final de sua vida, quando dizia que as ideias não corresponderiam mais a “objetos manufaturados”.
A pintura, por sua vez, não é mais considerada cópia da cópia, mas imagem oposta à realidade, explicação mais satisfatória do que aquela exposta em A república. O pintor imitaria o objeto do artesão e não a forma única, divina, porque apresenta a aparência e não a realidade; não é “a ideia em si” que ele imita, mas apenas a sua cópia. Essa cadeia proposta em A república, como nota Compagnon, é substituída por uma “arborescência: há uma diferença de natureza entre o objeto manufaturado (a realidade) e o objeto pintado (a imagem); há uma outra diferença de natureza entre as imagens, entre as cópias, e os simulacros”. Como afirma Gilles Deleuze, “não é o afastamento da realidade que perverte a semelhança do simulacro com a ideia e sua fidelidade ao modelo, mas sua natureza, sua essência por assim dizer, dado que o simulacro não é a cópia de absolutamente nada, é a cópia do não ser”. Assim, enquanto em A república, o discurso é visualizado como cópia (eidolon) e cópia da cópia (phantasma); em O sofista, ele é cópia (eikon) e simulacro (phantasma). A poesia é decisivamente afastada dos conceitos de verdade, pois representa um limite, sendo a mimesis da mimesis; portanto, o simulacro é uma definição coerente com sua existência.
Ao contrapor “Mimique” ao trecho do Filebo platônico, Derrida desenha o que ele chama de hymen: abertura para que dois textos se complementem através de suas diferenças. Desse modo, enquanto no texto de Platão temos ainda a noção de uma mimesis sintomática da verdade, do ser que copia o ente, em busca de uma verdade (no sentido de Heidegger, da aletheia), no texto de Mallarmé o que se destaca é a composição do papel em branco, onde nada acontece, e a escritura que irá preenchê-lo se faz de fugas. Ao mimetizar Platão, vemos que Mallarmé faz com que a composição não tenha mais origem, tornando-se escritura, numa necessidade de contemplá-la, de forma isolada, como uma ausência a ser preenchida.
O que separa Mallarmé de Platão é o mesmo que os aproxima, numa dialética filosófica que remete à concepção da poesia na sociedade. Platão, com a ideia de expulsar os poetas, por sua infantilidade, dos domínios da república, não é menos radical que Mallarmé que se expulsa, ele próprio, da sociedade e, sobretudo, do consumo, a se entender os meios de comunicação, como o jornalismo. Mas são radicalidades propostas de forma diferente. Sócrates visava à educação das crianças, à “saúde mental” da população, livre então de poetas que cantam coisas absurdas.
Platão considera a fala inferior à escrita, mas, de qualquer modo, não é coerente com a expulsão dos poetas da cidade, que poderiam prejudicar a ordem da cidade. Ora, Platão queria a expulsão deles porque o que o perturbava era justamente a phoné poética: ele a julgava, além de falsa, pouco educativa para as crianças. Para ele, as fábulas dos poetas prejudicariam a realidade do mundo, fazendo com que mães, por exemplo, ao contá-las, mentissem para seus filhos. Como se vê, os esteios entre a realidade e a literatura não passavam por filtros como no tempo, se quisermos restringir o escopo, de Mallarmé, em que a poesia, por si só, pouco tinha importância.
Mais do que um lapso na análise de Derrida – focalizar que na cena de expulsão dos poetas Platão, por meio do diálogo de Sócrates, privilegia o fonocentrismo e não a escritura, quando ele julgava as fábulas contadas oralmente um perigo para a ordem pública –, isso mostra o objetivo que tinha o filósofo francês ao negar a influência das leituras de Platão e de Hegel em Mallarmé. Seu objetivo era fazer com que a metafísica almejada por Mallarmé se reduzisse a uma fenomenologia da escritura: ou seja, o que queria Mallarmé, em seus textos, mais do que evitar o rastro da origem, era reduzir o poema a uma écriture distanciada da phoné, ou seja, da sociedade. A negativa derridiana é de fundo sociológico. A escritura seria o intermédio direto com Deus, enquanto a phoné desvirtuaria esse contato. A phoné seria a ideia imitada diretamente dos objetos de Deus, ou seja, não passavam pela intermediação da escritura. Os objetos a que Mallarmé se referia, de fato, eram, para ele, abstratos, ausentes, próximos do sentido divino da mimesis almejado por Platão em A república. Mas são, ao mesmo tempo, concretos: Mallarmé realiza um simulacro de imagens, no sentido que Platão dá a simulacros, mas os converte em escritura, logo em negatividade positiva, enquanto o filósofo grego só via nisso uma “má imagem”. Nisso, ele se distancia de Platão, para quem a ideia pura, original, divina, era a única que representava a boa mimesis. Percebe-se em Mallarmé que não existe Deus a não ser aquele que o ser humano oferece pela escritura.
O Deus de Mallarmé, ao contrário do que pensa Derrida, não é o Deus religioso ou metafísico, ou aquele que o romantismo julgava como sublime, propenso à elevação (hypsis) do sujeito, mas o Deus da escritura: esta não é cadavérica, ou seja, não é a morte, como ele registra em outro momento; Deus é a própria indefinição entre a morte e a vida, o vazio intercedendo na composição da narrativa poética que subsiste no indivíduo repartido, como a leitura e a escritura são opostos que se ligam na poética de Mallarmé. Cabe avaliar aqui que não estou contrariando a própria teoria de Derrida, que era contra o logocentrismo: ora, se Deus não é a vida, tampouco é a morte: ele é um rastro-por-vir, para utilizar o vocabulário derridiano.
Derrida, a fim de confirmar sua teoria, acertada, sobre o logocentrismo tendencioso que empurra a filosofia para campos da verdade e do conhecimento, da razão e da conscientização (capazes de destruir a literatura, ou seja, a modernidade), no entanto, equivocadamente, realçava que Mallarmé tinha uma concepção distanciada da figura divina. A ordem epistêmica dos escritos mallarmeanos registra não só uma ilusão de si, mas uma verdade (o que Derrida qualificava como quinquilharia dos classicistas) sobre si. Se não há verdade, tampouco há ilusão. Nesse fio tênue, entre a conscientização e a loucura, encontra-se o poeta moderno.
O poeta, na verdade, é comparado aos dementes: “Creio também que não devem imitar a linguagem e o comportamento dos dementes, pois é mister conhecer os dementes e os perversos, tanto homens quanto mulheres, mas não fazer nem imitar nada que seja próprio deles”. Nesse ponto, ao contrário do que escreve Guy Delfel, Mallarmé não quer integrar a poesia às demais atividades sociais da sociedade; pelo contrário, quer afastá-la, pois é a única maneira de sair ileso do confronto e com suas ideias de Absoluto e de Beleza intactas, mesmo que distanciadas da phoné religiosa.
sexta-feira, 7 de janeiro de 2011
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muito esclarecedor!
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