Uma semana para a modernidade
Por André Dick
Foi Oswald de Andrade quem liderou, através de jornais e na procura de companheiros para defender seus ideais poéticos, a propagação do Modernismo, baseado nas correntes de vanguarda europeia. Ele teria como ponto de difusão a Semana de Arte Moderna, que aconteceu, sob aplausos e vaias, entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Sem a poesia e a teoria de Oswald, possivelmente o modernismo não teria sido o que foi. Em “Como se produziu a Semana de Arte Moderna” (de Estética e o política), afirma: “Os elementos que utilizamos contra os velhos recursos da poesia sabida e metrificada são a pela liberdade da criação, a valorização do inconsciente, do cotidiano e do mecânico. Do cotidiano que vai até o vulgar estão o popular e o revolucionário. No inconsciente escondem-se o primitivo, o nativo, o geográfico e o telúrico. Nesses caminhos se cria a poesia nova no Brasil”.
O país estava, como a literatura, em fase de mudança, dividido, claramente, entre o rural e o urbano. Os senhores rurais estavam no poder, fortalecidos pela economia do café, cuja centralização se dava no eixo São Paulo-Minas Gerais; a sociedade era organizada em oligarquias, com famílias e grupos políticos se perpetuando no poder e os presidentes eram eleitos por São Paulo ou Minas Gerais, gerando a política café-com-leite, cuja duração se estendeu até 1930. As cidades, principalmente São Paulo, conheciam uma rápida industrialização, causada pela Primeira Guerra Mundial, que proporcionava lucros somente à burguesia industrial, embora marginalizada pelo governo federal, voltado para a produção e a exportação do café. Nesse panorama, também aumentava, consideravelmente, o número de imigrantes europeus, sobretudo italianos, que se dirigiam tanto para a zona urbana quanto para a zona rural. A sociedade era, então, claramente dividida. Havia os barões do café e a alta burguesia lucrando e a pequena burguesia, formada por funcionários públicos e comerciantes, entre outros, deixada de lado. São Paulo era o palco de uma gama considerável de trabalhadores, muitos deles anarquistas, responsáveis por uma série de greves históricas. A imprensa da época, assim, acostumava-se, cada vez mais, com artigos da Revolução Russa, antecedendo a entrada, em terras brasileiras, do Partido Comunista, exatamente no mesmo ano da Semana de Arte Moderna.
Esta se apresentou como um ataque, duro e contundente, à aristocracia e à burguesia, dominante e impopular – no entanto, partia, em parte, de dentro dela, como quase todos os movimentos de vanguarda (a começar pela emblemática figura de Oswald). Depois da Semana de Arte Moderna, Oswald não deixou de ir à França, lugar onde vislumbrou, em 1923, o que mais tarde constituiria a poesia Pau Brasil, a poesia brasileira de exportação, voltada, para uma linguagem adequada aos novos conceitos poéticos, despertados pelo Dadaísmo, pelo Cubismo e pelo Futurismo, além de inimiga principal dos sonetos de Olavo Bilac.
Isso aconteceu quando Oswald estava em Paris, numa de suas viagens ao continente europeu. Como observa Paulo Prado – principal patrocinador da Semana de Arte Moderna –, no prefácio do livro de poemas Pau Brasil, lançado em 1925, um ano depois do manifesto, com o mesmo nome, “Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra”. Paulo Prado afirma mais, em seu prefácio: que, para Oswald, “a volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia ‘pau-brasil’”.
Para Paulo Prado, “a poesia ‘pau-brasil’ é, entre nós, o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro”. Esse esforço, obviamente, vinha acompanhado de uma nova visão artística europeia, alimentada pela entrada de Oswald pelo mundo das vanguardas. Como ele confessou mais tarde, num de seus tantos livros de memórias, o que importava para ele não era o marxismo, comentado como nunca àquela época, mas o Futurismo de Marinetti, combatido pelas rodas literárias burocratas.
A visão empregada pelo livro de poemas Pau Brasil – a melhor obra do modernismo, ao lado dos manifestos, das pinturas de Tarsila, Anita Malfatti e de Di Cavalcanti, dos poemas de Bopp, Bandeira, Ronald Carvalho e Luís Aranha, do Macunaíma, de Mário de Andrade, da música de Villa-Lobos, dos ensaios de Paulo Prado e do jornalismo de Pagu –, no entanto, só pode ser devidamente explorada se tivermos um conhecimento do manifesto que o precedeu, assim como da Semana de Arte Moderna, e, no fundo, acabou por constituí-lo, originado, obviamente, desse novo olhar de Oswald sobre Paris, sobre o Brasil e sobre o mundo. Se Oswald descobriu o Brasil em cima da Torre Eiffel, é porque descobriu que somos tão melancólicos quanto os europeus. O próprio caderno de poesias de Oswald de Andrade, com referências diretas à infância, além dos desenhos, mostra uma vida que não existe mais. Resta a visão dos cafezais devastados pela quebra na bolsa - e esse é também o retrato da Semana, de uma cultura ao mesmo tempo dominada pela força de lei e à busca de uma liberdade para a linguagem.
Se Mário tinha o sonho de fazer uma gramática com as palavras grafadas da maneira que o povo as falava, Oswald realiza, em seu programa de Poesia Pau Brasil, nela própria, e ainda no Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade, o que pode se chamar de “poética da infância”. Seu objetivo era oferecer a noção de que o novo vinha do vocabulário do povo, mas não em seu elemento digerido, antropófago – se não levarmos em conta aqui, é claro, a influência de Blaise Cendrars, devorado no banquete oswaldiano –, e sim de seu primeiro olhar, de criança, primitivo de outra maneira, não a mesma, portanto, de Mário. O primitivo de Mário era mais de raiz popular, o de Oswald, embora baseado num suposto olhar de criança, mais crítico - como o índio antropófago. Se Mário diz, no “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada, que “na minha poesia a gramática às vezes é desprezada” e “Escrevo brasileiro”, Oswald define no poema “3 de maio”: “Aprendi com meu filho de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que nunca vi”.
Este primitivismo, segundo Benedito Nunes, “correspondeu ao sobressalto étnico que atingiu o século XX, encurvando a sensibilidade moderna menos na direção da arte primitiva propriamente dita do que no rumo, por essa arte apontado, em decorrência do choque que a sua descoberta produziu na cultura europeia, do ‘pensamento selvagem’ – pensamento mito-poético, que participa da lógica do imaginário, e o que é selvagem por oposição ao pensar cultivado, utilitário e domesticado”. Mário de Andrade, por exemplo, tinha ressalvas claras ao futurismo.
Antes de Oswald de Andrade constituir sua obra, muitos contatos transcorreram entre eles. Mário de Andrade já possuía dois livros, Há uma gota de sangue em cada poema (1917), que seria negado por ele, e Pauliceia desvairada (1921), considerado o clássico do autor.
Tais livros exerceriam estranhamento em Oswald, a ponto de este dedicar a Mário, em maio de 1921, um artigo chamado “O meu poeta futurista”, em que o futuro pai de João Miramar discorria sobre as ligações do parceiro com os movimentos de vanguarda europeus, sobretudo com o futurismo, o que seria rebatido no “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada, se não de maneira completa, pelo menos de forma contundente. Ao mesmo tempo, Mário faria um mea-culpa:
Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que discutiriam minhas ideias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já agora não me calo. Tanto ridicularizariam meu silêncio como esta grita.
Ainda sobre Marinetti, comenta mais adiante: “Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo, simbólico, universal, musical da palavra em liberdade”, tão “velha como Adão”, mas cometeu um erro, fazendo dela sistema, quando é “apenas auxiliar poderosíssimo”. Na verdade, Mário era um modernista ponderado – mas não menos importante para o modernismo como conceito.
Oswald de Andrade lidava com o mesmo homem primitivo, talvez rude, do companheiro de geração, Mário, mas possuía um olhar mais crítico, antropofágico, recebendo com muito interesse o diálogo que alguns poetas queriam travar, com o jornal, mais destacadamente. Oswald, assim, incorporou bem as ideias de Mallarmé e dos dadaístas na correspondência entre a poesia e o jornal, não só quando passou a pedir uma poética baseada nos fatos no cotidiano, mas, sobretudo, através do tratamento dado à tipografia ao trabalho gráfico dos poemas, valorizando os cortes, a sintaxe menos linear, a dispersão de palavras.
A “Antropofagia” de Oswald, por meio da produção do manifesto e dos poemas, para Haroldo, é “o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’ (...), mas sob o ponto de vista desabusado do ‘mau selvagem’, devorador de brancos, antropófago”. Sob este ponto de vista, o que Oswald realiza em sua obra representa os resíduos da poesia de Blaise Cendrars apenas em sua forma. Ele oferece ao leitor uma visão crítica da história, não encontrada no exotismo sublimado por Cendrars nas paisagens do Brasil que o encantaram, mas diz mais: o poeta sabe que não existe o Brasil que imagina, por isso se faz melancólico. Esta questão é muito mais complexa, como prova o movimento de Gregório de Matos Guerra, que, depois de sua passagem pela Europa, volta à Bahia, trazendo o Barroco na bagagem e fazendo uma literatura formalista num século em que o Brasil já estava começando a querer ser romântico.
Benedito destaca, no artigo “Do tabu ao totem”, que “Quando nos mirássemos no espelho do estrangeiro, passaríamos a estranhar-nos e a descobrir nossa originalidade nativa”, convertendo-se a assimilação “numa atitude devoradora generalizada”, comeríamos “nossa herança cultural ambígua com suas reservas inconscientes de imaginário, poeticamente transladáveis, e também com seu imenso poder repressor, que aliou a catequese aos Governos Gerais”. Oswald culpava, fundamentalmente, a religião - por seu desencantamento diante de Deus, sintomático de certa modernidade (não a de um poeta como Murilo Mendes, por exemplo, da segunda fase modernista). Como escreveu em “Imprecação a Tristão de Ataíde” (de Estética e política): “O que me interessa, pois nessa curiosa Europa que para não morrer se recolheu à única trincheira que lhe restara, a do homem ‘primitivo’, a fim de dali partir - você verá - para qualquer construção oposta à lamentável Babel da civilização católico-puritana. O que me interessa é só a ‘retirada’ dessa civilização ocidental, na direção moral e mental do nosso índio. Isso sim, porque dá razão à única coisa que é nossa - o índio”.
Utilizando-se de Sigmund Freud e da antropologia, Oswald também tentava proporcionar aos seus estudos uma dimensão psicológica, a fim de estruturar o conceito de antropofagia, mas nunca ligando-o à ingenuidade que muitos críticos procuraram suscitar, apenas e simplesmente, na poesia Pau Brasil. Oswald saudava a vida do selvagem, associando às revelações freudianas do comportamento humano próprias do início do século XX: “O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido”. Com tal postura, Oswald se colocava claramente, como ele mesmo observa, “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucuras, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”. Por isso, Oswald, em cápsulas telegráficas, ponderava: “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais”; “Nunca fomos catequizados”; “Fizemos foi carnaval”; “Expulsamos a dinastia”. Utilizando o vocabulário do “pai” da psicanálise, Oswald queria a “transfiguração do Tabu em totem”, inaugurando a antropofagia.
A opção de Oswald, conforme Benedito Nunes, é “devorar as proibições e interditos ancestrais e coletivos – designados globalmente pela palavra polinésia tabu, correntemente usada pelos antropólogos, e que Freud uniria à outra, no título de seu famoso Totem e tabu”. Essa devoração viria “na companhia da má literatura”, neutralizando “a repressora força do tabu, convertendo-o em totem, ou seja, em imagem rememorativa propiciatória, como vínculo histórico com o passado”. Oswald também aprova o mesmo caminho futurista já degustado no Manifesto da Poesia Pau Brasil: “A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue”. Porém, de forma crítica, sem aceitar a dominação, embora compreenda o processo de devoração cultural.
E é esse primitivismo de vanguarda e essa devoração as bases da Semana de Arte Moderna. Mas que não se concentram na Semana, por esta não representar o modernismo brasileiro (Tarsila do Amaral, por exemplo, não participou do evento, e é mais modernista do que alguns que estiveram nele) em sua totalidade, embora seja seu principal evento. Depois dela, seria retomado mais claramente um fio de modernidade brasileira, iniciada em Sousândrade, passando por Kilkerry, Augusto dos Anjos, até os modernistas (vendo sob o ponto de vista poético, que é a principal herança da Semana). E o primitivismo de saber que algo muito forte sempre existiu no Brasil (a cultura indígena) e será retomado – desta vez, impondo-se diante da Europa.
sábado, 11 de fevereiro de 2012
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