Catatau barrocobabélico
Por Nicole Cristofalo e André Dick
O livro Catatau, de Paulo Leminski, que está sendo relançado pela Iluminuras, mostra o quanto seu autor estava próximo do Barroco – que tem seu ponto de força, no Brasil, na obra de Haroldo de Campos. Isso percebemos não apenas pelo ensaio ausente nas edições anteriores de Catatau, “Uma leminskíada barrocodélica”, de Haroldo, mas em sua principal condição de romance experimental. Veremos, primeiro, como Alejo Carpentier trata do Barroco e do Realismo Maravilhoso e depois da obra em si, de Leminski, que ganha agora sua quarta edição (a primeira, de 1975, era da Grafipar; a segunda, de 1989, da Sulina; e a terceira, de 2004, em edição crítica e anotada acompanhada de iconografia, da Travessa dos Editores).
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Alejo Carpentier inicia seu ensaio referencial sobre o Barroco e o Realismo Maravilhoso apontando os conceitos equivocados que os dicionários se utilizam para definir o termo “Barroco”, com associações de ideias empobrecedoras (o Barroco como “amanerado” e, até mesmo, “decadente”), e concorda com a teoria de Eugenio d’Ors de que o barroquismo é uma constante humana, ideia que irá desenvolver ao longo de seu ensaio.
Afirma que o barroquismo esteve presente em diversos momentos das artes humanas, e em diversos países. Para exemplificar, cita as esculturas indianas, a cidade de Praga, assim como as esculturas do “Puente Carlos” e as figuras religiosas daquele país. No campo da música, menciona “A flauta mágica”, de Mozart. O estilo gótico é utilizado para se definir a diferença entre constante humana e “los estilos históricos”, pois, segundo Carpentier, seria inadequado se construir uma catedral gótica nos dias de hoje, enquanto é perfeitamente possível existir uma escrita barroca em qualquer momento histórico:
toda la literatura irania, incluyendo ese monumento de la épica que es el Libro de los reyes, de Firdusi, es barroca, saltando los siglos, nos encontramos em España con esas cumbres del estilo barroco em literatura, que son Los Sueños de Quevedo, Los autos sacramentales de Calderón, la poesía de Góngora toda, la prosa toda de Gracian. Y la prueba de que hay ahí un espíritu barroco, es que el contemporáneo de algunos de los autores que acabo de citar, Cervantes, no nos resulta barroco.
Segundo Carpentier, os autores podem ser barrocos em apenas alguns de seus escritos, não necessariamente se tornando barroca toda a sua obra - o que pode ser destacado em Paulo Leminski, cuja poesia não tem sinais evidentes do Barroco, no sentido das imagens (depois de Catatau, apenas Metaformose se incluiria nesse campo; como escreve Décio Pignatari, na orelha da terceira edição de Catatau, Leminski primeiro “fez o grande, o difícil, o vertical - esta obra que lhe tomou oito anos de dedicação, fervor e sofrimento”). Carpentier prossegue, citando autores que ele considera barrocos em diversos países: Ariosto, com Orlando furioso, Shakespeare, com Júlio César e o quinto ato de Sonho de uma noite de verão, Rabelais e sua obra.
Ele também compara o Romantismo com o Barroco, descrevendo características que aproximam o primeiro estilo do segundo, como o Enrique de Ofterdinger, de Novalis, o segundo Fausto, de Goethe, e as Iluminações, de Rimbaud. Além da obra de um dos autores mais admirados por Carpentier: Os cantos de Maldoror, de Lautréamont.
Ao mesmo tempo, afirma que “El academicismo es característico de las épocas asentadas, plenas de sí mismas, seguras de sí mismas. El barroco, em cambio, se manifiesta donde hay transformación, mutación, innovación”. A América seria genuinamente um continente barroco por conta de sua “simbiosis, de mutaciones, de vibraciones, de mestizajes”, sua “criolledad”. Tal espírito criolo seria também Barroco por possuir a consciência de ser algo novo. Carpentier cita as cosmogonias americanas contidas no Popol Vuh, e os livros de Chilam Balam, nos quais “todo lo que se refiere a cosmogonía americana – siempre es grande America – está dentro de lo barroco”. O autor considera a arquitetura asteca como barroca por seus ornamentos por seus ornamentos e o “temor a la superficie vacía”. O Popol Vuh seria barroco por sua riqueza de linguagem e a “policromía de las imagens”. Carpentier oferece, igualmente, como exemplos de Barroco, a Igreja de Tepoztlán, no México, e a fachada de São Francisco de Ecatepec de Cholula. Hibridez de linguagens e signos que Haroldo de Campos investiga tão bem em seu recente O segundo arco-íris branco, no qual apresenta análise sobre, entre outros, Lezama Lima, Sor Juana Inés de la Cruz, Severo Sarduy, Néstor Perlongher e Julio Cortázar.
No decorrer de seu ensaio, Carpentier ainda procura definir o Realismo Maravilhoso, primeiramente, por meio do termo “maravilhoso”: “todo lo insólito, todo lo asombroso, todo lo que se sale de las normas establecidas es maravilloso”. Desta forma, o autor refere-se a esculturas e pinturas de deuses greco-romanos, ora disformes, ora torturados ou com cabelos de cobras. Assim, “lo feo, lo deforme, lo terrible, también puede ser maravilloso. Todo lo insólito es maravilloso”. Importante mencionar que Carpentier distingue o Realismo Mágico do Realismo Maravilhoso, pois o primeiro trata de imagens inverossímeis, trazidos a uma atmosfera onírica, enquanto que o Surrealismo se diferencia do Realismo Maravilhoso por ser um “misterio fabricado”, um “maravilloso fabricado premeditadamente”. É interessante citarmos Irlemar Chiampi, quando ela trata do termo Realismo Mágico, que é empregado a partir da consciência do narrador de se ter uma “nova atitude (…) diante do real” e afirma que “os impasses analíticos e conceituais registráveis” provêm da “compreensão inadequada das teses culturalistas de Carpentier, que desliza frequentemente para o enfoque temático, obrigando o analista à tarefa inútil (literariamente falando) de definir o grau de representatividade do referente extratextual”, como é o caso da ligação entre América Latina e Realismo Maravilhoso. A América Latina seria rica em elementos maravilhosos, como o fato de o Haiti ter, como rei, um escravo cozinheiro que constrói uma fortaleza que poderia ser autossuficiente por dez anos, além de os escravos daquele país poderem se metamorfosear em animais. Assim como ao feito de Juana de Azurduy, que adentra uma cidade da Bolívia com o objetivo de resgatar a cabeça de seu amado, exposta na Praça Maior, Carpentier também refere-se a um encontro que teve com um poeta analfabeto, mas que soube recitar de cor a Canção de Rolando, a história de Carlos Magno e os Pares da França, como acontecimentos maravilhosos.
Portanto, para Carpentier, a realidade latino-americana é, além de maravilhosa, também barroca. E, se é possível realizar uma escrita barroca hoje em dia, virá dos autores que neste continente vivem. Como afirma Néstor Perlongher, o neobarroco é “uma arte furiosamente antiocidental, pronta a se aliar, a entrar em misturas 'bastardas' com culturas não ocidentais”.
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São essas misturas que fazem de Catatau o romance como um gênero inacabado, em constante transformação e revitalização, e faz da teoria de Mikhail Bakhtin uma das mais profícuas para a análise literária - por sua linguagem maravilhosa. Como assinala Bakhtin, a “ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada, e não podemos ainda prever todas as suas possibilidades plásticas”, ao contrário da epopeia, por exemplo, “gênero já profundamente envelhecido”. Ainda assim, o romance precisa ser, no mundo contemporâneo, aquilo que a epopeia foi para o mundo antigo. Para Bakhtin, o romance
é expressão da consciência galileana da linguagem que rejeitou o absolutismo de uma língua só e única, ou seja, o reconhecimento da sua língua como o único centro semântico-verbal do mundo ideológico e que reconheceu a pluralidade das línguas nacionais e, principalmente, sociais, que tanto podem ser ‘línguas da verdade’, como também relativas, objetais e limitadas de grupos sociais, de profissões, de costumes.
Neste universo galileano, a multiplicidade acaba fazendo parte intrínseca do desenvolvimento histórico do romance, na presença do plurilinguismo. O texto romanesco compreende um universo que não está nem acabado nem fechado, exatamente como o conceito de Barroco indica – e Catatau, de Leminski, é exemplo claro disso. Segundo Giorgio Agamben, em Infância e história, “Babel, ou seja, a saída da pura língua edênica e o ingresso no balbuciar da infância (quando, dizem-nos os linguistas, a criança forma os fonemas de todas as línguas do mundo), é a origem transcendental da história”.
Bakhtin pondera que o romance é o único gênero em evolução, refletindo, “mais substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente a evolução da própria realidade”, o que se fecha com o conceito de “obra de aberta” suscitado por Haroldo de Campos, que remete ao Barroco, com sua mistura complexa de linguagens e gêneros:
O romance antecipou muito, e ainda antecipa, a futura evolução de toda literatura. Deste modo, tornado-se o senhor, ele contribui para a renovação de todos os outros gêneros, ele os contaminou e os contamina por meio de sua evolução e pelo seu próprio inacabamento.
O fato de ser considerada uma obra barroca faz com que o livro Galáxias, de Haroldo de Campos, seja mais parecido com Prosa do observatório, de Cortázar, embora não se aproximem em objetivos. Terminada em 1971, ao contrário das Galáxias, de Haroldo de Campos, cuja versão definitiva só foi lançada em 1984 (outra versão, quase terminada, foi lançada em 1976, em Xadrez de estrelas), a obra de Cortázar talvez tenha começado a ser escrita no mesmo período que a de Campos (meados dos anos 60), daí dialogarem tanto com Joyce, que estava sendo trazido pelas vanguardas latino-americanas: a própria poesia concreta, lançada em São Paulo, em 1956, e pela figura do mexicano Octavio Paz.
Fixemo-nos no romance que introduziu Leminski na literatura. Catatau apresenta uma linguagem em estado de “realismo maravilhoso”, para utilizar a ideia de Carpentier, ou seja, uma linguagem que lida, em alta voltagem, com o instigante universo da hibridez, da Babel de línguas. O Barroco plurilíngue faz parte indispensável dessa obra de Leminski. Não só no que corresponde ao universo de trabalho com as línguas e linguagens, mas porque sustenta uma consistente configuração de experimentalismo, primordial para a concreção de vanguarda entre meados dos anos 50 e os anos 70, no Brasil.
Nele, Renatus Cartesius (que é, na verdade, René Descartes), filósofo das ideias claras e verdades incontestáveis, inventor da geometria analítica, tenta se enquadrar na realidade tropical, inválida para seus esquemas matemáticos e europeus, em sua viagem ao Brasil, na embarcação de Maurício de Nassau, em viagem à Recife dominada pelos holandeses. Uma ideia obviamente fantasiosa: Descartes realmente fez parte da Companhia de Nassau, mas na Europa, conforme estudos históricos. Leminski, num caminho borgiano, imagina sua vinda ao Brasil.
No ensaio “Uma leminskíada barrocodélica”, Haroldo escreve que o personagem entra “a gosto ou a contragosto, no seu sonho psicodélico. Melhor dizendo, barrocodélico, pois de um cometimento neobarroco, de um ensaio de liquefação do método e de proliferação das formas em enormidades de palavra, é que se trata”. Os trópicos brasileiros representam o maravilhoso, o novo, o imprevisto, na mente de Descartes, e suas paisagens, híbridas, assim como sua linguagem não linear, representam a desconexão do pensamento europeu, o “barrocobabélico”. Como escreve Paulo Leminski, em “Descordenadas artesianas”, texto que acompanha Catatau, seu livro representa “o fracasso da lógica cartesiana branca no calor, o fracasso de leitor em entendê-lo, emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trópico”. E salienta que o conto do qual Catatau surgiu, “Descartes com lentes”, “era um esquema: trazia em si um princípio de crescimento, uma lei e uma necessidade de expansão, como uma alegoria barroca”.
Observemos alguns fragmentos do raciocínio de Cartesius/Descartes em Catatau, em que a linguagem sofisticada, científica, mescla-se com um “revestimento grotesco”, popular, numa mistura de linguagens provando ser plurilíngue e barroco, no sentido da hibridez de linguagens e gêneros, o romance de Leminski:
Não sou máquina, não sou bicho, sou René Descartes, com a graça de Deus. Ao inteirar-me disso, estarei inteiro. Fui eu que fiz esse mato: saiam dele, pontes, fontes e melhoramentos, périplos bugres e povoados batavos. Eu expendo Pensamentos e eu extendo a Extensão!
Uma parassanga são três mil palmos, cada palmo – vinte dedos, cada dedo – seis unhas, cada uma – um cílio em pé perante o impecilho, cada cílio – dois pêlos de cilício, cada silêncio – um utensílio: uma paranga (...) Quantos anjos na ponta de uma agulha? Quem pôs a luz no cu do vagalume? Quantos insetos numa caçarola? Quantas flechas no teu corpo?
Isso tudo, para Leminski, é “apenas o contexto para uma aventura textual, que parte de James Joyce e da macarrônica, donde Joyce partiu, de Rosa, de Haroldo de Campos, da poesia concreta e da oralidade humorística de Mad e de Pasquim”. Os conflitos existentes no discurso do “Descartes abrasileirado” faz com que, segundo Leminski, o Catatau tenha “duas camadas geológicas nítidas. Uma, o contexto, que é exato, escrito em português seiscentista, e outra, o desbunde, o delírio cartesiano (a maior parte do livro), quando o filósofo pira”. Discursos que, como vimos, obviamente se cruzam dentro da sua narrativa um tanto picaresca (como a da personagem Dom Quixote, de Cervantes), em que Descartes/Cartesius, ao refletir sobre o novo mundo que o cerca (tropical e infestado de coisas novas), acaba enlouquecendo linguisticamente, misturando um português nobre a uma linguagem vinda do povo, dominada por expressões vulgares, embrutecida. Ela passa por uma “mestiçagem linguística”. Numa comparação com o Dom Quixote, em Catatau a “oralidade é introduzida no tecido discursivo enobrecido” do grande filósofo, voltado aos ideais matemáticos.
O romance de Leminski, como as Galáxias, de Haroldo de Campos, também brinca com a profusão de línguas (sobretudo, o latim) dentro do discurso romanesco imposto por Cartesius/Descartes, apostando na multiplicidade, na diversidade, em suma, no aspecto plurilíngue da narrativa, que atinge seus excessos de maneira calculada:
Ficou louco de falar latim em Thule, alter non datur. É para quem pode, para quem quer – não há mais mérito nem remédio: alhures dizem a realidade, latim fala a verdade. Pura expressão do vocábulo. Faço o possível para falar um latim plausível: plaudite, a posteriori. (...) A fonte emite lucis auras in aquis com exatidão e pontualismo até a mais insubstituível exaustão (...).
Leiamos um fragmento em que o conflito entre o raciocínio científico de Cartesius/Descartes, permeado pelo latim (discurso de leituras), inadequado à nova realidade tropical, e o raciocínio popular soa claramente:
Cultivo, sobretudo, o latim. Sem latim, isso não dá certo, o gesto não tem mais rejeito. Recito, bis dat Qui cito citat: data venenia, facta venia! Mundo fazendo fidusca, faço figa: a coisa toma jeito passada em latim, à milanesa. Latim, tudo, que sei? Poucos falam latim, reis falam. Dizem: ita. Ita. Sic, sic. É ita e sic. Latim domina os elementos, denomine os elementos do latim. Pensa que é o que de mim? O que é que eu não disse, nisso? (...) Faço o possível para falar um latim plausível: plaudite, a posteriori. (...) A fonte emite lucis auras in aquis com exatidão e pontualismo até a mais insubstituível exaustão.
Leminski considerava seu texto “um parque de locuções populares, idiotismos da língua portuguesa, estrangeirismos”. Para o autor, seu “polilinguismo é o reflexo do polinguismo do Brasil de então onde se praticavam as línguas mais descentradas: o tupinambá da Costa e centenas de idiomas gês/tapuias, dialetos afrôs, português, espanhol (...)” – a plena diversidade do Barroco.
Cabe, assim, nesse romance de Leminski, a observação de Bakhtin de que o romance seria uma diversidade social de linguagens organizadas, por vezes de línguas, por outras de individuais, em que há uma estratificação interna de uma língua nacional em dialetos sociais, em cada momento dado de sua existência histórica.
Sendo Descartes o narrador da obra de Leminski, percebe-se que seu discurso, fator de estratificação da linguagem, é uma introdução ao plurilinguismo. O romance de Leminski seria o local onde o “diálogo de vozes” nasce espontaneamente do “diálogo social das línguas”, em que a enunciação de outrem começa a soar como língua socialmente alheia e, finalmente, em que orientação do discurso para as enunciações alheias passa a ser “a orientação para as línguas socialmente alheias, nos limites de uma mesma língua nacional”. Como observa Bakhtin,
Durante sua existência histórica, sua transformação plurilíngue, a língua está cheia destes dialetos potenciais: eles se entrecruzam de múltiplas formas, não se desenvolvem até o fim e morrem, mas alguns florescem e transformam-se em linguagens autênticas. Repetimos: a língua é historicamente real, enquanto transformação plurilíngue, fervilhante de línguas futuras e passadas, de linguagens aristocráticas afetadas que estão morrendo, de parnevus linguísticos, de incontáveis pretendentes a ela, de maior ou menor sucesso, de maior ou menor envergadura de alcance social, com uma ou outra esfera ideológica de aplicação.
O romance, tão experimentado e imaginado por Bakhtin, em sua permanente evolução, para o bem das línguas, em sua multiplicidade infinita de caminhos e transformações, e em seu diálogo de linguagens, na ampliação do espaço de seu universo literário, talvez seja aquilo que Leminski diz sobre seu Catatau: “É uma máquina muito simples e muito complicada. Não tem segredos. E tem todos que são os da linguagem”. Ou, como sustenta Julio Cortázar: “O romance é a mão que sustenta a esfera humana entre os dedos, move-a e a faz girar, apalpando-a e mostrando-a”. Por isso, Catatau é um livro barrocobabélico.
domingo, 28 de novembro de 2010
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É possível uma língua brasileira?
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