O Imaginário da infância em Dante Alighieri
Por André Dick
Em seu livro Infância e história, Giorgio Agamben fala que “a infância é a origem da linguagem e a linguagem é a origem da infância”. Para o filósofo italiano, essa infância não é um paraíso perdido, mas continua com o homem, à medida que ele vai se constituindo como sujeito e como falante. É através da linguagem, portanto, que o homem se constitui como homem. Sendo assim, a infância é o limite transcendental da linguagem do homem, pois este se situa entre o semiótico (o conjunto de signos que vai conhecendo) e o semântico (que o conduz para o discurso).
Na mesma infância que Dante, aos nove anos de idade, tendo sua visão, a de Beatriz, ainda viva, procedida de uma ausência não suprida nem no último verso do Paraíso da Divina comédia.
Através da linguagem – de uma linguagem construída, como afirma Agamben, a partir da ideia de infância –, a ausência é permanente no Imaginário de Dante. Mas esse Outro que ele almeja já não é passível de toque; tornado Imaginário, ele se estabelece em sua ausência. Se o Imaginário nos guarda a visão do outro é porque, ao mesmo tempo que explora as subjetividades do autor, ele se constrói também por meio da ausência, que carrega o pensamento da morte, composto pela subjetividade.
A interseção perfeita entre o autor/o Nada (a falta de si mesmo, o não ser) e a falta/o Vazio (ora de uma pessoa, ora de um lugar), com o qual Dante interage através da escritura, é o mote de sua obra. Em Dante, o Imaginário se dá como hipótese de um discurso que se insere no ser humano e se constrói por meio de suas ausências, onde há sua mais intensa subjetividade. A morte, com isso, está ligada diretamente ao Imaginário e à sua conservação, através da memória, o esquecimento e a lembrança, depois de o corpo ser despojado. Também é representação e possibilidade de nos colocar diante do outro, aqui, como elemento do Imaginário. Estar diante de quem se imagina pode, muitas vezes, não conduzir além do espaço que já foi examinado em pensamento, capaz de transcender o Imaginário múltiplo. As palavras também são cobertas por um véu, como o corpo. Também se morre e se vive no pensamento, deixando marcas – nisso se reproduz a visão do outro, entre despojos de um corpo morto.
A poesia de Dante Alighieri representa a procura da essência humana e da visão do outro. Mais do que um poeta, Dante foi um personagem dos seus próprios versos e de suas histórias (para não esquecermos Vita nova), e não é um exagero remeter a permanência literária de um pensamento mitológico, procurado em sua própria personalidade, ao anseio de se reproduzir e se refletir na trajetória pelo inferno, paraíso e purgatório. Grande orador, participou ativamente da vida política de Florença e desejou oniricamente uma ligação amorosa com a figura feminina síntese de sua existência: Beatriz. De suas rimas pedrosas ao resto de sol e poeira sobre suas memórias, Dante coletou o que poderia se chamar de “pedras da memória” de sua primeira visão. Há um laço que o mantém, a partir desse pressuposto, ao que Roland Barthes nomeia “grau zero da escritura”, sobre o qual costuma-se identificar um lento reencontro com a origem da linguagem do autor, e é simplesmente a questão básica sobre a qual Dante trabalhou ao longo de sua suma poética.
Entre o sol (a claridade, a luz) e as estrelas (a luz em meio às trevas), Dante recorda de sua musa Beatriz, num mundo divino comandado por visões, como observa T. S. Eliot (e revisto por Giorgio Agamben). Iluminado pela visão da amada aos nove anos de idade – mote para a partida de Vita nova –, Dante a persegue sem saber que este percurso reproduz a si mesmo, a sua humanidade. Beatriz, seu espelho, reproduz o que ele na infância deixou de ser, diante do pálido futuro que o guardaria como um simples mortal.
Como observa Haroldo de Campos, a “biografia literária” de Dante, além de entrelaçada desdobrar-se erótico-metafísico de uma sobredominante metáfora escritural, fica também indissoluvelmente ligada à sua passagem pela ‘bossa nova’ do tempo, o dolce stil nuovo, marcando-se alternativamente, pela influência do stizzoso (agastadiço, temperalmental) e melancólico Cavalcanti (o poeta do spleen toscano)”. Nesse sentido, George Steiner faz-se produtivo: “Boa parte da poesia da Vita nova dialoga ou desafia outros virtuoses do soneto e da vinheta satírica. Em certos trechos, padrões de rima e versos inteiros são tomados de empréstimo e permutados”. Como também na Divina comédia, para Steiner, Dante faz “um alistamento que revela uma apaixonada prodigalidade do sujeito e um impulso de criatividade tão veemente que parece requerer a representação de um eco, seu espelhamento em outros artistas igualmente reativos”.
Expondo a relação com predecessores e seus contemporâneos, Dante, conforme Steiner, faz com que todos participem da “ficção real composta pelo sujeito criativo”, afinal, mesmo o “mais ‘original’ dos artistas, no sentido mais rigoroso de toda noção de ‘originalidade’, é polifônico”. Desse modo, Dante já inicia Vita nova com uma inverdade em potencial: “Naquela parte do livro da minha memória, antes da qual pouco se poderia ler, se encontra uma rubrica que diz: Incipit Vita nova”. Afirmar “Minha memória”, diante da tradição da qual parte Dante, mostrando, ao mesmo tempo, uma recriação e um diálogo com outros autores, é no mínimo ilusório.
T. S. Eliot veio a dizer que o pequeno livro de Dante, traduzido no Brasil por Décio Pignatari, é uma mistura de “alegoria” e “biografia”. Não é a personalidade do poeta-narrador que é importante. O que importa é a “causa final”, tópico comum na crítica de Eliot, para quem a “fuga da personalidade” era a caracterização mais forte da personalidade.
A própria Beatriz, como pondera Harold Bloom, na linha do crítico Charles Williams, é a maior criação de Dante. Nesse ponto, Bloom compara a figura de Beatriz com a de Dulcinea del Toboso, a amada de Dom Quixote. Assim, vê-se que o “mito de Beatriz, embora seja a invenção central de Dante, só existe dentro de sua poesia”. Para Bloom, Beatriz, para Dante, “é muito mais que uma revelação pessoal ou individual. Ela veio inicialmente ao seu poeta, Dante, mas através dele chega aos que o leem”.
Segundo Bloom, ao analisar a Divina comédia, Dante só procura a si mesmo, o que é uma aposta arriscada do crítico americano, já que este reflete no poeta italiano a hipóstase do Eu solitário, do Autor supremo. Dante, no entanto, visualiza o Outro (Beatriz) como um escape de si mesmo, mas não só: Beatriz é seu reflexo para que deixe de lado sua potência narcísica, ingressando no jogo do Imaginário. Jorge Luis Borges viu o encontro entre Dante e Beatriz como ilusório, afinal, para ele “Beatriz existia infinitamente para Dante; Dante existia muito pouco, e talvez nem existisse para Beatriz. Nossa piedade, nossa veneração nos fazem esquecer essa lamentável desarmonia, que era inesquecível para Dante”. Ele iria potencializar essa escolha pelo Outro na Divina comédia. Essa possibilidade de leitura que abre a obra de Dante – uma mistura, como reflete Eliot, de “alegoria” e “biografia” – costuma ser negada por críticos formalistas e estruturalistas radicais, para quem a vida do escritor não importa e nada acrescenta; que o que importa é somente sua obra. O que vemos, segundo o ponto de vista de Agamben, é que Dante não regressa à infância, mas está inserido nela, na medida em que se torna ser falante.
Giorgio Agamben alia essa análise de Dante à recuperação do conceito de melancolia – sobretudo, sua concepção de sentimento condenatório, pela religião, que a via como a acídia, o enfraquecimento da alma e uma fuga ao divino –, como que para estabelecer um diálogo com o conceito de “fantasma”, na análise que faz, sobretudo, da Vita nova de Dante. Nesse misto entre poesia e prosa, o poeta esquece que nunca possuiu Beatriz, a não ser em seu Imaginário - mas lamenta sua perda. Essa perda do “fantasma” que nunca possuiu indica uma melancolia particular, uma imagem congelada, remete aos textos de Agamben sobre a fotografia e, sobretudo, ao texto “O ser especial”, de Profanações, em que retoma a ideia, provinda de Dante e de Cavalcanti, de que o amor é como um “acidente em substância” - imagem, aliás, de Vita nova. A imagem - ou o fantasma da melancolia – “é gerada a cada instante de acordo com o movimento ou a presença de quem a contempla”. Para o filósofo italiano, “Entre a percepção da imagem e o reconhecer-se nela há um intervalo que os poetas medievais denominavam amor”. Ao se prolongar o intervalo “entre a percepção e o reconhecimento, a imagem é interiorizada como fantasma, e o amor recai na psicologia”. O “fantasma” remete à melancolia, que, por sua vez, indica a voz da morte, negativa, de A linguagem e a morte.
Agamben investiga constantemente a infância e, através da voz impressa, relembra a imagem do “fantasma” dos poetas medievais, no que se liga a ensaios de Estâncias e aos shifters de Jakobson ou aos “índices de enunciação” de Benveniste, em A linguagem e a morte e Infância e história: “A descoberta medieval do amor por obra dos poetas provençais e estilnovistas é, deste ponto de vista, a descoberta de que o amor tem como objeto não diretamente a coisa sensível, mas o fantasma; é, portanto, simplesmente a descoberta do caráter fantasmático do amor. Mas, dada a natureza medial da fantasia, isto significa que o fantasma é, também, o sujeito e não simplesmente o objeto do Eros”. Diante disso, não há um contato com a corporeidade, mas com a imagem, uma “nova pessoa”, “na qual se abolem os confins entre subjetivo e objetivo, corpóreo e incorpóreo, o desejo e seu objeto”. Com esta fantasia, surge o “espírito fantástico”, e a noção de fantasia, sob esse aspecto, é também lembrada num momento de Infância e história – indicando o inexperenciável, como a própria ligação de Dante com Beatriz.
segunda-feira, 8 de agosto de 2011
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