quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A poesia de Macunaíma nas estrelas

Por André Dick

O poeta e crítico literário Haroldo de Campos (1929-2003) procura investigar, em seu Morfologia do Macunaíma, livro teórico influenciado pelas teorias formalistas e estruturalistas, uma das obras de prosa modernistas mais instigantes. Segundo Haroldo, Mário de Andrade, por meio de sua obra, possui uma consciência perfeita sobre seus movimentos e sua incorporação de lendas e linguagens nacionais e estrangeiras. Haroldo ainda investiga Macunaíma a partir das estruturas do teórico russo Vladímir Propp, autor de Morfologia do conto maravilhoso.


Para o crítico e poeta brasileiro, o livro de Mário é sustentado não só pela observação de lendas e no instinto nacional, mas pela criação ponderada que remete ao esquema proposto por Propp em sua morfologia. Assim, “a coerência do Macunaíma deve ser buscada em outro tipo de lógica (como também o seu tempo, a sua ‘cronia’, e a sua psicologia): trata-se da lógica do pensamento fabular, de certo modo da logique concrète da pensée sauvage de que fala Lévi-Strauss; de qualquer modo, da lógica enquanto semiologia da narração, definível a partir de um corpus (o lendário de Koch-Grünberg) que tem muitos pontos de afinidade com o repositório empiricamente investigado por Vladímir Propp”. Daí haver, no livro teórico de Haroldo, uma aproximação da obra marioandradina com os escritos de Lévi-Strauss sobre o pensamento selvagem.
Macunaíma é uma obra também influenciada pelos movimentos de vanguarda do início do século XX, como o Dadaísmo e o Futurismo – e dezenas de estudos que apontam que isso seria uma característica etnocêntrica enganam o leitor. Ou seja, é uma obra que parece nacional, mas é extremamente internacional, brincando com a linguagem por meio do folclore. Além de dialogar com a cultura nacional, em sua obra perturbadora, Mário de Andrade compõe o estilo único de seu personagem principal.


O curioso é que o autor, ao escrever seu livro em seis dias, não parecia ter noção da síntese que estava realizando de uma certa maneira de compreender o brasileiro. Mas Macunaíma, de algum modo, também é Oswald de Andrade e sua Poesia Pau Brasil, que visava a uma ingenuidade, a uma exploração linguística. Antes de Oswald de Andrade compor sua obra, muitos contatos transcorreram entre ele e Mário.
Mário, no entanto, não alcança o sentido oswaldiano de Alteridade e analogia ao relegar a poética de Mallarmé a segundo plano, observando que a poesia “pura” não possui o mesmo espaço no seu programa quanto a poesia “desvairada”. Uma pergunta feita no “Prefácio” (“Você já leu São João Evangelista? Walt Whitman? Mallarmé? Verhaeren?”) não esclarece a relação entre Mário e a poesia de Mallarmé, pois, ao mesmo tempo em que parece destacar a do francês, colocando-o ao lado de leituras importantes (um pensamento de E. Verhaeren serve de epígrafe para o mesmo “Prefácio”), Mário parece diminuí-lo, instituindo um paradoxo.
Apoiado no subjetivismo, Mário julgava impossível chegar, com objetividade, a “fatores de proximidade e semelhança relacionando palavra no espaço, tendo em vista a simultaneidade”, o que, observa Pignatari, Mallarmé já havia feito em Un coup de dés. No entanto, a música de Mário é visível na composição de Macunaíma, criado em saltos horizontais, numa miscelânea de provocações, uma rapsódia – o que Haroldo de Campos avalia em seu estudo. Se há uma música em Macunaíma – e há, mesmo que implícita –, ela vem da linguagem corrente brasileira, do folclore singular, em que convergem personagens dos mais diversos tipos. Esta fala, no entanto, torna-se universal quando Macunaíma é produto da localidade latino-americana. Sua desconfiança em relação à fonte europeia é uma espécie de sátira de Mário em relação ao próprio modernismo, insustentável sem ser relacionado com os movimentos europeus. Ou seja, o personagem é retrato de um reprocessamento de Mário no interior da mata – em que escreveu o livro, para depois reescrevê-lo e chegar a novas versões.


Haroldo de Campos, no epílogo de Morfologia do Macunaíma, seu estudo sobre a obra de Mário de Andrade, afirma que este, apesar de sua aversão a Mallarmé, tinha conhecimento comprovado de sua obra. Haroldo lembra que na biblioteca particular de Mário há um livro de Mallarmé, La poésie de Stéphane Mallarmé. Nele, Mário, ao lado de alguns poemas, escreve observações do crítico Albert Thibaudet. Imbuído pela vontade de ligar Macunaíma ao poema Un coup de dés, Haroldo chama a atenção para o fato de que o herói sem nenhum caráter se transformar, em seu final, na “Ursa-Maior”, o que poderia remeter à constelação final do poema de Mallarmé: “Macunaíma se transforma no ‘brilho bonito mas inútil porém de mais uma constelação’, depois de provar o sem-sentido de sua-existência. Esta constelação é a Ursa-Maior. No céu metafórico do Coup de dés, depois que o Mestre [...], náufrago solitário, percebe a inutilidade do lance de dados (que jamais abolirá o acaso), desenha-se, com uma esperança-probabilidade última (para além de todo acte inutile, de ‘todo resultado nulo humano’), suspensa pelo fio de um ‘talvez’ (‘EXCEPTÉ PEUT-ÊTRE…’), uma ‘constelação’, ‘fria de olvido e dessuetude’, a Grande Ursa com suas sete estrelas… É um ‘cálculo total em formação’, que se enumera ‘vigiando duvidando rolando brilhando e meditando’, ‘sobre alguma superfície vacante e superior’ (assim como o herói-Ursa Maior ‘banza solitário no campo vasto do céu’)”.


Para Haroldo, Mário realiza, de forma inconsciente (Haroldo não utiliza essa palavra, que, no entanto, parece ser mais adequada), uma espécie de “sequestro” da obra de Mallarmé. De qualquer modo, em carta de 7 de novembro de 1927, Mário pedia que Manuel não confundisse o símbolo em que se transformou Macunaíma, o herói malandro da prosa moderna, com o símbolo de Mallarmé, que retrataria o Simbolismo.
Mário perguntava no texto A escrava que não é Isaura sobre a estética modernista: “[...] onde nos levou a contemplação do pletórico século XX?”. E respondia: “Ao redescobrimento da Eloquência. Teorias e exemplo de Mallarmé, o errado Prends l’éloquence et tords-lui son cou de Verlaine, deliciosos poetas do não-vai-nem-vem não preocupam mais a sinceridade do poeta modernista”. Exclamando, em maiúsculas, que “É PRECISO EVITAR MALLARMÉ!”, Haroldo de Campos entende que para Mário o pecado do poeta francês havia sido a “intelectualização”, optando pelo “elogio do sentimento e do subconsciente (no fundo, a escrita automática dos surrealistas, estes rhéteurs por excelência da poesia moderna [...])”.
Mário de Andrade, ao destacar a importância do “redescobrimento da Eloquência”, estaria configurando a eloquência, segundo Nelly Novaes Coelho, como se identificada “à autenticidade vivencial, ao dinamismo criador [...] e nunca a uma retórica balofa e gratuita que define os diluidores românticos e parnasianos, ainda remanescentes naquele princípio de século, entre nós”. Nelly lembra que Mário destaca em seu texto que a eloquência é “filha legítima da vida”. Dessa maneira, o repúdio a Mallarmé, no pedido (ou grito?) “É PRECISO EVITAR MALLARMÉ!”, encontrado em A escrava que não é Isaura, prender-se-ia ao “intelectualismo estetizante do grande poeta francês”, ignorando, ao mesmo tempo, sua analogia, que se preocupava com a correspondência dos símbolos, o que não instigava Mário. Nos apêndices desse texto, Mário considerava ainda que

Mallarmé tinha o que chamaremos sensações por analogia. Nada de novo. Poetas de todas as épocas as tiveram. Mas Mallarmé, percebida a analogia inicial, abandonava a sensação, o lirismo, preocupando-se unicamente com a analogia criada. Contava-a e o que é pior desenvolvi-a intelectualmente, obtendo assim enigmas que são joias de factura mas desprovidos muitas vezes de lirismo e sentimento. [...] Inegavelmente com esse processo de desenvolver pela inteligência a imagem inicial, com estar sempre ao lado do sentimento em contínuas analogias e perífrases a obra de Mallarmé apresenta um aspecto de coisa falsa, de preciosismo, muito pouco aceitável para a sinceridade sem vergonha dos modernistas.


Como lembra Nelly, é mais do que normal, portanto, que Mário considerasse Rimbaud um perfeito exemplo de poesia modernista, como se fosse o resultado “daquilo que o subconsciente envia à inteligência do Poeta”, embora, mais tarde, ele também viesse a desconsiderar o autor de Illuminations, atacando-o nos mesmos pontos de Mallarmé.
O fato é que, a princípio, Mário não apreciava realmente a obra de Mallarmé, a ponto de escrever em cartas trocadas com Manuel Bandeira muitas críticas a ele. Em carta de 16 de dezembro de 1924, ao ser solicitado, por Bandeira, em missiva de 8 de dezembro, a discorrer sobre a posição de Pierre (embora o tivesse chamado de Paul) Reverdy na poesia moderna, criticando este autor, cujos poemas lhe soavam cansativos, Mário o coloca na mesma descendência de Mallarmé. Este, para Mário, porém (isso, à exceção de outros comentários, é um elogio), “tinha uma arte de compor e uma graça de dizer infinitas que fazem prazer”, ao contrário de Reverdy, “mais pesado, mais desgracioso”. Mário liga este tipo de poesia à música, que é “de todas as artes a que com mais facilidade consegue atingir a chamada Arte Pura, isto é, sem nenhuma relação com os interesses da vida e nenhuma referência a esta, por não ser inteligentemente compreensível”. As “artes da palavra” constituíam-se, para Mallarmé, naquilo que menos se pode aproximar dessa “Arte Pura” musical, ao lidar com vozes, “diretamente e unicamente compreensíveis pela inteligência”. Desse modo, para Mallarmé, as “artes da palavra” deveriam ser “impuras”, representando “coisas inteligíveis”, pois “Toda e qualquer rebusca literária que prejudica a clareza da expressão literária relacionada é defeito”. Isso se explica, na concepção de Mário, por seu pouco interesse por Mallarmé, Góngora e Reverdy. Acusando, ainda, a incompreensibilidade de alguns poemas, Mário lamenta que a poesia de Reverdy, na mesma linha mallarmeana, “pau, cansativa e não-me-amólica”, apenas dificulte o processo de interpretação do leitor, sem dar maior alegria quando o significado é atingido.


A “negação”, ou mesmo o desconhecimento, de Mário de Andrade em relação a Mallarmé é curiosa, pois este buscava uma ligação entre a música e a literatura, em seus poemas – destacadamente no objeto em questão, que é Un coup de dés – e textos teóricos (“La musique et les lettres”, “Richard Wagner”, entre outros), o que Mário fazia na época, sobretudo porque era um estudioso de música brasileira, uma vez que também escreveu, entre outros, o livro Pequena história da música (1944).
Também no “Prefácio interessantíssimo”, Mário perde a oportunidade, segundo Décio Pignatari no artigo “Poesia concreta: organização” (1957), de se aproximar de Mallarmé. Ele lembra que Mário afirma, neste texto, que a poética, com “rara exceção até meados do século 19 francês, foi essencialmente melódica”. Para Mário, o “verso melódico” seria o mesmo que “melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, contendo pensamento inteligível”. Se forem reunidas “palavras sem ligação imediata entre si”, que, “pelo fato mesmo de não se seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias”, apostando numa enumeração, em que cada uma forma uma fase, “período elíptico, reduzido ao mínimo talegráfico”, teremos, então, segundo Mário, o verso harmônico, sem melodia, isto é, frase gramatical, mas com “acorde arpejado, harmonia”. Em sua obra, porém, Mário afirma usar não só palavras, mas frases soltas, com a mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodia)”, resultando numa “polifonia poética”. Para Pignatari, Mário não conseguiu enxergar a “sintaxe visual”, como o fez a poesia concreta. Apoiado no subjetivismo, Mário julgava impossível chegar, com objetividade, a “fatores de proximidade e semelhança relacionando palavra no espaço, tendo em vista a simultaneidade”, o que, observa Pignatari, Mallarmé já havia feito em Un coup de dés.
Em outra carta, esta de 13 de julho de 1929, Mário criticava o fato de os surrealistas considerarem Mallarmé parte de sua estirpe, o que seria uma “bobagem clara”, uma vez que não há nada mais “contrário ao automatismo psíquico” do que Mallarmé e Paul Valéry. Ou seja, Mário se colocava contra a escolha de Mallarmé por uma poesia “pura”, hermética, próxima à música, da qual ele mesmo compartilhava, em estudos e obras nesse campo, o que sugere um interessante paradoxo dentro de sua concepção modernista, por escolha de autores ligados pelo caráter combativo e agressivo de suas obras. Afinal, Macunaíma é – e continua sendo – sua mais forte rapsódia, o que prova Haroldo de Campos em seu estudo referencial, uma das prosas com calibre poético mais interessantes feitas no âmbito latino-americano. E muito superior à obra essencialmente poética de Mário.

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