Guenádi Aigui: a existência histórica do dia a dia
Por André Dick
Um dos principais poetas russos da modernidade, Guenádi Aigui foi traduzido por Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos em Poesia russa moderna e volta a figurar, desta vez como nome principal, em Silêncio e clamor, editado na Coleção Signos, da editora Perspectiva. O livro apresenta traduções de Boris com Haroldo e outras de Jerusa Pires Ferreira, todas de grande qualidade (recomenda-se, nesse sentido, o livro Boris Schnaiderman, com entrevistas do tradutor, apresentado por Jerusa e publicado pela Azougue Editorial).
Há poemas de Aigui traduzidos apenas por Haroldo que só aparecem em Poesia russa moderna – ou seja, Silêncio e clamor pode ser visto como uma extensão daquele trabalho, resultando numa mostra de respeito do poeta em língua portuguesa. Trata-se de um trabalho apurado, selecionando também textos autobiográficos (como o excelente “Sobre mim mesmo sucintamente”) e entrevistas do poeta sobre Maiakóvski e René Char – duas de suas referências. Há, também, um texto que dialoga com “Considerações sobre o poeta dormindo”, de João Cabral, intitulado “Sono e poesia”, com referências intertextuais aos poetas Mandelstam, Maiakóvski e Khlébnikov, entre outros, uma espécie de teoria reflexiva e filosófica.
Nascido em Tchuchávia, república autônoma da URSS em 1934, e desaparecido em 2005, aos 71 anos, Guenádi Aigui, segundo Roman Jakobson, por exemplo, é um “poeta extraordinário de vanguarda”.
Schnaiderman apresenta o poeta na saborosa introdução “Aigui: entre a abstração e a história”. A língua materna de Aigui é o tchuvache; Boris conta que descobriu que os “tchuvaches eram um povo com pouco mais de um milhão e meio de habitantes, estabelecido na margem direita do Volga, e menos de um milhão em regiões vizinhas”, constituindo “a República Autônoma Tchuváchia, fundada em 1925, mas, evidentemente, os anos de stalinismo só lhes permitiram uma autonomia bem delimitada”. Eram “descendentes dos hunos, que se fixaram ali antes de investir contra o Ocidente europeu no século V”, sendo que “sua língua pertence ao grupo búlgaro do ramo humo-ocidental das línguas túrquicas, embora seja bem diferente da língua da Bulgária, que é um idioma eslavo”. Para Boris, “Em circunstâncias históricas bem difíceis, esse povo desenvolveu uma cultura muito rica, embora a sua escrita atual date somente dos anos de 1870”. Por sua vez, Jerusa Pires Ferreira complementa, afirmando que os “tchuvaches até o século XIX não se serviam de um alfabeto convencional, e tinham na oralidade e nos gestos o suporte maior de sua comunicação” e destacando que “O conceito de xamanismo, embora diretamente ligado a práticas que pertencem a populações siberianas, atingiu por extensão outros povos, mas é utilizada corretamente, e Guenádi, ele próprio, se dizia neto de um xamã”. “Tudo isso”, acrescenta Jerusa, “teria diretamente a ver com o desenvolvimento do jovem poeta, seu lugar de marginalidade, em relação às culturas centrais e ao poder centralizador, sua condição de pertencimento e de ligação com as experiências e as práticas de seus ancestrais, fortes e insistentes”. No início, o poeta escrevia em tchuvache, mas foi convencido, depois, pelos poetas e amigos Boris Pasternak e Nazim Hikmet a escrever em russo. No entanto, ficou no esquecimento por décadas, embora em 1958 tenha trabalhado no Instituto de Literatura Mundial Máximo Gorki, de Moscou, onde conheceu seu grande mestre, Mikhail Svietlóv.
Isso porque Aigui teve sua poesia – bastante influenciada por poetas russos e, me parece, por Paul Celan – atacada, durante um período, por ser “alienada” e “sem vínculos com a vida”, recorda Boris. O interessante é que seu retorno foi se dando em países vizinhos. Teve uma antologia de poemas editada em russo, mas na Alemanha, em 1975. Outro volume de poemas saiu na França em 1982. Como destaca Boris, o fato de o poeta, por exemplo, lhe fazer textos altamente poéticos, seja em verso ou prosa epistolar, mostrava a “tensão permanente” entre “a abstração, a linguagem que procurar expressar o cerne, o essencial do que acontece, o mais profundo da existência, e a necessidade de manter contato com o mundo, os acontecimentos imediatos, o dia a dia”. Desse modo, sintetiza Boris, “se a sua poesia está marcada pelo anseio de transcendência, o impulso inicial é dado quase sempre por um evento do cotidiano, o que se liga a todo um modo de conceber a historicidade”. Para Jerusa, Aigui “transita e exerce sua arte a partir de duas correntes que na Rússia se completavam a cada momento: tradição e vanguardas que vão se reunir num projeto revolucionário das artes do século XX”.
A seleção de traduções de Aigui é minuciosa e exata - mostrando o talento, como tradutores, de Boris Schnaiderman e Jerusa Pires Ferreira. A meu ver, o melhor poema da coletânea é “Verão com Prantl”, com imagens fragmentadas (que dialogam com poemas de René Char): “O rouxinol – escultor do ar”; “Página: crepúsculo sobre as bétulas”; “No pinheiro trabalhava cantando – um pica-pau” etc. O poema “O nosso” vai ao encontro de Maiakóvski: “e eu hei de amá-la com minhas mãos e meus lábios, / com o silêncio, o sono e as ruas dos meus versos”. Em “Silêncio”, mostra o ofício do poeta: “meu trabalho é árduo e existe para si mesmo / como no cemitério da cidade / a insônia do vigia”. No mesmo sentido, temos “Casímir Malévitch”: “e – erguem-se – campos – para o céu / de cada um – eis – um rumo / para cada – estrela / e bate a ponta do ferro dirigindo-a / sob uma aurora mendiga / e o círculo cumpriu-se: visto como do céu / um trabalho para se ver como do céu”.
Há poemas em prosa belíssimos (“Vista com árvores” e “Guache”), que também dialogam com a obra de Char, além de imagens agridoces colocadas em verso de uma maneira arquitetônica, como “O ruído das bétulas” e “Recordação” – neste, aliás, há uma influência claramente pictórica: “um cão através dos centeios / corre / como entre os gritos / de toda – repentina – a infância / em meio / ao sol que declina” –, assim como em “Página”: “e se introduz o ar solene do outono – o fulgir de órgão – / dos girassóis”, e “Na doença de um amigo”.
A interferência da polifonia cotidiana se manifesta em “Dois epílogos”, e a infância, presente em muitas imagens, como nas de “Recordação”, também é visível em “Na doença de um amigo”: “da neve nas antigas colinas e estradas / de falas-vestes da infância / do rosto dos animais e choro – ao lado – o um- / bral dos amigos: / vocês – meus queridos” e “Rosa do silêncio”: “aos arrancos a incipiente dor / (ou – às vezes possivelmente / dói – à criança / frágil desnudo-viva / qual impotência de pássaro”. Há uma espécie de incorporação de sentimento humano na paisagem: “e o rio contorna / dois povoados em sombra na distância – / / e a noite cai... – / / tão escondida como o coração”. Boris também relembra, na introdução, a aproximação de Aigui com a música, o que se nota não apenas na musicalidade dos versos – mesmo que não compareçam rimas –, mas na temática, como “Atítulo” e “Sobre a leitura em voz alta do poema ‘Atítulo’”. Além disso, há poemas-homenagem a Boris e a Jerusa, de alta qualidade, tornando Silêncio e clamor um livro imprescindível. Como escreve Guénadi Aigui, em “Sono e poesia”: “A Poesia não tem recuos e avanços. Ela – é, permanece”. Como, de fato, a sua permanece.
sexta-feira, 22 de julho de 2011
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Olá André!
ResponderExcluirGrande (re)descoberta essa do poeta Guenádi Aigui, que já aparecia na Antologia Russa Moderna e vem agora novamente pela editora Perspectiva trazer novas facetas do autor.
Abraços,
Anderson Dantas
Prezado Anderson,
ResponderExcluirTudo bem?
Realmente é um grande lançamento o livro do Guenádi Aigui, num excelente trabalho de tradução.
Agradecemos pelas palavras e pela visita.
Abraços,
André
Nicole