sábado, 10 de abril de 2010

Acídia e melancolia em Cervantes (I)

Por Nicole Cristofalo

Dentro dos tratados teológicos do período da Idade Média, vemos a acepção do espírito acidioso definir-se através dos monges tomados por uma forte sonolência, próximo ao meio-dia, acordando famintos e com sede. Inquietos e insatisfeitos, suas mentes fantasiavam todo o tempo, desejando viverem condições diferentes das suas. Este mal-estar era entendido como uma doença grave, e mesmo um pecado do qual não havia salvação. Ao longo do tempo, a acídia começou a se associar ao espírito preguiçoso, ao invés da “angustiada tristeza e do desespero” daqueles que desenvolviam suas características, como afirma Giorgio Agamben, no livro Estâncias.


No presente ensaio, levantamos a hipótese de que Miguel de Cervantes, conhecedor dos tratados sobre a acídia (seu pai era médico-cirurgião, e sem dúvida tinha acesso a estes textos), tenha construído o personagem Sancho Panza utilizando-se de diversas características do espírito acidioso, com o intuito de que os leitores também o confundissem como um sujeito preguiçoso, enquanto o que ocorre, na verdade, é uma comparação entre certas características da acídia deste personagem e a melancolia de don Quijote.
Durante a leitura de El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, percebemos que Sancho reclama demais por alimento e sono, o que provoca riso no leitor, além de a todo momento fantasiar sobre o seu governo na ilha prometida pelo seu senhor, e sempre reclamar da maneira como precisa servi-lo para conseguir alcançar o que lhe foi prometido. Não por coincidência, lemos as seguintes características da acídia em Estâncias:

“O refúgio fácil do sono não é senão um ‘travesseiro’ que o diabo oferece ao acidioso para lhe tirar qualquer possibilidade de resistir ao pecado”.

“(A acídia) trata-se da perversão de uma vontade que quer o objeto, mas não quer o caminho que a ele conduz e ao mesmo tempo deseja e obstrui a estrada ao próprio desejo”.

“Ao mesmo tempo em que a sua tortuosa intenção abre espaço à epifania do inapreensível, o acidioso dá testemunho da obscura sabedoria segundo a qual só a quem já não tem esperança foi dada a esperança, e só a quem, de qualquer maneira, não poderá alcançá-las foram dadas metas a alcançar”.


A esta última característica é interessante observar o porquê de Don Quijote ter oferecido a Sancho o governo de uma ilha. Talvez, proporcionar um salário ou qualquer outro objeto que estivesse ao seu alcance não o teria motivado a trabalhar como seu escudeiro. Em determinado momento do livro, ele até mesmo reclama por um salário, mas percebemos que não é esta a sua real motivação para seguir Don Quijote. Sancho deseja se tornar governador da sua ilha, e se encontra insatisfeito de sua atual condição (como os monges acidiosos), fantasiando sua posição futura mas, ao mesmo tempo, queixa-se do caminho que necessita fazer para alcançar seu objeto de desejo, como mencionado na citação realiza a cima. Em diversos momentos do livro, apesar da imagem de preguiçoso e tonto, vemos um Sancho “melancólico” (melhor dizendo, acidioso), quando Cervantes deixa em evidência o seu real espírito, quando, por exemplo, está pensativo sobre sua situação e receoso quanto à aquisição da sua ilha para governá-la.

Quijote se quedó a caballo descansando sobre los estribos y sobre el arrimo de su Lanza, lleno de tristes y confusas imaginaciones, donde le dejaremos, yéndonos con Sancho Panza, que no menos confuso y pensativo se apartó de su señor que él quedava.”

Mas por que Cervantes se utiliza da acídia para caracterizar o segundo personagem mais importante de seu romance?
Segundo Agamben, durante a Idade Média o espírito acidioso começou a confundir-se com o melancólico:

“A prova da convergência precoce entre melancolia e tristitia-acedia, que aparecem até como dois aspectos da mesma realidade, está em uma carta de São Jerônimo: ‘Há aqueles que, devido à umidade das celas, aos imoderados jejuns, ao tédio da solidão e à exagerada leitura, no entanto de dia e de noite (outros monges) cantam alto nos seus ouvidos, acabam na melancolia e precisam mais dos calmantes de Hipócrates que de nossos conselhos’”.

Há quem diga que Sancho se assemelha muito mais a Don Quijote do que podemos pensar numa primeira leitura (em diversos momentos do livro, lê-se comentários que questionam se Sancho não compartilha da loucura do seu senhor). Sendo assim, trabalharemos a ideia de que Cervantes busca colocar lado a lado um espírito melancólico (Don Quijote), e um espírito acidioso (Sancho Panza) disfarçando suas características a ponto que “leyendo vuestra historia el melancólico se mueva a risa”. Através de uma leitura cuidadosa, o autor nos leva a entender a diferença entre o acidioso e o melancólico, “doenças” muito confundidas naquela época.


Se a “leitura exagerada” é um dos motivos que podem levar o espírito tanto à melancolia quanto à acídia, o desejo daquilo que é inacessível (para Sancho, o governo de sua ilha prometida, e para Quijote a sua Dulcinea del Toboso) também se torna um ponto de intersecção entre as duas manifestações, assim, como afirma Agamben, o fato da acídia e a melancolia não constituírem “apenas uma fuga de..., mas também uma fuga para..., que se comunica com seu objeto (de desejo) sob a forma da negação e da carência”. Além disso, “na insistente vocação contemplativa do temperamento saturnino, continua vivo o Eros perverso do acidioso, que mantém o próprio desejo fixo no inacessível”.
Assim, percebemos que ambos os personagens saem de casa (fuga de) em busca de algo (fuga para) que justifique suas ações.
Outro ponto em comum entre as duas personagens é que ambas “doenças do espírito” causam pensamentos fantasiosos, “figuras ilusórias que podem ser interpretadas ora de um, ora de outro modo”. Apesar do pensamento fantasioso não estar tão presente no personagem do Sancho Panza como vemos em Don Quijote, aquele também se permite a acreditar em “cavaleiros andantes”, “feiticeiros” e chega a até mesmo subir no cavalo de madeira Clavileño e cavalgar pelo céu.

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