Jürgen Habermas e Jacques Derrida: incursões pela literatura e filosofia modernas
Por André Dick
Segundo o filósofo alemão Jürgen Habermas, em
O discurso filosófico da modernidade, o homem é originalmente uma experiência ontológica, a quem a questão do Ser é existencialmente imposta. A analítica existencial brota do impulso mais profundo da própria existência humana. Heidegger chama a isso de enraizamento ôntico da analítica existencial. Hegel, por sua vez, definiu o tempo como parte integral do ser, no qual se baseará Heidegger. Desse modo, ser significa ser no tempo, no interior de horizontes de uma percepção e um Begreff (‘apreensão’, ‘interiorização’, que são absolutos históricos).
Como também observa Habermas, em seu vocabulário que considera científico e correspondente à verdade, “Hegel já substituía a oposição abstrata entre finito e infinito pela autorrelação absoluta de um sujeito que alcançou a consciência de si e de sua substância, que traz em si tanto a unidade quanto a diferença do finito e do infinito. Em contraste com Hölderlin e Schelling, esse sujeito absoluto não deve preceder o processo universal como ser ou intuição intelectual, mas unicamente subsistir no processo de relação entre o finito e o infinito e na atividade devoradora do voltar-a-si. O absoluto não é concebido nem como sujeito, mas apenas como o processo mediador da autorreflexão que ser produz independente de toda condição”.
O filósofo alemão também analisa a modernidade a partir de Baudelaire. Como ele afirma, Baudelaire institui uma “intersecção do eixo entre atualidade e eternidade, ou seja, a modernidade representa uma “atualidade que se consome a si mesma”. Nesse sentido, o presente não pode ser mais visto como a consciência de algo simplesmente oposto à “época rejeitada e ultrapassada, a uma figura de passado”, e sim apresentar uma atualidade capaz de ser o ponto de ligação entre o tempo e a eternidade. Em outro momento, afirma que Nietzsche é “contemporâneo” de Mallarmé e dos simbolistas, não apenas “discípulo de Schopenhauer”. E ainda: “Foucault tomou emprestado seu conceito de poder da tradição empirista, privando-o daquele potencial de experiência de um fascínio ao mesmo tempo assustador e encantador, do qual se nutriu a vanguarda estética de Baudelaire até os surrealistas”. Habermas parece, a partir desses fragmentos, associar filosofia e poesia em muitos momentos – e mesmo aceitar que a linguagem filosófica também é literária, porque não tem condições de aspirar a uma concretização delimitada.
No entanto, ele travou uma polêmica com o filósofo franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004) nos idos dos anos 80, sobretudo no ensaio “Excurso sobre o nivelamento da diferença de gênero entre filosofia e literatura”, do mencionado
O discurso filosófico da modernidade. Nele, contesta a relação entre literatura e filosofia feita por Derrida, afirmando que, ao realizar isso, o filósofo conhecido pela desconstrução, estava fugindo à verdade que deve ser buscada pela filosofia – embora, lembre-se, Habermas viesse a discutir sobre terrorismo com ele, no início deste século, por meio do livro
Filosofia em tempo de terror – Diálogos com Habermas e Derrida. Desse modo, Habermas é um dos filósofos mais avessos à poesia, apesar de utilizá-la: seus textos, que buscam a verdade do Estado, o racionalismo, são textos, apesar de seu talento, antipoéticos. No entanto, mesmo assim Habermas busca associações – para evidenciar a verdade filosófica – em pressupostos poéticos e literários (Hölderlin, Mallarmé, Baudelaire). E, a julgar por essas breves análises que faz, o que Habermas mais realiza – assim como os filósofos – corresponde também ao que se chama de literatura. Hoje, o filósofo “do consenso, do diálogo e da discussão, o filósofo que pretende distinguir entre ciência e ficção literária, entre filosofia e crítica literária”, como se referiu Derrida a ele, pode ser visto também como um filósofo que incorporou a literatura como matéria para seus conceitos.
A seminegação de Habermas à “verdade” dos escritores “de ficção” – e, ao criticar Derrida, que analisava Mallarmé, Edmond Jabès etc., aos poetas –, vem de longe. A explicação sobre a má influência dos poetas, no Livro II de
A república, é tomada em termos de ordem para a sociedade, no diálogo entre Sócrates, Glauco e Adimanto, como já foi abordado no ensaio “
A farmácia de Mallarmé”, deste blog:
Os poetas, mesmo considerando boas “a temperança e a justiça”, as achariam “difíceis e penosas”; a “intemperança” e a “injustiça” seriam mais agradáveis a eles e “de fácil domínio, somente vergonhosas na óptica da opinião pública e da lei”. Para eles, as ações injustas, nesse sentido, seriam “mais proveitosas que as justas, no conjunto, e aceitam de bom grado proclamar os maus felizes e honrá-los, quando são ricos ou dispõem de algum poder; ao contrário, desprezam e olham com desdém para os bons que são fracos e pobres, embora reconhecendo que são melhores que os outros”. Além disso, os deuses seriam acusados pelos poetas de privilegiarem os maus, dando aos “homens virtuosos” o “infortúnio e uma vida miserável”. Também “convencem não apenas os simples cidadãos, mas também as cidades, de que se pode ser absolvido e purificado dos crimes, em vida ou depois da morte, por intermédio de sacrifícios e festas a que chamam mistérios”.
Sócrates, implicando com os versos de Homero, que contariam mentiras e influenciaram as crianças negativamente, avalia que não se deve dar ao poeta “a liberdade de afirmar que os homens punidos foram infelizes e que Deus foi o autor dos seus males”. Ao contrário, diz Sócrates, “se ele disser que os maus precisavam de castigo, sendo infelizes, e que Deus lhes fez bem castigando-os, devemos deixá-lo livre”. Por outro lado, se os poetas “disserem que Deus, que é bom, é a causa das desgraças de alguém, combateremos tais palavras com todas as nossas forças e não permitiremos que sejam proferidas ou ouvidas pelos jovens ou pelos velhos, em verso ou em prosa, numa cidade que deve ter boas leis, porque seriam pecaminoso, abusivo e absurdo”.
A preocupação de Sócrates é com o fato de os deuses serem vistos como seres que castigam e, consequentemente, com a criação: “Que as mães, convencidas pelos poetas, não assustem os filhos contando-lhes que certos deuses vagueiam de noite disfarçados em estranhos de todo tipo, a fim de evitarem, simultaneamente, blasfemar contra deuses e tornar as crianças mais covardes e medrosas”. As mentiras poéticas, para Sócrates, nada mais seriam do que “uma imitação do estado da alma”. E Homero continua sendo o principal culpado pelas impurezas da alma, sobretudo ao longo do Livro III, em que o diálogo de Sócrates com os companheiros continua combatendo a poética. Em particular, nesse novo livro, Sócrates avalia que os poetas utilizam a imitação, que seria um gesto inferior, pois não representam nem o divino (que teria a palavra original) nem os recriadores de objetos divinos (o criador de um leito, por exemplo). Leia-se o seguinte fragmento: “(…) se um homem perito na arte de tudo imitar viesse à nossa cidade para exibir-se com os seus poemas, nós o saudaríamos como um ser sagrado, extraordinário, agradável; porém, lhe diríamos que não existe homem como ele na nossa cidade e que não pode existir; em seguida manda-lo-íamos para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra na cabeça e o termos coroado com fitas”. Tal explicação socrática/platônica indica o mesmo preconceito com os poetas de todos os tempos: vistos como sagrados, extraordinários e agradáveis, mas inúteis para a sociedade, pois não vêm para contar a verdade, para ajudar na manutenção econômica ou na sustentação dos poderes, e sim para desvirtuar a realidade. Os poetas não vêm, no caso, para buscar a razão do Estado ou para a educação moderna – como quer Habermas –, porque o fazem pelo avesso.
No fundo, a explicação de Platão é que a verdade só pode existir se se refere a Deus. Assim, para ele, a ideia de cama ou mesa, ou a mesa ou a cama, é primeiramente divina. A cópia de tais objetos seria aquela modelada pelo carpinteiro ou artesão: seria uma cópia da realidade. Em terceiro plano, o pintor ou o poeta que se dispõem a falar da mesa ou da cama estão realizando uma cópia da cópia, imitando o objeto do artesão (ou carpinteiro) e não da ideia (Deus). Importante irmos, para a comprovação disso, aos diálogos de Sócrates:
Sócrates – Queres então que demos a Deus o nome de criador natural deste objeto ou qualquer outro nome semelhante?
Glauco – Nada mais justo, visto que criou a natureza desse objeto e de todas as outras coisas.
Sócrates – E o marceneiro? Devemos chamá-lo de obreiro da cama, não é verdade?
Glauco – Sim, é.
Sócrates – E chamaremos ao pintor o obreiro e o criador deste objeto?
Glauco – De modo nenhum.
Sócrates – Dize-me então o que é ele em relação à cama.
Glauco – Parece-me que o nome que lhe conviria melhor é o de imitador daquilo de que os outros dois são os artífices.
Sócrates – Que seja. Chamas portanto, imitador ao autor de uma produção afastada três graus da natureza.
Glauco – Com certeza.
Sócrates – Desse modo, o autor de tragédias, se é um imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da verdade, assim como todos os outros imitadores.
A partir disso, define-se que o poeta nunca lidaria com a verdade, daí sua ameaça à sociedade que pretende se organizar em termos de justiça e coerência em
A república socrática. A verdade, claro, pertence ao rei. O poeta, fazendo uma cópia da cópia, realiza um simulacro e, portanto, deve ser visto como uma ameaça ao poder (do rei). A verdade estaria representada justamente pela ideia logocêntrica da criação e não da cópia. Ou seja, o poeta, não sendo um Deus, capaz de ter criado um objeto, nem um ser humano capaz de imitá-lo (pelo trabalho braçal ou pelo conhecimento da construção), que, transpondo a ideia divina para a realidade, é capaz de apenas representá-lo, por meio da arte da escrita, não seria um bom imitador, ao mostrar uma cópia da cópia, isto é, um simulacro.
Habermas, no texto em que contesta Derrida por querer misturar filosofia e literatura, adota o sentido platônico de ignorar o sentido poético das coisas. Adota esse caminho em diversos momentos da desconstrução que procura fazer da filosofia “poética” de Derrida – que Habermas assinala como pouco afeita às argumentações. Ele critica que, adotando determinada interpretação sobre haver uma mescla entre linguagem e cotidiano, Derrida “analisa quaisquer discursos segundo o modelo da linguagem poética e, assim, agir como se a linguagem fosse determinada pelo seu uso poético especializado em abrir mundos”. Habermas critica ainda em Derrida a “mudança poético-criativa de um pano de fundo posto em cena como arquiescritura”. Ao privilegiar a “função poética da linguagem”, Derrida não perceberia mais “a relação entre uma práxis linguística normal e as duas esferas extracotidianas, diferenciadas de certo modo em direções opostas”. Assim, Derrida, o que assinala Habermas, quer assimilar “a filosofia à literatura e a crítica” – o que faz de forma exemplar em livros como
A escritura e a diferença (em que analisa Mallarmé, Edmond Jabès),
A disseminação – em que faz a análise mais moderna de Mallarmé –,
Margens da filosofia (em que escreve sobre Valéry, a linguística de Benveniste, a semiologia de Hegel, o conceito aristotélico de mímesis) e mesmo livros como
Papel-máquina (no qual apresenta uma nova análise de
Um lance de dados, poema mallarmeano, a partir também de Maurice Blanchot).
Consequentemente, ao agir assim, o filósofo franco-argelino adota um pensamento filosófico “liberado do dever de solucionar problemas e refuncionalizando para os fins da crítica literária”, perdendo a “seriedade, mas também sua produtividade e capacidade de realização”.
No limite de sua aversão, no discurso pretensamente científico de sua filosofia, Habermas diz que tanto Derrida quanto Adorno “descobrem o essencial no marginal e no acessório, o direito no lado do subversivo e do infrator e a verdade na periferia e no inautêntico”. Platão, como Habermas, considerava o poeta um “marginal”, “que não fala a verdade”, como vimos, assim como alguém que merece estar na “periferia” da cidade por sua “inautencidade”. Ou seja, sua proposta filosófica é antipoética - mas revela toda sua paixão pela poesia. Pelo que ele comenta, conclui-se que Habermas é um filósofo da “verdade”, para o qual a literatura e a poesia acabam não trazendo nenhum componente para o chão da dita “realidade”. Escreve ele, ainda, numa nota do ensaio dedicado a desconstruir Derrida, agindo como Platão: “[…] nós, filósofos e sobretudo não-filósofos, de modo algum renunciamos às pretensões da verdade”. Derrida responderia a ele também numa nota de rodapé incluída em
Limited Inc.: “[…] são os supostos filósofos, teóricos e ideólogos da comunicação, do diálogo, do consenso, da univocidade ou da transparência os que pretendem lembrar sem cessar a ética clássica da prova, da discussão e da troca, são eles que o mais das vezes dispensam-se de ler e estudar atentamente o outro […], como se não tivessem o gosto pela comunicação”. Possivelmente, o que mais Habermas faça – como em qualquer linguagem adotada – sejam, para lembrar Platão, sua referência na expulsão dos poetas da cidade, simulacros de algo indefinido. Não por acaso, ele avalia que Mallarmé é um defensor da “arte pela arte”.
Para o filósofo, o poeta francês deveria falar – e muito – em nome dos ideais da verdade. Mas estava tratando do poeta que escreveu a Henri Cazalis: “Sim, eu sei, não somos senão formas vãs da matéria, mas o bastante sublimes para haver inventado a Deus e a nossa alma. Tão sublimes, amigo meu, que quero dar-me este espetáculo da matéria que tem consciência de ser e que, sem embargo, se lança incessantemente a este Sonho que ela não é capaz de ser, cantando para a Alma e a todas as divinas impressões similares [...] e proclamando, ante o Nada (que é a verdade), estas gloriosas mentiras… Hei de cantá-lo desesperadamente”. Ou, como lembra Giorgio Agamben – outro filósofo que, na linha de Derrida, aproxima filosofia e poesia –, em
A linguagem e a morte, do conceito de “musa” para os gregos: era o nome dado à experiência da “inapreensibilidade do lugar originário da palavra poética”. A filosofia teria nascido como tentativa de “liberar a poesia da sua ‘ inspiração’”, que consegue reter a Musa, para fazer dela, “como ‘ espírito’, o seu próprio sujeito; mas este espírito (
Geist) é, precisamente, o negativo (
das Negative), e a ‘ voz mais bela’ [...], que, segundo Platão, compete à Musa dos filósofos, é uma voz sem som”. O apagamento do sujeito pela via negativa revela a sensibilidade do autor para uma concepção de modernidade descentralizada, e “voz sem som” dos filósofos traz, implicitamente, a retenção da Musa poética – porque sabe que precisa de certa maneira silenciar, como na literatura.
Trazer essa discussão – e muitas outras – à cena torna certamente Habermas um dos filósofos mais importantes da modernidade, capaz de estabelecer diálogos com os maiores filósofos. Mas são seus simulacros – filosóficos, literários ou científicos, como prefere o autor – que se destacam, não as verdades capazes de estruturar o Estado através do “diálogo comunicativo” com as religiões e políticas do mundo – como ele desejaria. O que sustenta sua linguagem é o caráter da indefinição, do que ele julga marginal e subversivo, contra o puramente científico – o que lembra a poesia.